
Crédito, Getty Images
- Author, André Biernath
- Role, Da BBC News Brasil em Londres
O conteúdo, que já ultrapassa 35 milhões de visualizações no YouTube, trouxe à tona um termo que se tornou centro das discussões — a adultização — e mobilizou parlamentares em Brasília, de diferentes espectros políticos, para acelerar a tramitação de projetos de lei para proteger crianças e adolescentes no ambiente digital.
Mas o que é a adultização e como ela compromete o bem-estar e desenvolvimento saudável das crianças?
“Nada mais é do que você acabar quebrando o ciclo da fase da infância dessa criança. A partir do momento em que a gente quebra o ciclo desse desenvolvimento, e faz essa criança ou adolescente entrar em um contexto adulto, a gente está colocando essa criança no processo de adultização”, explica Michelly Antunes, líder do programa Nossas Crianças, da Fundação Abrinq.
Esse processo pode acontecer de várias formas: seja ao sobrecarregar a criança com tarefas de adulto — como torná-la responsável por cuidar dos irmãos ou ajudar nas finanças de casa —, ao impor uma cobrança excessiva sobre desempenho escolar ou esportivo, ou ainda ao permitir que ela tenha acesso a conteúdos inadequados para a idade dela, como vídeos sexualizados.

Crédito, Getty Images
Guilherme Polanczyk, professor da Faculdade de Medicina da USP, afirma que muitos pais têm a ideia de que acelerar o desenvolvimento de uma criança pode torná-la mais madura.
“A gente vê isso em crianças muito pequenas, com um ano e meio, que os pais querem tirar fraldas […] Muitas vezes, têm a tendência [dos pais] de ficarem orgulhosos quando os filhos eventualmente não querem mais brincar. ‘Não, ele não gosta mais de brinquedo, só gosta de videogame’. Ou quando as crianças deixam de brincar e vão para as maquiagens.”
Mas, segundo Polanczyk, pular etapas não é saudável. Isso porque o nosso cérebro evolui conforme nos desenvolvemos — e, nos primeiros anos de vida, ainda não estamos preparados para lidar com pressões, tarefas e emoções que não são adequadas para nossa idade.
“Uma coisa importante é os pais terem esse conceito em mente de que a gente tem fases de desenvolvimento. Você não dá um pedaço de picanha para uma criança de seis meses, porque a criança simplesmente não tem condições físicas de digerir uma carne. E é essa visão que a gente tem sobre conteúdos, estímulos e experiências que vão além da capacidade dela”, exemplifica.
“Passar por todas as etapas do desenvolvimento, elaborar bem, vivê-las, certamente vai tornar alguém mais emocionalmente saudável, inteiro, e com mais recursos lá na frente.”
Os efeitos da adultização
Em um dos trechos, o documento menciona que a falta de condições básicas, como o sono, gera quadros relacionados à irritabilidade e à exaustão emocional nos mais jovens.
“Naquela época, o fenômeno era muito preocupante por causa, por exemplo, da primeira fase da industrialização, em que havia crianças trabalhando, crianças pequenas que deveriam estar na escola, em fornerias e metalúrgicas, em lugares insalubres”, explica Anderson Nitsche, neuropediatra no Hospital Pequeno Príncipe.
Com o passar dos anos, novos estudos revelaram que pessoas submetidas à adultização têm mais chance de sofrer de ansiedade, depressão, dificuldade de socialização, falta de empatia, problemas no processo de aprendizagem e dificuldade de atenção.
E quando esse processo envolve questões relacionadas à sexualidade, como acesso a conteúdos pornográficos, ou comentários sobre o corpo, pesquisas também observam prejuízos relacionados à autoimagem, à autoestima e ao risco de uma sexualização excessiva.
Ou seja, a adultização não apenas prejudica a pessoa no início da vida, mas acarreta consequências graves para a fase adulta.
O papel da internet
Embora a adultização seja um fenômeno antigo, ela ganhou uma nova dimensão com as redes sociais.
Com cada vez mais acesso às telas e à internet, as crianças passaram a ter contato com muito conteúdo — e, muitas vezes, viraram elas próprias criadoras e influenciadoras nas redes sociais.
A pesquisa recente, TIC Kids Online Brasil, realizada pelo Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br), mostrou que 93% dos brasileiros entre 9 e 16 anos, ou seja, mais de 24 milhões de crianças e adolescentes, são usuários da internet. E, desses 24 milhões, mais de 20% já acessaram a internet antes de completarem seis anos de idade.
Esse acesso precoce não vem sem consequências. Segundo Guilherme Polanczyk, da USP, as redes sociais desempenham um papel significativo na formação de desejos das crianças.
“As redes sociais acabam sendo um estímulo para objetivos, desejos e expectativas das próprias crianças. Dentro dessa ideia do consumo, tanto de produtos, como do consumo da imagem, do consumo do status, dentro de uma sociedade que envolve amigos, que envolve ser popular, que envolve ter dinheiro”, afirma.

Crédito, Reprodução/YouTube/@felcaseita
A busca por curtidas, comentários e compartilhamentos pode gerar alterações importantes no cérebro.
Pesquisas científicas indicam que a constante exposição às redes sociais ativa o circuito de recompensa do cérebro — e, em algumas pessoas, pode provocar uma enxurrada de dopamina, um neurotransmissor ligado ao bem-estar.
Esse mecanismo pode ser altamente viciante — já que a dopamina gera o desejo de repetir a experiência, com mais frequência e mais intensidade —, ainda mais em crianças, cujas estruturas cerebrais ainda estão em formação.
O córtex pré-frontal, por exemplo, região do cérebro responsável pela tomada de decisões lógicas e pelo pensamento racional, só se desenvolve completamente no início da vida adulta, entre os 20 e os 25 anos. Isso ajuda a entender, por exemplo, por que os jovens, mesmo quando já não são mais crianças, ainda são naturalmente mais impulsivos do que adultos mais velhos e fazem escolhas que parecem precipitadas.
Essas primeiras duas décadas de vida também são marcadas por emoções intensas, que estão relacionadas aos hormônios, e ao amadurecimento do sistema nervoso — fundamental para que o indivíduo seja capaz de lidar com uma série de desafios da vida adulta de forma equilibrada.
Como identificar uma criança ‘adultizada’
O neuropediatra Anderson Nitsche afirma que há sinais que os pais podem identificar em uma criança que passa por esse processo de adultização.
“Um deles é uma irritabilidade mais frequente, qualquer coisa irrita e ela fica brava, responde de forma grosseira, inapropriada. Tem também um certo embotamento, fica mais reclusa da própria família, a escola começa a reclamar que ela não brinca mais tanto com as outras crianças”, destaca.
No caso de exposição a conteúdos sexualizados, Nitsche afirma que as crianças costumam falar mais sobre o assunto e dizer palavras e jargões que são usados por adultos.
“Isso normalmente acaba impactando o próprio rendimento escolar.”
Segundo especialistas, caso os pais ou responsáveis percebam esses sinais, é importante observar se algo pode ser mudado no dia a dia pra garantir que a criança volte às fases de desenvolvimento esperadas pra idade dela. Isso envolve menos cobranças ou mudanças na forma de conversar e abordar temas sensíveis em casa.
Buscar a orientação de profissionais da saúde, como pediatras ou psicólogos, também pode ajudar nesse processo.
Como proteger as crianças

Crédito, Getty Images
Do ponto de vista coletivo, há uma discussão sobre como proteger os jovens do ambiente digital.
Evelyn Eisenstein, coordenadora do Grupo de Trabalho Saúde Digital da Sociedade Brasileira de Pediatria, defende a elaboração de políticas públicas e legislação para lidar com o tema.
“Criança nenhuma é robô, criança nenhuma é objeto de algoritmo. Temos que ter lei. Tem que ter moral, tem que ter limites. Então, uma vez que nós temos uma lei, as pessoas sabem como vão ser responsabilizados e a gente vai saber até onde vai.”
Vários projetos de lei sobre o assunto foram apresentados nos último anos. Atualmente, o que está mais avançado é o PL 2628, que já foi aprovado no Senado Federal e estabelece deveres de cuidado das plataformas digitais com os mais jovens, a remoção de conteúdos que violem os direitos dos menores de idade e a criação de mecanismos de controle parental.
“Nesse momento, existe um movimento internacional de regulação das mídias, do que nós chamamos de big techs. Estamos falando em problemas de saúde pública. Então temos que ter uma regulação. Os pais precisam entender do que se trata. A escola precisa entender do que se trata”, afirma Evelyn Eisenstein.
Plataformas como YouTube, Meta (Facebook, Instagram e WhatsApp) e TikTok afirmam ter políticas públicas para lidar para proteger a segurança das crianças.
À BBC News Brasil, o YouTube disse que a segurança infantil é uma prioridade e que a plataforma conta com uma política específica sobre o tema, que não permite conteúdos que coloquem em perigo o bem-estar emocional ou físico de menores, como material sexualmente explícito e atos perigosos. O YouTube diz também que, só em 2024, foram excluídos mais de 18 milhões de vídeos que infringiam a política de segurança infantil.
Já a Meta, que controla Facebook, Instagram e WhatsApp, declarou que não permite e remove conteúdos de exploração sexual, abuso, nudez infantil e sexualização de menores.
Por fim, o TikTok respondeu que só permite usuários a partir de 13 anos. Entre usuários de 13 a 18 anos, há configurações específicas pra preservar a segurança e o bem-estar, como limite de tempo de tela e restrição de recursos, além da funcionalidade de sincronização familiar.

Crédito, Getty Images
Já do ponto de vista individual, há uma série de cuidados que é possível ter na hora de compartilhar conteúdos envolvendo crianças na internet.
“Ah, mas eu não posso nem tirar uma foto? Eu acho que sim, é possível. Mas tendo muito cuidado de não focar muito, focalizar o rosto da criança, preferir fotos de longe, para que isso evite qualquer tipo de utilização dessa imagem de forma criminosa ou pejorativa. O que puder evitar de expor os filhos nas redes sociais nessas plataformas, eu acho que seria o mais adequado”, aconselha Michelly Antunes, da Fundação Abrinq.
Um estudo, feito na Universidade de Roma, na Itália, destaca que muitos pais fazem postagens sobre seus filhos com “pouco conhecimento dos riscos associados a essa prática”.
Ao entrevistar 228 pais, os pesquisadores descobriram que 98% deles tinham redes sociais, 75% publicavam conteúdos sobre os filhos e 31% começaram a compartilhar detalhes sobre a criança durante os seis primeiros meses de vida dela.

Crédito, Getty Images
O estudo chama a atenção para o fato de que o número de seguidores nas redes sociais é um fator que decisivo para o compartilhamento de vídeos e fotos da criança: quanto mais pessoas seguem esses pais, maior a probabilidade deles divulgarem materiais sobre os filhos com maior frequência.
E essa necessidade pode ficar ainda mais forte quando a família monetiza essa produção de conteúdo. Nesses casos, a necessidade de expor as crianças pode virar parte de um negócio, que depende da relevância — ou seja, de uma progressão em números de seguidores e interações nas plataformas digitais.
Entre 0 e 2 anos, o ideal é não oferecer esses dispositivos. Pra aquelas de 2 a 6 anos, é recomendado no máximo uma hora de tela por dia. Já pra meninos e meninas com mais de seis anos, há um limite de duas horas diárias.
“Vai passear com seus filhos, em um local com natureza. Vai ver a borboletinha, vai ver a cor da flor. Deixa essa criança descobrir o mundo, fora das telas. O gatinho que ela vê na tela é bidimensional. O gatinho que pula ali no colo dela é tridimensional”, destaca Evelyn Eisenstein.
Fonte.:BBC NEWS BRASIL