
Crédito, Universidade de Tel Aviv
- Author, Isabel Caro
- Role, BBC News Mundo
Uma descoberta revolucionária para a compreensão da evolução da nossa espécie e dos rituais humanos modernos.
É assim que um grupo de cientistas, em um estudo publicado em julho pela revista científica L’Anthropologie, define o crânio de uma criança que viveu 140 mil anos atrás, encontrado há quase um século em uma das cavernas do Monte Carmelo, no noroeste de Israel. O local é considerado o mais antigo cemitério conhecido.
A criança tinha três a cinco anos de idade. Ela teria sido enterrada intencionalmente naquela região do Levante, o corredor biogeográfico onde se misturaram fluxos genéticos de linhagens nativas e outros grupos provenientes da África e da Eurásia, durante o Pleistoceno Médio.
O crânio recebeu o nome de Skhūl 1° porque foi o primeiro fóssil encontrado pela arqueóloga britânica Dorothy Garrod (1892-1968) e pelo antropólogo físico americano Theodore McCown (1908-1969), que exploraram a região em 1931.
Segundo esta nova pesquisa, sua morfologia seria a evidência mais antiga conhecida da miscigenação entre o Homo neanderthalensis e o Homo sapiens.
É bem documentado que as duas espécies se misturaram e que nós, seres humanos modernos, temos uma herança genética neandertal entre 1% e 5%. Mas a época em que viveu Skhūl 1° faz toda a diferença.
“O que dizemos agora, na verdade, é revolucionário”, explica à BBC News Mundo (o serviço em espanhol da BBC) o paleoantropólogo israelense Israël Hershkovitz, professor do Departamento de Anatomia e Antropologia da Universidade de Tel Aviv, em Israel, que liderou a pesquisa.
“Nós demonstramos que o primeiro encontro entre os neandertais e o Homo sapiens não ocorreu há cerca de 50 mil anos, como se imaginava, mas sim pelo menos cerca de 100 mil anos antes, há 140 mil anos, o que é extremamente significativo.”
Mas nem todos os cientistas estão de acordo com esta conclusão.
Mosaico inclassificável
Skhūl 1° morreu com pouca idade, de causas naturais.
Não se sabe muito sobre como ele viveu. Também não é possível determinar ao certo qual doença pode tê-lo matado com tão pouca idade, nem seu sexo biológico.
O que se sabe é que ele teria sido enterrado ao lado de outras crianças e adultos no que se considera um cemitério coletivo, uma das descobertas mais significativas da paleoantropologia na região do Levante, no princípio do século 20.
A morfologia do seu crânio e sua mandíbula (que se separou acidentalmente do esqueleto durante a escavação e foi consolidada com gesso) foi reavaliada em um novo estudo, por meio de imagens de tomografia computadorizada e reconstruções virtuais em 3D, para esclarecer sua associação e sua taxonomia.
Ao compará-lo com os restos de outras crianças, Homo sapiens e neandertais, o grupo de cientistas liderado por Hershkovitz observou “uma natureza em mosaico das suas características morfológicas” e uma “dicotomia morfogenética” entre as duas partes.
Ou seja, enquanto a estrutura craniana da criança tinha, de forma geral, traços próprios do Homo sapiens, as características da mandíbula apontavam “forte afinidade” com o grupo evolutivo dos neandertais.

Crédito, Centro Dan David de Evolução Humana, Universidade de Tel Aviv
“A combinação de traços observada em Skhūl 1° pode indicar que a criança era um híbrido” entre neandertais e Homo sapiens, detalha o estudo.
Até o momento, a criança era classificada como ser humano moderno, mas os pesquisadores sugerem que é “quase impossível” classificá-lo em um ou outro grupo.
Hershkovitz explica que o termo “híbrido” não indica que ele fosse filho de um neandertal e um Homo sapiens, mas sim o resultado da miscigenação progressiva entre as duas espécies.
“Nós o chamamos de população com introgressão, o que significa que os genes de uma população penetraram lenta e gradualmente no outro grupo.”
“Por isso, na realidade, o que observamos em Skhūl é uma população quase sapiens, mas com maior proporção de genes neandertais”, defende ele.
Neste sentido, os pesquisadores propõem que a criança seja classificada como pertencente a um “paleodemo”, ou seja, uma população caracterizada por grande diversidade biológica, resultado da miscigenação, que merece ser reconhecida como um grupo particular dentro da espécie.

Crédito, Centro Dan David de Evolução Humana, Universidade de Tel Aviv
Os antecedentes do menino de Lapedo e de Yunxian 2°
Até o final dos anos 1990, era consenso científico que os neandertais e os seres humanos modernos não poderiam ter se cruzado, por serem duas espécies distintas.
Por isso, a descoberta, em 1998, do esqueleto quase intacto do menino de Lapedo, em Portugal, também com características mistas entre sapiens e neandertais, trouxe uma mudança radical para o nosso conhecimento da evolução.
O menino de cerca de quatro anos de idade viveu há cerca de 29 mil anos. Ele evidenciava uma clara hibridização entre os dois grupos.
A revolução confirmada por essa teoria veio na década de 2010, quando foi sequenciado o primeiro genoma neandertal. E, ao ser comparado com o de seres humanos de diferentes regiões do mundo, concluiu-se que 1% a 5% do DNA de populações não africanas provinham dos neandertais.
Se o menino de Lapedo nos mostrava um cruzamento recente na história da evolução humana, Skhūl 1° indica uma época muito anterior.
Em setembro, a revista Science publicou um estudo sobre Yunxian 2°, um crânio humano de um milhão de anos, encontrado na China. Ele sugere, segundo os cientistas, que o Homo sapiens começou a surgir pelo menos meio milhão de anos antes do que pensávamos.
Mas os pesquisadores que estudaram Skhūl 1° afirmam que esta descoberta não está relacionada com as conclusões do seu estudo.
“Ele não tem relação com o desenvolvimento, nem com a interação entre Homo sapiens e neandertais no Mediterrâneo oriental”, dizem os pesquisadores.
“O crânio chinês é supostamente muito antigo e, com certeza, não pertence nem ao Homo sapiens, nem a neandertal. Não surpreende que houvesse outras espécies de Homo caminhando sobre a Terra durante o Pleistoceno médio e superior.”

Crédito, Universidade Fudan
‘Pouco sentido biológico’
O professor de pesquisa Antonio Rosas, do Departamento de Paleobiologia do Museu Nacional de Ciências Naturais da Espanha, coloca em dúvida algumas das descobertas sobre Skhūl 1°.
Para o acadêmico, o fato de que os pesquisadores se baseiam em uma conjunção de uma base do crânio própria do Homo sapiens e uma mandíbula coerente com a anatomia neandertal é uma “mistura” que, segundo ele, “tem pouco sentido biológico”.
“A determinação genética da anatomia é complexa e não costuma ser distribuída tão hermeticamente em elementos ósseos isolados, como o crânio e a mandíbula”, explica ele.
Além disso, outro exemplo muito mais recente, também proposto como híbrido entre Homo sapiens e neandertal — o Lagar Velho, em Portugal —, mostra uma mandíbula inequivocamente de Homo sapiens, ao contrário de Skhūl 1°.
Para Rosas, a chave está na taxonomia e na interpretação do enterro que, como se sabe, sofreu alterações posteriores ao próprio sepultamento.
“A possibilidade de que a mandíbula de Skhūl 1° seja de um indivíduo neandertal que tenha ido parar no túmulo de um Homo sapiens deve ser considerada”, destaca ele.
É largamente reconhecido no mundo científico que um dos grandes desafios do estudo da evolução é a capacidade de recuperar o DNA de fósseis antigos.
“Sem dúvida, aqui há um problema metodológico”, prossegue Rosas. “A hibridização entre espécies humanas nunca foi declarada de forma incontestável com dados paleogenômicos.”
“Apenas com dados morfológicos, atualmente é difícil assegurar estes fenômenos. Desconhecemos, em grande parte, como a combinação das informações genéticas de neandertais e Homo sapiens se expressa na anatomia.”
Outros cientistas expressaram preocupações similares em diferentes revistas científicas. Eles solicitam a análise do DNA de Skhūl 1° para verificar as conclusões deste novo estudo.

Crédito, Mike Kemp/In Pictures via Getty Images
A colaboração e as práticas mortuárias
Além de chamar a atenção para uma suposta hibridização precoce na evolução humana recente, Skhūl 1° também fornece informações valiosas sobre dois outros elementos: a colaboração entre os dois grupos e novas perspectivas sobre práticas culturais historicamente associadas ao ser humano moderno.
Hershkovitz destaca que “o mais dramático e mais importante é que, agora, sabemos que os dois grupos conseguiram viver lado a lado por um período de tempo muito longo”.
Para ele, esta descoberta continua contrariando o paradigma de que o Homo sapiens seria uma espécie que se impôs sobre as demais pela “lei do mais forte”.
“Esta é a verdadeira surpresa, pois, durante muito tempo, os antropólogos pensaram que os Homo sapiens fossem os únicos responsáveis pela eliminação de todos os outros grupos de Homo na Terra”, destaca Hershkovitz.
“Eles não desapareceram porque éramos uma espécie agressiva que os expulsou, deslocou ou pressionou até a extinção. Pelo contrário.”
“Basicamente, o que aconteceu é que fomos assimilando essas pequenas populações nos grupos maiores de Homo sapiens e, pouco a pouco, eles desapareceram”, afirma ele.
O estudo também destaca que Skhūl 1° foi enterrado no que é interpretado como um cemitério coletivo, onde os mortos eram sepultados com oferendas. Isso indica um sentido de pertencimento grupal e respeito com as crianças, além de um possível comportamento territorial precoce.
“Ao contrário do paradigma dominante, as práticas mortuárias mais antigas conhecidas, envolvendo sepultamentos, não podem ser atribuídas exclusivamente ao Homo sapiens em relação ao Homo neanderthalensis“, afirma o estudo.
“Por muitos anos, consideramos o cemitério uma invenção muito recente da cultura humana. O cemitério implica estratificação social, crença na vida após a morte, muitas coisas sobre a cultura humana, sua natureza, suas crenças, sua psicologia”, explica Hershkovitz.
“E, aqui, precisamos reconhecer: nós já tínhamos isso 140 mil anos atrás.”
Fonte.:BBC NEWS BRASIL


