
Crédito, Serenity Strull/BBC
- Author, Sofia Quaglia
- Role, BBC Future
A situação em si já era constrangedora. E, depois de cinco horas de uma ereção constante, vieram as dores.
Inicialmente, os médicos ficaram perplexos com a situação apresentada por aquele homem de 46 anos de idade que foi parar no pronto-socorro de um hospital em Tamil Nadu, no sul da Índia.
Ele havia tomado o medicamento sildenafila (mais conhecido pelo nome comercial Viagra) para disfunção erétil antes de uma relação sexual com a esposa — seguindo a dosagem prescrita.
Quando souberam dos detalhes, os médicos descobriram que homem havia tomado um grande copo de suco de romã antes do remédio. Eles, então, o trataram com uma injeção para combater os efeitos e o aconselharam a dispensar o suco no futuro.
Este caso é apenas um exemplo de como os alimentos que ingerimos podem interagir com medicações de formas imprevisíveis.
Existem inúmeras referências na literatura médica que detalham eventos bizarros — e até preocupantes — de combinação de alimentos e remédios, produzindo efeitos colaterais incomuns.
Estes casos, em sua maioria, são relatos isolados de indivíduos específicos ou pequenos grupos.
Mas, agora, existe também um conjunto cada vez maior de pesquisas detalhando as diversas formas em que os alimentos, bebidas e ervas podem interagir com produtos farmacêuticos no interior do corpo humano.
Normalmente, os produtos farmacêuticos passam por décadas de testes e desenvolvimento para garantir sua segurança e eficácia. Mas existem milhares de tipos de drogas no mercado e milhões de combinações de alimentos diferentes.
Pesquisas científicas indicam que as interações alimentares podem ser uma importante ameaça à segurança e eficácia da farmacoterapia oral. E os especialistas estão apenas começando a acompanhar sistematicamente essas interações.
Alguns deles esperam poder aproveitar essas combinações para fazer os medicamentos funcionarem melhor do que quando tomados isoladamente.
“A maioria das drogas não é afetada pelos alimentos”, explica o professor de Administração e Prática Farmacêutica Patrick Chan, da Universidade Western de Ciências da Saúde, na Califórnia.
“É nos casos específicos em que certas drogas são afetadas pelos alimentos que precisamos ficar atentos”, segundo ele.
A Administração de Alimentos e Drogas dos Estados Unidos (FDA, na sigla em inglês) e a Agência Europeia de Medicamentos exigem que as medicações passem por testes de efeitos da alimentação.
Estes testes envolvem pessoas em jejum ou que ingeriram uma refeição com alto teor de gorduras e calorias — duas torradas com manteiga, duas fatias de bacon frito, dois ovos fritos, uma porção de batatas fritas e um grande copo de leite integral, por exemplo.
Mas testar tudo é quase impossível. E o metabolismo humano é complicado, lembra a pesquisadora Jelena Milešević, do Centro de Excelência de Pesquisa em Nutrição e Metabolismo de Belgrado, na Sérvia.
“É meio que uma pequena fábrica e você tem uma porção de insumos e muitos produtos”, explica ela.
Depois de todas as reações químicas do corpo, do alimento e do medicamento, aquilo “fica enorme e é muito difícil de separar”, segundo Milešević. Ela pesquisa como a vitamina D afeta os medicamentos no corpo e vice-versa.

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Os alimentos podem afetar as medicações de duas formas: eles podem interagir com os ingredientes ativos do medicamento ou podem alterar a forma em que o corpo reage em relação ao remédio.
Um exemplo bem conhecido é como a toranja e seu suco podem interferir com medicações, incluindo algumas drogas redutoras do colesterol, como estatinas, além de medicamentos usados para o tratamento da hipertensão arterial, como nifedipina e felodipina.
A fruta também interage com ciclosporina, uma droga usada para suprimir o sistema imunológico, evitando a rejeição após o transplante de órgãos, além de diversos outros produtos farmacêuticos amplamente empregados por pacientes em todo o mundo.
A toranja também pode aumentar a quantidade de medicamento disponível para absorção na corrente sanguínea e aumentar a potência da dose, incluindo em alguns remédios contra a malária, como artemeter e praziquantel, e drogas antivirais, como saquinavir.
Para isso, ela inibe uma enzima fundamental chamada citocromo P450 3A4, que é responsável pela decomposição de muitos tipos diferentes de remédios.
Isso pode gerar acúmulo das drogas até níveis que podem chegar a se tornar tóxicos, como ocorre com a substância para disfunção erétil sildenafila, mencionada no início desta reportagem.
“Sem esta enzima, as drogas ficam por mais tempo no corpo e as concentrações podem se tornar muito tóxicas”, segundo Maria da Graça Campos, chefe do Observatório de Interações entre Drogas e Ervas da Universidade de Coimbra, em Portugal.
E os sucos de frutas costumam apresentar interações mais potentes, pois são frequentemente concentrados. Com isso, eles contêm compostos ativos que interagem com medicamentos em níveis mais altos que a própria fruta.
É assim que também se acredita que os cranberries interagem com a varfarina.

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“A maior parte da literatura se limita a relatos de qualidade muito ruim que ignoram fatores óbvios de confusão”, segundo Anne Holbrook, diretora de toxicologia e farmacologia clínica da Universidade McMaster, em Hamilton, no Canadá.
Para responder a estas questões, é preciso reunir pelo menos algumas centenas de pacientes randomizados apenas com varfarina, em comparação com varfarina e cranberry, em cenários com produtos de cranberry padronizados, segundo Holbrook.
O tipo de suco (fresco, concentrado ou extrato), aliado à quantidade da fruta e ao momento do consumo, em relação à ingestão do medicamento, também pode afetar a interação, segundo o decano de Farmácia da Universidade de Sydney, na Austrália, Andrew McLachlan.
Em 2011, a FDA dos Estados Unidos atualizou suas orientações médicas para warfarina, retirando os alertas sobre cranberry. Mas o serviço de saúde pública do Reino Unido (NHS) continua a aconselhar os pacientes a evitar tomar suco de cranberry quando ingerirem o medicamento.
Infindáveis interações
O alcaçuz afeta medicamentos como a digoxina, remédio para doenças cardíacas, e alguns antidepressivos.
Todos estes motivos explicam por que as interações entre alimentos e medicações são mais bem compreendidas pensando nelas como um espectro.
“Não podemos pensar em interações de drogas como ‘tudo ou nada'”, explica Chan. “As interações com medicamentos são graduadas. Elas podem ser severas, moderadas ou pequenas.”
Em 2017, Campos descobriu outra estranha interação, quando um paciente medicado para artrite foi levado às pressas para o hospital com anemia e dores nos membros.
Ele havia tomado uma infusão de alcachofra, que interagiu com seu remédio para a artrite (colchicina), além de outros medicamentos que ele tomava para diabetes e hipertensão.
“Realmente, foi muito ruim”, ela conta. “Inicialmente, pensamos que ele pudesse precisar de um transplante de fígado. Foi muito, muito complexo.”
Por sorte, o paciente se recuperou totalmente e de forma espontânea.
Ervas e seus extratos, como infusão de alcachofra, são empregados na medicina tradicional e não são especificamente regulamentados, afirma Campos, mesmo que alguns deles sejam poderosos como drogas sintéticas.
Da mesma forma, Campos também estudou um caso clínico de interação de cúrcuma e um suplemento nutricional à base de algas chlorella com a medicação contra o câncer de um paciente, causando extrema toxicidade no fígado.
“É realmente muito importante que as pessoas compreendam que as ervas podem causar muitas interações”, orienta Campos.
Mas aqui, novamente, mais testes clínicos são necessários para observar se esses padrões são persistentes e generalizados ou, às vezes, apenas casos isolados.

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Nem sempre as interações tornam as drogas mais tóxicas ou perigosas. Elas também podem prejudicar o seu efeito.
A varfarina (além da sua controversa interação com cranberries) parece ter uma relação incomum com a vitamina K existente nas verduras. Quando a varfarina encontra a vitamina K na corrente sanguínea, sua eficácia é reduzida.
Isso não significa que os pacientes que consomem varfarina não devam comer verduras, mas a dosagem da sua terapia precisa ser calculada de acordo com sua alimentação habitual — que, por sua vez, também precisa permanecer constante.
“Você come muito mais verduras do que eu? O médico provavelmente irá aumentar sua dose de varfarina, para compensar o efeito das verduras”, explica Chan.
Pacientes que tomam uma classe de antidepressivos conhecida como inibidores da monomina oxidase (MAOIs, na sigla em inglês) também são normalmente aconselhados a adotar uma alimentação com baixo teor de alimentos fermentados e alguns queijos curados, devido aos seus altos níveis de tiramina.
Esta enzima altera a capacidade do corpo de metabolizar tiramina e pode acarretar picos da pressão sanguínea.
Leite e laticínios, como queijo e iogurte, podem alterar a forma de absorção de certos antibióticos (como ciprofloxacina e norfloxacina) pelo sistema digestivo.
Os pesquisadores do setor chamam este mecanismo de “efeito queijo”. E alimentos com alto teor de fibras, como cereais integrais, podem apresentar efeito similar.
As moléculas dos laticínios e das fibras, aparentemente, “abraçam” eficientemente as moléculas do medicamento nos intestinos, impedindo que elas entrem na corrente sanguínea, segundo Chan.
“A droga nem mesmo chega até o sangue, pois, nos intestinos, os produtos lácteos se unem à medicação e ela fica presa no intestino”, explica Chan.
A solução, segundo ele, é simples: os pacientes devem evitar o consumo de laticínios duas a quatro horas antes ou depois do antibiótico receitado.
“Você ainda pode tomar seu leite e comer seu queijo, apenas não ao mesmo tempo [que o remédio]”, segundo Chan.

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Estas interações podem parecer assustadoras, mas nem tudo está perdido.
Alguns pesquisadores esperam fazer uso das interações entre remédios e alimentos, bebidas e ervas que consumimos, na esperança de amplificar o efeito dos tratamentos farmacêuticos de formas úteis.
Os oncologistas, por exemplo, vêm tentando aumentar a eficácia dos tratamentos contra o câncer explorando a interação entre a comida e certos tratamentos.
O biólogo celular Lewis Cantley, da Faculdade de Medicina Harvard em Boston, no Estado americano de Massachusetts, descobriu que um processo regulador do crescimento celular, alvo de certas medicações contra o câncer, aparentemente reage melhor ao tratamento quando acompanhado por alimentos com baixo teor de açúcar.
“Os seres humanos evoluíram, centenas de milhares de anos atrás, para comer carnes e vegetais crus, que não causam rápido aumento da glicose após as refeições”, explica Cantley.
O câncer, provavelmente, era uma rara causa de morte milhares de anos atrás. E o aumento dos casos de câncer observado nas últimas cinco décadas, “muito provavelmente”, está relacionado ao aumento dramático do consumo de alimentos com carboidratos de rápida liberação, segundo ele.
Experimentos realizados por Cantley em 2018 com camundongos (que receberam uma dieta cetogênica, com baixo teor de carboidratos e alto teor de carnes e vegetais) apresentaram resultados preliminares promissores. O medicamento contra o câncer funcionou com mais eficácia com os camundongos em dieta.
Por isso, sua equipe vem testando os efeitos em um pequeno número de pacientes humanos, em sua start-up chamada Faeth Therapeutics. Ele chama o experimento de tentativa de “repensar a ciência do câncer, usando o metabolismo”.
Testes similares envolvendo embalagens prontas de refeições de Cantley também estão em andamento no Centro do Câncer Memorial Sloan Kettering, em Nova York, nos Estados Unidos, para o tratamento de mulheres com câncer do endométrio.
Mas existe um importante desafio pendente, que é a enorme quantidade de interações entre alimentos e remédios.
Para isso, Jelena Milešević chegou a juntar forças com uma equipe de biólogos computacionais para reunir todas as informações disponíveis sobre interações entre alimentos e remédios na literatura em um banco de dados organizado. A esperança é conseguir acompanhar melhor esses dados.
“Achávamos que seria mais fácil, mas não foi tão simples”, explica o biólogo computacional Enrique Carrillo de Santa Pau, do Instituto Alimentício IMDEA de Madri, na Espanha.
Ele trabalhou no projeto e conta que havia poucos bancos de dados disponíveis e nenhum deles apresentava coincidências consistentes.
A equipe acabou reunindo dados sobre milhões de interações entre alimentos e remédios em uma nova plataforma, para que os médicos pudessem ter acesso.
Este é um quadro complexo e ainda está em desenvolvimento. Mas, no futuro, ele poderá fazer com que os médicos consigam recomendar uma dieta que complemente o tratamento medicamentoso.
Enquanto isso, provavelmente é melhor dispensar o Viagra com suco de romã.
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Fonte.:BBC NEWS BRASIL