Além do nariz grande, herdei da minha família a obsessão pelo trabalho. Compreensível: meus antepassados vieram para o Brasil em situação de muita pobreza, só não passaram fome porque logo começaram a plantar o que precisavam.
Como dono de restaurante, meu pai enriqueceu, mas não de graça. Trabalhava dias de semana, domingos e feriados. Nem Dia das Mães e dos Pais celebrávamos, porque era quando o restaurante mais lotava. Nosso único momento de lazer era o domingo à noite, e sem muitas estripulias, já que segunda cedo meus pais cuidavam da parte burocrática do negócio.
Quando cheguei a São Paulo, com vinte e poucos anos, essa semente cultural encontrou solo fértil. Admitida como estagiária em uma agência de propaganda, descobri que precisaria me esfolar para conquistar um espaço.
E depois de conquistar esse espaço, me esfolar de novo para correr atrás de cargos, siglas e bens de consumo que nunca paravam de se renovar, naquele esquema bem azeitado do capitalismo que nos faz apertar parafusos dia e noite na ilusão de que conquistando mais isso ou aquilo, A Grande Satisfação vai chegar.
Comprei o pacote, se bobear trabalhando ainda mais do que meus pais, às vezes virando noite na agência por demanda dos meus chefes, como se fôssemos plantonistas de um pronto-socorro –a emergência de vender salsichas ou pacotes de telefonia imperdíveis para a população.
Foi nessa fase que desenvolvi uma curiosa insônia. Curiosa porque eu não tinha problemas com o sono. Se eu fizesse uma polissonografia, descobririam que meu REM era um sonho. Desde que eu não tivesse que trabalhar pela manhã. Como fui descobrindo, minha insônia girava em torno da ansiedade de dormir bem para dar meu máximo no dia seguinte.
Isso, claro, só fui entender depois. Nesse meio tempo, foi passando, pela linha mesa de cabeceira, um crescente: chás e florais de Bach, antidepressivos, benzodiazepínicos e soníferos que podem prejudicar de diversas formas a saúde de uma pessoa.
O coquetel Funcionária do Mês deu certo. Especialmente para os meus chefes, que deviam adorar ter alguém como eu na equipe. Quando saí da propaganda e fui tentar a vida na literatura, a coisa não melhorou, porque a minha chefe passou a ser eu e, como desde criança queria ser escritora, dei tudo o que podia. Lembro de uma vez estar com o dedo machucado e seguir escrevendo, o teclado sujo de sangue —que cena mais deprê.
Do que eu fugia? Do medo de ter que voltar para casa pedindo arrego e de mais coisas profundas, que não cabem aqui. Não precisei de arrego: dei certo na literatura e, com a arte, aprendi que não sou uma máquina. Ainda que às vezes queira produzir sem parar, o caráter indomável da arte me freia, lembrando que cada obra tem uma maturação e um tempo próprios, coisas que o reloginho miserável do sistema ou da Giovana não podem apressar.
Já me libertei dos tarja preta: agora, na minha cabeceira, só melatonina. E também me libertei do principal: a ilusão de que a Grande Satisfação vai vir com o sucesso profissional. Claro que ser bem-sucedido no trabalho ajuda, mas o que ninguém nos conta, porque não produz divisas, é que bom mesmo é ter paz de espírito, amar, ser amado e dormir tomando só um copinho de leite.
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Fonte.:Folha de S.Paulo