
Crédito, Reprodução/Instagram @jardsmacale
- Author, Tom Cardoso
- Role, De São Paulo para a BBC News Brasil
O cantor e compositor Jards Macalé, morto ontem, aos 82 anos, vítima de uma parada cardíaca, sofrida após um procedimento cirúrgico — ele estava internado no Rio de Janeiro, onde morava, para tratar um enfisema pulmonar —, não se destacou apenas como compositor.
Autor de canções icônicas como “Vapor Barato” e “Mal Secreto”, ambas em parceria com o poeta Waly Salomão, Macalé também se destacou como produtor e arranjador, sendo responsável pela concepção musical do disco Transa, considerado por muitos o melhor e mais importante disco de Caetano Veloso.
“Sem Macalé não haveria Transa“, escreveu Caetano em suas redes sociais, minutos após a confirmação da morte do compositor carioca.
O antológico disco, gravado em Londres, uniu e separou os dois músicos e amigos.
Eles ficaram mais de 50 anos sem se falar, trocando farpas pela imprensa, numa rinha iniciada por Macalé, que não se conformava com o fato de seu nome não aparecer na ficha técnica de Transa.
Os dois se reconciliaram nos shows comemorativos dos 50 anos de Transa.
Caetano convidou Macalé para subir no palco nas duas apresentações no Espaço Unimed, em São Paulo. O músico carioca foi ovacionado pelo público em vários momentos, como no solo de guitarra em “Nine Out of Ten”.
Por que Caetano não deu crédito a Macalé em Transa? Além do disco não existir sem o produtor, como reconheceu o baiano, eles eram grandes amigos — foi Macao, como era chamado na intimidade, quem ensinou Caetano a tocar violão.
“Havia muita intimidade com ele (…) Eu tinha muita timidez como músico, e com ele não ficava intimidado”, disse Caetano, em entrevista ao jornal O Globo, em 2012.

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De cabeça para baixo
Macalé e Caetano conheceram-se no verão de 1963, em Salvador. O compositor tijucano, de férias na Bahia, assustou-se com a timidez quase crônica do jovem artista baiano, que, apesar de ser um ano mais velho, se comportava como um calouro no primeiro dia de aula.
“A gente tocava um pouco de violão na sala e depois íamos para o quarto dele. Ele [Caetano] plantava bananeira, ficava de ponta cabeça na cama e dizia: ‘Vire também, Macao, vai começar a sessão”, lembrou Macalé, em depoimento ao livro Outras Palavras – Seis Vezes Caetano, de Tom Cardoso.
A luz que entrava pela janela projetava na parede do quarto tudo o que se passava no lado de fora – mas por conta de um fenômeno óptico, essa imagem era projetada de forma invertida, de modo que, para ver o que estava rolando, era preciso ficar de ponta cabeça, relatou o músico
“A gente ficava assim um tempão, vendo as imagens. Caetano mudo, no mais completo silêncio. Nos conhecemos assim”, contou Macalé.
Dois anos depois desse inusitado começo de amizade, Macalé hospedou Maria Bethânia em seu apartamento, em Ipanema.
A cantora havia acabado de chegar ao Rio para substituir Nara Leão no espetáculo Opinião. A amizade com os irmãos Veloso estreitou-se, mas o laço foi interrompido com a prisão de Caetano e o exílio em Londres.
Em 1970, Macalé voltava de uma noite de Carnaval quando recebeu uma ligação de Caetano. O baiano começaria a gravação de um novo disco e precisava imediatamente da presença do amigo no Chappelle ‘s Recording Studios.
Ele estava cheio de ideias na cabeça, mas só Macao seria capaz de organizá-las, de dar uma unidade ao disco.
Maconha, ácido e leite
A banda que tocaria em “Transa” formou-se no estúdio, no calor da hora. Uma seleção da música brasileira: Macalé no violão, Tutty Moreno na bateria, Moacyr Albuquerque no baixo e Áureo de Souza na percussão.
Responsável pela produção e arranjos, Macalé aproveitou o clima na cidade — a capital inglesa vivia ainda o rescaldo da Swinging London, como ficou conhecido o período de grande efervescência cultural e comportamental — para tomar todas as drogas possíveis. Logo ele, chamado para organizar o pensamento musical do careta Caetano.
“Caetano nunca fumou, nem cheirou, nem tomou ácido. Ele tem medo de ficar maluco, como se ele já não fosse louco. Mas ele pegava carona, ficava tão louco quanto a gente”, lembrou Macalé, em entrevista ao UOL, em 2017.

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Além de maconha, LSD e outros aditivos, os músicos consumiram litros e mais litros de leite.
“A gente ensaiava tomando leite para evitar contaminação. Tinha uma intensidade. Gravamos tudo praticamente ao vivo para pegar o calor da hora. É uma saudade da sua terra, da língua, do seu jeito de ser, do seu povo”, contou Macalé, na entrevista ao UOL.
Nesse clima de doideira, gravou-se um grande álbum, um dos maiores da discografia brasileira. Caetano, deprimido desde a chegada a Londres, se sentiu revigorado — e grato a Macalé.
“Era um trabalho orgânico, espontâneo, e meu primeiro disco de grupo, gravado quase como um show ao vivo. Foi Transa que me deu coragem de fazer os trabalhos com A Outra Banda da Terra”, disse Caetano, em entrevista ao Jornal do Brasil, em 1991.
“Tem ‘Nine out of Ten’, a minha melhor música em inglês. É histórica. É a primeira vez que uma música brasileira toca alguns compassos de reggae, uma vinheta no começo e no fim. Muito antes de John Lennon, de Mick Jagger e até de Paul McCartney”, afirmou o baiano.

Crédito, Reprodução/Instagram @caetanoveloso
O ‘desaparecimento’ de Macalé
Caetano e Macalé certamente gravariam muitos outros LPs juntos se o nome do músico carioca constasse na ficha técnica do disco. Não foi o que aconteceu.
O seu nome não aparecia em lugar nenhum, assim como o de Angela Ro Ro, também presente no estúdio.
Mas ao contrário da então jovem cantora, cuja participação se resumia a um solo de gaita na faixa “Nostalgia”, Macalé, além de tocar violão em todas as faixas, era o arranjador, o produtor e o grande organizador musical do disco.
Caetano, primeiro, colocou a culpa no produtor e artista gráfico Alvinho Guimarães, seu grande amigo, responsável pela capa de Transa.
“Como é que bota essa bobagem de dobra e desdobra, parece que vai fazer um abajur com a capa, e não bota a ficha técnica? Era importantíssimo”, disse, em 1991, em entrevista ao Jornal do Brasil.
Em 2006, durante entrevista coletiva na sede da gravadora Universal Music, responsável pela reedição do disco, Caetano argumentou que, na época da gravação de Transa , os nomes dos músicos não apareciam nas capas dos discos brasileiros. O baiano não deixava de ter razão.
“A ficha técnica do [disco] Gal-Fatal, de 1971, por exemplo, é bem confusa em relação aos músicos que tocam. Quem é o guitarrista de quais faixas? Lanny Gordin ou Pepeu Gomes?”, questiona o crítico musical Tárik de Souza, em depoimento à BBC News Brasil
“O caso mais escandaloso que me ocorre, já depois dessa época, é o do disco do João Gilberto gravada nos EUA, The best of two worlds, de 1976, em que ele está na capa com o Stan Getz e a Miúcha e o nome dela não aparece”, afirma.
A reconciliação
O fato é que Macalé, magoado profundamente com o descaso do amigo, rompeu a amizade. E não se calou. Reclamou diversas vezes pela imprensa.
O leonino Caetano, bom de briga, não deixou barato. A briga escalou, com trocas de acusações de ambos os lados.
Bethânia, Gil e Jorge Mautner, também muito próximos de Macalé, tomaram as dores de Caetano e se afastaram do convívio do autor de “Vapor Barato”.
Macalé e Caetano fizeram as pazes no aniversário de uma amiga em comum, a atriz Marieta Severo. Na mesma noite, o baiano convidou Macao para cantar nos shows comemorativos de Transa.

Crédito, Reprodução/Instagram @caetanoveloso
A idade não permitiu que ambos vissem um filme de ponta cabeça no sofá, mas os fraternos laços estavam retomados.
“Estou chorando porque ele morreu hoje. Foi meu primeiro amigo carioca da música”, escreveu Caetano, em seu Instagram.
Fonte.:BBC NEWS BRASIL


