“Você já tentou vir aqui antes, não foi?”, pergunta Gaby à reportagem, que estava na entrada do restaurante Don Carlos em Buenos Aires, no bairro da Boca.
“Seja bem-vindo, quem insiste sempre consegue”, diz ela, enquanto divide o atendimento com o pai, Juan Carlos. Sua mãe, Marta, comanda a cozinha.
O endereço familiar, um dos restaurantes mais queridos do bairro, foi reaberto no fim de 2024, após um intervalo de quatro anos.
O pequeno edifício de paredes brancas e desenhos coloridos —um dos poucos do quarteirão a não se resumir ao azul e amarelo do time de futebol mais popular da Argentina, o Boca Juniors— tornou-se conhecido internacionalmente por atrair celebridades como a atriz Gwyneth Paltrow, o chef e apresentador Anthony Bourdain e o cineasta Francis Ford Coppola.
Coppola se encantou pela cidade e pelo bairro. Conheceu o restaurante da família em 2006, levado por amigos, e passou a frequentar o local uma vez por semana. “Diziam que era seu restaurante favorito na cidade. Não tinha um prato preferido, ele comia a opção do dia, como todo mundo, e sempre elogiava”, conta o dono.
O Don Carlos funciona até hoje em um sistema de menu fixo, com duas opções de prato principal por dia. Oferece uma experiência de refeição com uma atmosfera familiar.
O espaço foi inaugurado em 1970 como um armazém e, ao longo dos anos, tornou-se uma referência do bairro, pela sua abordagem diferente ao serviço, onde o dono abre a porta e acompanha os clientes até a mesa.
O restaurante ficou fechado por quatro anos, por conta da pandemia, o que levou a família a repensar o negócio. Eles decidiram não voltar ao modelo antigo, com mais mesas, e optaram por um ambiente mais íntimo.
Hoje funciona com só quatro ou cinco mesas, de quinta a domingo, das 12h30 às 14h30, e não aceita reservas. É recomendável chegar cedo, por volta das 12h, e estar preparado para esperar que alguma mesa fique livre ou voltar outro dia.
Segundo a família, a nova configuração visa proporcionar um acolhimento mais caloroso, como se o cliente tivesse saído para almoçar na casa de um amigo.
“Este edifício era, originalmente, a casa dos meus avós e meu pai cresceu aqui. Quando ele atende cada pessoa como se fosse a única no restaurante é por realmente querer fazer com que ela se sinta na nossa casa”, diz Gaby, que trabalha com os pais há duas décadas.
Os pratos servidos incluem clássicos da culinária argentina, como milanesas e empanadas, e massas italianas, que são preparados por Marta e servidos por Gaby e Juan Carlos, enquanto puxam conversa com os clientes.
Em uma visita em agosto, uma alternativa à milanesa de carne era o malfatti —massa gratinada que lembra um nhoque, feita com ricota e espinafre.
Já a sfogliatella, doce feito de massa folhada em forma de concha e recheio cremoso de ricota e semolina, sai direto do forno e chega à mesa ainda quentinha.
Gaby diz estar empolgada com a reabertura e quer que o novo Don Carlos mantenha a essência familiar, ao mesmo tempo que se adapta aos novos tempos.
“Hoje buscamos um equilíbrio entre seguir com o restaurante e aproveitar a vida, por isso optamos pelo funcionamento quatro vezes por semana. Disso também se trata a boa comida, é uma oportunidade de rever os amigos, passar um momento agradável e ser feliz”, diz.
A Argentina passa por um período de preços elevados, o que tem reduzido o turismo estrangeiro —de janeiro a julho, a queda foi de 31% na comparação com o mesmo período do ano passado, segundo o Indec (Instituto Nacional de Estatística e Censos).
Para os brasileiros, o câmbio é desfavorável, o que tem afetado o movimento em bares e restaurantes de toda Buenos Aires. No Don Carlos, a refeição —que incluiu pães caseiros de entrada, massa, sobremesa e um refresco— saiu pelo equivalente a R$ 157 (na cotação oficial).
Ainda assim, os donos relatam que clientes antigos estão retornando ao local após a reabertura e muitos novos também estão descobrindo o negócio.
Gaby também destaca que, embora haja um preconceito em relação à Boca, considerada mais insegura que outras áreas turísticas da capital argentina, o bairro possui uma energia única e vibrante que atrai artistas, estrangeiros e moradores de outras regiões.
A vocação gastronômica da Boca ganhou destaque com a série “Nada” (2023), da Disney+, em que Luis Brandoni dá vida a um crítico gastronômico que vive no bairro e que tem participação de Robert De Niro.
O casarão em que mora o protagonista fica nas esquinas das ruas Rocha com Pedro de Mendoza. Em uma cena, os atores observam o poente com a ponte Nicolás Avellaneda ao fundo, cartão-postal que fica a 900 metros do Don Carlos.
Um vendedor de artigos esportivos comenta que a Boca tem seu lado mais perigoso e que todo morador vai recomendar a um turista que não ande pelas ruas à noite, caso não conheça alguém do bairro, mas lugares como o Don Carlos são parte da identidade da vizinhança no sul portenho.
“Tentamos fazer com que o Don Carlos seja um espaço onde as histórias são compartilhadas e os laços são reforçados por meio da comida”, diz Gaby. “No fundo, é isso que representam o bairro da Boca, Buenos Aires e as raízes ítalo-argentinas.”
Fonte.:Folha de São Paulo