
Crédito, Museu Australiano
- Author, Tiffanie Turnbull
- Role, De Sydney (Austrália) para a BBC News
Em 1943, um navio camuflado partiu da Austrália com destino à Inglaterra, transportando um passageiro ultrassecreto: um ornitorrinco.
O nome do raro animal era Winston, em homenagem ao seu futuro proprietário: o então primeiro-ministro britânico Winston Churchill (1874-1965). Era um presente inusitado de um país que tentava desesperadamente cair nas graças do primeiro-ministro.
E havia um motivo muito forte por trás da iniciativa. A Segunda Guerra Mundial (1939-1945) se estendia para o Pacífico, chegando às portas da Austrália.
Mas, dias antes da chegada ao seu destino, Winston, o ornitorrinco, foi encontrado morto na água da gaiola construída especialmente para a viagem, em meio à guerra que se desenrolava nos mares ao seu redor.
Temendo um possível incidente diplomático, não só a morte, mas a própria existência do exótico animal foi mantida em segredo. Ele foi dissecado e arquivado discretamente no escritório do seu xará.
Mas isso não evitou os rumores de que ele teria sido mais uma vítima dos nazistas, devido a um possível choque causado por um submarino alemão.
A causa da morte de Winston permaneceu um mistério por décadas… até agora.
Dois Winstons e uma guerra
O animal é uma dentre apenas cinco espécies de monotremados, um grupo que reúne os únicos mamíferos que põem ovos, em vez de dar à luz filhotes vivos.
O ornitorrinco é venenoso e sua aparência incomum, com rosto e patas de pato, corpo em forma de lontra e cauda como a do castor, levou os naturalistas europeus a acreditar durante anos que o animal era uma elaborada fraude, um truque de taxidermia.

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Churchill era um ávido colecionador de animais raros e exóticos. Para ele, o ornitorrinco era uma criatura muito intrigante, tanto que ele queria pelo menos um — quem sabe seis? — na sua coleção.
Em 1943, ele comentou seu desejo com o ministro das Relações Exteriores da Austrália, H. V. Evatt (1894-1965).
Aos olhos de Evatt, a proibição da exportação dos animais imposta pela Austrália e sua notória dificuldade de transporte, sobretudo em uma viagem tão longa, eram apenas desafios a serem superados.
A Austrália se sentia cada vez mais abandonada pelo Reino Unido, frente à crescente ameaça japonesa. E, se os ornitorrincos pudessem ajudar a fazer Churchill reagir de forma mais favorável aos pedidos de apoio de Camberra, que assim seja.
O conservacionista australiano David Fleay (1907-1993) foi chamado para ajudar nesta missão. Mas ele se mostrou menos receptivo.
“Imagine um homem com as responsabilidades de Churchill, com a humanidade em apuros na Europa e na Ásia, encontrando tempo para pensar e até desejar meia dúzia de ornitorrincos”, escreveu ele no seu livro Paradoxical Platypus (“Ornitorrinco paradoxal”, em tradução livre), de 1980.

Crédito, Museu Australiano
Os relatos de Fleay indicam que ele conseguiu convencer os políticos a reduzir a quantidade de animais a serem transportados para o Reino Unido. De seis, apenas um ornitorrinco seria enviado de presente ao primeiro-ministro.
Pouco tempo depois, o jovem ornitorrinco Winston foi capturado em um rio perto da cidade australiana de Melbourne.
Foi construída para ele uma jaula sofisticada, com tocas cobertas de feno e água fresca de um riacho australiano. Foi preparado um menu de 50 mil vermes e creme de ovo de pata, para seu deleite.
Um assistente foi contratado para atender a todas as suas necessidades durante a viagem, que levaria 45 dias. E, do outro lado do planeta, Churchill se preparava para sua chegada.

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Na década de 1940, já se sabia que os ornitorrincos eram animais vorazes.
A lenda sobre o apetite da espécie era tão grande que as autoridades britânicas redigiram um anúncio oferecendo dinheiro às crianças que capturassem vermes para um imigrante tão especial.
O ornitorrinco Winston cruzou o Pacífico até o continente americano, atravessou o Canal do Panamá e chegou ao Oceano Atlântico. Foi ali que ocorreu a tragédia.
Em carta a Evatt, Churchill informou “consternado” que o ornitorrinco “gentilmente” enviado para ele havia morrido no trecho final da viagem.
“Sua perda é uma grande frustração para mim”, lamentou o primeiro-ministro.
O fracasso da missão foi mantido em segredo por anos, para evitar protestos públicos. Mas, com o tempo, começaram a surgir nos jornais relatos sobre a morte do animal.
A imprensa afirmava que o navio teria encontrado um submarino alemão e o ornitorrinco foi morto ao ser sacudido bruscamente por uma série de explosões.

Crédito, Renée Nowytarger/Universidade de Sydney
“Um pequeno animal, dotado de um bico repleto de nervos e extremamente sensível, capaz de detectar até mesmo os delicados movimentos de um mosquito que se arraste pelos riachos na escuridão da noite, não pode enfrentar as enormidades provocadas pelo homem, como explosões violentas”, escreveu Fleay, décadas depois.
“Evidentemente, não fosse pelas desgraças da guerra, o pequeno ornitorrinco, belo, vibrante e saudável, teria feito história como o primeiro da sua espécie a se estabelecer na Inglaterra.”
Mas esta história levantou suspeitas por muito tempo. E, para o estudante de doutorado Harrison Croft, era também irresistível.
Por isso, em 2024, ele embarcou na sua própria viagem: a busca pelo verdadeiro destino do ornitorrinco Winston.
Mistério desvendado
Consultando arquivos na capital australiana, Camberra, e em Londres, o estudante da Universidade de Monash, na Austrália, encontrou uma série de registros da tripulação do navio. Eles incluíam uma entrevista com o cuidador do ornitorrinco, encarregado de manter Winston com vida.
“Foi feita uma espécie de autópsia e ele foi muito meticuloso”, contra Croft. “Ele tinha absoluta certeza de que não houve nenhuma explosão, de que tudo estava calmo e em silêncio a bordo.”
Croft não era o único intrigado com a história. Em Sydney, na Austrália, outra equipe investigava a vida de Winston.
A coleção pessoal de David Fleay foi doada ao Museu Australiano, cujos funcionários ansiavam por saber se ela conteria respostas sobre a causa da morte do animal.
“Você subia os elevadores e algum doutor em mastozoologia perguntava: ‘Que evidências existem de que Winston morreu por detonações de cargas de profundidade?'”, conta à BBC o administrador do arquivo do museu, Robert Dooley. “Aquilo intrigou as pessoas por muito tempo.”
Com a ajuda de uma equipe de estagiários da Universidade de Sydney, eles se propuseram a digitalizar todos os registros de Fleay, para tentar estudá-los.

Crédito, Renée Nowytarger/Universidade de Sydney
No diário de bordo do encarregado do ornitorrinco, os estudantes encontraram evidências de que suas rações foram sendo reduzidas ao longo da viagem porque alguns dos vermes começaram a morrer.
Mas foram as temperaturas da água e do ar, registradas diariamente às oito horas da manhã e às seis da tarde, que trouxeram a chave para resolver o mistério.
As leituras foram tomadas em dois dos momentos mais frios do dia. Ainda assim, à medida que o navio cruzava o Equador, por cerca de uma semana, as temperaturas subiram muito além dos 27 ⁰C.
Hoje sabemos que esta temperatura é o limite de segurança para viagem do ornitorrinco.

Crédito, Museu Australiano
O benefício da visão em retrospectiva e de 80 anos de pesquisas científicas sobre a espécie fez com que a equipe da Universidade de Sydney determinasse que Winston, o ornitorrinco, basicamente foi cozinhado vivo.
É verdade que a história do choque submarino não pode ser definitivamente descartada. Mas eles afirmam que o impacto das altas temperaturas por tempo prolongado, por si só, teria sido suficiente para matar o animal.
“É muito mais fácil colocar a culpa nos alemães do que dizer que não o alimentávamos o suficiente, ou que não regulamos sua temperatura corretamente”, explica à BBC um dos estagiários, Ewan Cowan.
“A história depende totalmente de quem a conta”, agrega Paul Zaki, outro estagiário que participou da investigação.
Orgias de amor e corações despedaçados
A Austrália não se deixou vencer pela malograda tentativa inicial de diplomacia do ornitorrinco. O país tentaria fazer o transporte novamente em 1947.
Fleay estava eufórico por ter sido o primeiro a criar um ornitorrinco em cativeiro com sucesso. Sua façanha só seria repetida 50 anos depois.
Ele convenceu o governo australiano a permitir que o Zoológico do Bronx, em Nova York, recebesse três criaturas, para tentar aprofundar as relações entre a Austrália e os Estados Unidos.
Diferentemente da viagem secreta de Winston pelo Oceano Pacífico, a jornada do trio de ornitorrincos — Betty, Penélope e Cecil — despertou enorme atenção.
Eles atracaram em Boston, nos Estados Unidos, com grande pompa. De lá, os relatos da época contam que o trio foi escoltado de limusine até Nova York.
Ao chegarem, o embaixador australiano os aguardava para alimentá-los com o primeiro verme cerimonial.
Betty morreu pouco depois da chegada. Mas Penélope e Cecil rapidamente se tornaram celebridades.
Multidões ansiavam por ver os animais. Foi planejado um casamento e a imprensa sensacionalista acompanhava cada um dos seus passos.
Os ornitorrincos são animais solitários. Mas, em Nova York, a promessa é que eles se tornariam amantes.
Cecil estava apaixonado, mas Penélope, aparentemente, não estava atraída por ele.

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A imprensa retratou Penélope como “descarada”: “uma dessas fêmeas atrevidas que gostam de ter um macho à sua disposição”.
Por fim, em 1953, o casal teve quatro dias de encontros descritos de forma desconcertante, como “orgias de amor que duraram toda a noite”, alimentadas por “copiosas quantidades de caranguejos-de-água-doce e vermes”.
Penélope logo começou a formar ninho e o mundo esperava com entusiasmo seus filhotes. Seria um feito científico imenso: a segunda cria de ornitorrincos em cativeiro e a primeira fora da Austrália.
Por quatro meses, Penélope foi tratada como princesa, recebendo ração dobrada, até que os cuidadores do zoológico verificaram seu ninho, frente a uma multidão de jornalistas emocionados.
Mas eles não encontraram nenhum bebê. No ninho, estava apenas Penélope, aparentemente insatisfeita.
Ela foi sumariamente acusada de fingir a gravidez para ganhar mais vermes e deixar de se encontrar com Cecil.
“Foi tudo um escândalo”, conta Cowan. A reputação de Penélope nunca mais se recuperou.
Anos depois, em 1957, Penélope desapareceria do seu recinto, desencadeando uma missão de busca e resgate que durou semanas. Por fim, o zoológico a declarou “supostamente perdida e provavelmente morta”.
Um dia depois da suspensão das buscas de Penélope, Cecil morreu. A imprensa diagnosticou sua morte como tendo sido causada por “coração partido”.
A morte do casal pôs fim a qualquer possibilidade de futuro para a diplomacia do ornitorrinco.
O Zoológico do Bronx tentou repetir o intercâmbio com outros ornitorrincos em 1958. Mas os exigentes animais sobreviveram por menos de um ano e a Austrália decidiu endurecer as leis que proibiam sua exportação.
Os dois únicos ornitorrincos que saíram do país desde então vivem no Zoológico de San Diego, no Estado americano da Califórnia, desde 2019.
Fonte.:BBC NEWS BRASIL


