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- Author, Giulia GranchiGiulia Granchi
- Role, Da BBC News Brasil em Londres
Se você fala mais de um idioma, já deve ter notado: sua voz não soa igual.
Pessoalmente, percebo que meu tom fica mais fino em inglês, mais sutil e pausado em francês, e mais animado e rápido em espanhol — como se cada língua revelasse uma faceta diferente da minha personalidade.
Segundo a linguística, essa percepção não é apenas subjetiva: nossos corpos, cérebros e até identidades se ajustam ao “papel” que cada idioma exige.
“É como o trabalho de um ator: incorporamos características da comunidade de fala e construímos ‘outro eu’ naquela língua. Somos nós mesmos, mas diferentes”, descreve Ana Paula Petriu Ferreira, professora da Universidade Tecnológica Federal do Paraná, que pesquisou no doutorado justamente por que mudamos de voz e se essa percepção é real.
Na linguística, explica ela, essas percepções são construções culturais. “O alemão, por exemplo, tem sons produzidos no fundo do trato vocal, o que transmite a impressão de dureza. Já o francês é mais ‘anteriorizado’ e com vogais arredondadas — daí o famoso biquinho.”
Como os sons são produzidos em diferentes idiomas
O modo como soamos em cada língua — e como nossas vozes são percebidas por outros — é resultado de vários fatores.
Primeiro, vale lembrar como a voz é formada: as pregas vocais geram o som, que é amplificado no trato vocal, articulado e transformado na fala que ouvimos.
“Tudo isso é controlado pelo sistema nervoso central e influenciado por aspectos emocionais: se estamos animados, nervosos, ansiosos ou tristes, a voz muda”, explica Renata Azevedo, fonoaudióloga e docente na Universidade Federal de São Paulo.
Ela aponta que fatores educacionais, regionais e culturais também têm grande peso.
“Cada idioma possui sons específicos: no inglês, por exemplo, há fonemas que não existem no português e vice-versa. Um falante de inglês pode ter dificuldade com o som ‘ão’ e transformá-lo em algo mais aberto, como ‘cal’ no lugar de ‘cão’.”
Além disso, há diferenças prosódicas e culturais. “O volume de voz num jantar italiano costuma ser mais alto do que num jantar japonês. Mesmo dentro de uma mesma cultura, a personalidade influencia — velocidade da fala, projeção vocal, articulação, melodia e até o uso de gestos.”
A identificação com a cultura de um idioma e o contexto em que ele é usado também moldam nossa sonoridade.
Ana Paula Petriu Ferreira, professora da Universidade Tecnológica Federal do Paraná, compara o processo ao trabalho de um ator. “Incorporamos características da comunidade de fala e construímos ‘outro eu’ naquela língua. Somos nós mesmos, mas diferentes.”
Segundo ela, esse “figurino vocal” envolve tanto a curva de aprendizagem da língua quanto afinidade cultural.
“Quando usamos uma língua estrangeira, normalmente é em um contexto específico, e isso influencia como queremos soar. No meu caso, uso inglês no trabalho e assumo características vocais diferentes das que uso com minha família. O contexto, o objetivo e o papel social influenciam muito.”

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A pesquisa de doutorado de Ferreira trouxe evidências concretas desse fenômeno.
Durante nove meses nos Estados Unidos, ela gravou brasileiros falando português e inglês em diferentes situações — como leitura de textos e falas espontâneas.
Os resultados mostraram que, ao falar português, os participantes, principalmente mulheres, tendiam a suavizar a voz, falando de forma mais leve e fluida.
Já em inglês, a voz ficava mais grave e firme, e algumas mulheres chegavam a adotar um efeito mais “arrastado” no final das frases, parecido com o que se ouve em falantes norte-americanos. Trata-se de um som mais lento, quase sussurrado, com um efeito de “chiado baixo”.
Para verificar se essas diferenças eram percebidas por outras pessoas, a pesquisadora reproduziu os trechos para ouvintes bilíngues.
Eles descreveram as vozes usando termos simples — mais grave, mais aguda, mais suave, mais firme — e também com impressões sobre a personalidade transmitida: empolgada, contida, confiante ou insegura.
A maior parte dos ouvintes percebeu diferenças claras entre as vozes em português e inglês, confirmando que a mudança vocal não é só impressão: é real, mensurável e visível mesmo para quem não sabe detalhes técnicos.
Segundo Ferreira, essa adaptação vocal também reflete diferenças culturais: brasileiros bilíngues, ao falar inglês, podem ajustar a voz para soar mais próximos das características percebidas como típicas de falantes dos Estados Unidos — mais graves, firmes e assertivos.
Ainda assim, a pesquisadora ressalta que essa é uma área pouco explorada, e que ainda há muitas questões sobre como aprendemos os elementos de ritmo, entonação e expressividade de uma segunda língua.
Falantes bilíngues
Mesmo quem cresce ouvindo e falando mais de um idioma desde muito jovem ainda apresenta pequenas variações vocais entre as línguas.
Segundo Ferreira, o bilinguismo é um conceito amplo, definido de formas diferentes dependendo do contexto.
“Pesquisas, como uma dos anos 1990 com catalão e espanhol, mostram que esses bilíngues têm menos variação de voz entre as línguas, mas sempre existe uma língua dominante — aquela em que a pessoa se sente mais segura e desenvolve melhor suas habilidades.”
Já quem aprende uma segunda língua mais tarde, na adolescência ou na vida adulta, tende a apresentar diferenças maiores entre a voz na língua materna e na nova língua, especialmente no início do aprendizado.
“Quando alguém está começando a aprender uma língua estrangeira, a voz se ajusta de formas mais evidentes, variando ritmo, tom e entonação entre os idiomas. À medida que a proficiência aumenta e a pessoa se sente mais confortável, essas diferenças diminuem”, explica Renata Azevedo, fonoaudióloga e docente na Universidade Federal de São Paulo.
Azevedo destaca ainda que a variabilidade da voz também depende do contexto de uso.
“O contato frequente com a nova língua é essencial. Quanto mais praticamos, mais natural se torna a adaptação vocal, permitindo que a ‘outra versão’ de nós mesmos em cada idioma se manifeste com segurança e fluidez.”
O que ajuda ao aprender um novo idioma
Aprender uma nova língua envolve mais do que estudar gramática e vocabulário.
Alguns fatores fazem grande diferença: praticar regularmente, se expor a situações reais de comunicação, ouvir falantes nativos, consumir música, filmes e literatura no idioma, e se aproximar da cultura associada.
Quanto mais contato você tiver com o idioma no dia a dia, mais natural se torna a adaptação vocal, a compreensão e a fluência.
Ana Paula Pedro Ferreira explica que quem aprende uma língua depois da adolescência tende a apresentar diferenças maiores na voz entre a língua materna e a nova língua, mas que isso diminui à medida que a proficiência aumenta.
O contato com falantes nativos e a imersão cultural são fundamentais. “O quanto nos aproximamos culturalmente de um povo faz com que consumamos muito dessa cultura — seja na maneira de falar, na literatura, na gastronomia, na música… isso acontece naturalmente e fortalece a aprendizagem”, explica Renata Azevedo.
Outro ponto essencial é prestar atenção às sutilezas da fala. “Muitas nuances linguísticas e prosódicas raramente são trabalhadas em aulas formais, mas fazem diferença na fluência e na forma como somos compreendidos”, destaca.
Quanto ao sotaque, ele nunca desaparece totalmente — e isso é natural.
“É possível minimizar o sotaque, mas ele também revela traços da nossa personalidade e de onde viemos”, afirma Azevedo.
Stella Esther Ortweiler Tagnin, professora da Universidade de São Paulo, reforça: “Quando você aprende já como adulto, domina a língua, mas sempre vai existir algum desafio com certos sons.”
Fonte.:BBC NEWS BRASIL