Nos 732 dias que se passaram desde que o Hamas abriu uma caixa de Pandora sobre todo o Oriente Médio ao atacar brutalmente Israel, o Estado judeu vive em um ritmo de campanha militar incessante.
Tal realidade não desafia apenas Binyamin Netanyahu, mas a sociedade israelense e qualquer pessoa que venha a ocupar o cargo do longevo primeiro-ministro, dado o paradoxo estabelecido com o zênite do poder bélico dos 77 anos de existência do país.
Por um lado, Israel nunca foi tão temido. Após duas décadas vendo o Irã fortalecer uma rede de aliados dispostos a destruir o rival, em dois anos o jogo foi invertido. O Hamas e, em menor medida, o Hezbollah libanês tiveram suas capacidades trucidadas.
Grupos com capilaridade na Cisjordânia ocupada, como a Jihad Islâmica, sofrem uma campanha de pressão inaudita. Os houthis do Iêmen mostraram talento militar assimétrico, mas são objeto de bombardeios constantes.
Até a ditadura de Bashar al-Assad na Síria, que servia de “hub” logístico para Teerã, caiu —e o enfraquecimento dos aiatolás foi vital para isso. Por fim, o próprio Irã, após duas trocas de fogo em 2024, foi atacado por Tel Aviv —e Washington.
A humilhação imposta à teocracia não foi conclusiva, e não se trata de comprar a retórica dos seus líderes. Vai demorar, mas com apoio russo e chinês o país pode recuperar parte de suas capacidades perdidas no campo de defesa antiaérea e de armas balísticas ofensivas, ficando a dúvida acerca do que vai acontecer com o programa nuclear.
Tal exibição de força militar, após a debacle de inteligência que não evitou o 7 de Outubro, tem implicações óbvias. Primeiro, os inimigos estão em retirada, mas são muitos e terão anos para se reagrupar.
Isso para não falar nas gerações que crescerão jurando vingança pela devastação imposta por Israel a Gaza. Se ali não há porque Israel temer a criação de um exército regular, basta lembrar o jogo de paciência empregado pelo Hamas para se armar e treinar ao longo dos anos.
Outro fator é a dependência dos Estados Unidos. Dados compilados pelo Council on Foreign Relations mostram que o país recebeu, desde sua fundação até março de 2024 mais de US$ 300 bilhões dos EUA, US$ 228 bilhões em armas e logística militar.
Isso leva a obrigações, ainda que abundem episódios em que os israelenses agiram por conta. Mas quando Trump resolveu pressionar de fato por um acordo, Netanyahu teve de aquiescer, mesmo sabendo dos riscos para a coalizão radical que o sustenta e mantém longe dos tribunais.
Há o isolamento, em dois graus. Primeiro, o mais amplo, com as acusações de genocídio, a hostilidade externa, além do aumento de ataques antissemitas e riscos terroristas. Mas é no Oriente Médio que a coisa se adensa, já que antes da guerra havia um caminho plantado pelo próprio Trump de alinhamento anti-Irã que culminaria na paz com a Arábia Saudita.
A soberba militar de Netanyahu ao atacar alvos do Hamas no Qatar, por mais que Trump tenha feito o premiê se desculpar ao vivo na Casa Branca, não será esquecida tão cedo. Riad, na prática, virou uma potência nuclear como Israel ao firmar um pacto com o atômico Paquistão na esteira da ação.
Assumindo que tudo isso está na conta, e que o Estado judeu vive em guerra desde sua fundação, o questionamento acaba sendo mais filosófico: a sofisticada sociedade civil do país quer a manutenção dessa realidade, ainda mais temperada com o sangue do morticínio em Gaza?
Lá Fora
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Pesquisas e manifestações indicam divisões profundas no país, que se refletem na composição do governo de Netanyahu. O pêndulo já esteve, em vários momentos da história, do lado da acomodação. Hoje, até pelo fracasso do arranjo mais recentes, dos anos 1990, o cenário é mais turvo.
Por fim, não menos importante, o paradoxo do fracasso. O 7 de Outubro começa com um e acaba com outro, se acabar, que é a obliteração de Gaza sem que de fato o Hamas tenha cessado de existir e os reféns israelenses tenham sido soltos, duas promessas do premiê. Isso pode até acontecer agora, mas o fiador terá sido Trump.
Fonte.:Folha de S.Paulo