
Crédito, Domínio público
- Author, Edison Veiga
- Role, De Bled, para a BBC News Brasil
Com uma voz calma e um sorriso no rosto o pastor cristão sul-africano Joshua Mhlakela anunciou há três meses em uma plataforma de conteúdo digital: segundo sua profecia, o fim do mundo tem data e ocorrerá na virada do dia 23 para o dia 24 de setembro.
No vídeo de quase 59 minutos, veiculado no YouTube pela Centtwinz TV, o religioso é entrevistado por duas apresentadoras. Mhlakela conta que viu Jesus sentado em um trono e ouviu dele a mensagem: “Estou chegando em breve”.
Com a narrativa conhecida como “arrebatamento”, comum no meio evangélico, a profecia do fim do mundo tomou conta das redes sociais, especialmente do TikTok e do X (antigo Twitter) — e, de forma mais contundente, nos Estados Unidos, e também em países africanos e na Índia.
A data anunciada pelo pastor coincide com o Rosh Hashaná, o Ano Novo Judaico. E isso não é uma coincidência. Tradicionalmente, a festa judaica está associada ao toque das trombetas — o shofar — para anunciar o tempo vindouro.
Na interpretação de parte dos cristãos, portanto, essas trombetas seriam as mesmas que aparecem no Novo Testamento como o símbolo do anúncio de uma volta triunfal de Jesus.
Na primeira carta que o apóstolo Paulo de Tarso (5-67 d.C.) escreveu aos protocristãos da cidade de Tessalônica, parte da Macedônia no antigo Império Romano, há um trecho que diz “porque o mesmo Senhor descerá do céu com alarido, e com voz de arcanjo, e com a trombeta de Deus, e os que morreram em Cristo ressuscitarão primeiro”.
E prossegue: “Depois nós, os que ficamos vivos, seremos arrebatados juntamente com eles nas nuvens, a encontrar o Senhor nos ares, e assim estaremos sempre com o Senhor”.
Para os que creem na profecia do arrebatamento, portanto, este fim do mundo tem contornos de consolo. Afinal, os crentes seriam reunidos com os que morreram na fé e todos levados juntos para estar junto a Deus.
A voz de Mhlakela não é um caso isolado. O crescimento do evangelismo neopentecostal — com uma ênfase a encarar trechos bíblicos de forma literal —, a onipresença das redes sociais que amplificam teorias de todo modo e o mundo em situação de catástrofe — com crise climática e guerras — tem sido a mistura perfeita para potencializar profecias de fim do mundo.
Esse tipo de alarde, portanto, faz parte do contexto do mundo atual. “Temos de perceber que vivemos em uma sociedade cada vez mais aterrorizada. O maravilhamento e o terror costumam vir juntos na experiência humana, diante daquilo que parece um mistério incompreensível, aquilo que supera as nossas vontades e planejamentos”, comenta à BBC News Brasil o sociólogo da religião Francisco Borba Ribeiro Neto, ex-coordenador do Núcleo Fé e Cultura da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
Ribeiro Neto compara a experiência do ser humano contemporâneo com a daqueles que viviam em tempos antigos. Se antes havia o desconhecido pela “experiência do contato com o poder da natureza”, agora há a percepção de que “o mundo criado pela ciência” também é um mundo onde “a vontade do indivíduo conta pouco”.
“Isso se agrava nos tempos atuais pela grande frustração em relação a vários mitos e ilusões de modernidade do século 20”, analisa ele. “Por exemplo, a ideia de que o desenvolvimento socioeconômico traria com certeza abundância e prosperidade para todas as sociedades.”
No meio desse caldo, questões como o aquecimento global “criam a mesma ideia de insegurança”, “o medo do futuro e também do próprio presente”. O sociólogo comenta que essa sensação é compartilhada tanto por grupos progressistas quanto por conservadores.

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O fim está próximo?
“O arrebatamento está próximo, esteja você pronto ou não”, disse Mhlakela.
Não é um pensamento solitário.
A cantora Baby do Brasil, por exemplo, que também é pastora evangélica, declarou no ano passado que “nós entramos em Apocalipse”. Segundo ela, “o arrebatamento tem tudo para acontecer entre cinco e dez anos”.
Influenciador digital e pastor da Igreja Internacional da Graça de Deus, o religioso Antônio Júnior tem um vídeo no YouTube chamado “O Arrebatamento Está Próximo? – Descubra quando será o arrebatamento segundo a Bíblia”. No material, ele contextualiza as diferentes interpretações bíblicas para o fim do mundo.
Segundo ele, há uma vertente que acredita que os cristãos serão arrebatados antes do momento de tribulação — e estes, “santos”, retornariam à Terra junto com Jesus para salvar o restante da humanidade. Outra, “defende o pensamento de que a Igreja passará pela primeira metade da tribulação” — o que seriam três anos e meio, metade de sete anos. A ideia por trás dessa teoria é a de que o cristão “precisa ser provado para provar sua fidelidade” a Deus.
A terceira visão é a de que os cristãos também passariam por todos os “sofrimentos previstos na Bíblia” nos sete anos que antecederiam a volta final de Jesus.
Antônio Júnior não crava uma data. Diz que acredita na primeira interpretação, ou seja, que os cristãos “seremos levados ao céu quando o Anticristo for revelado”, antes “de começar a tribulação” e cobra que “devemos sempre estar preparados, todos os dias”.
Entre os que acreditam na teoria, contudo, não há consenso sobre como vai acontecer isso — e muito menos sobre quando. O autor de best-sellers Hernandes Dias Lopes, teólogo e pastor presbiteriano, declarou a um site gospel que, se não é possível prever uma data para o cumprimento da profecia, os sinais do fim do mundo já estariam cada vez mais presentes.
Lopes citou especificamente a ocorrência de terremotos, guerras e a “falta de amor no mundo”, como “evidências” de que “em breve” Jesus voltará. Até a pandemia de covid-19 foi lembrada por ele como um indício. Ele alertou, contudo, que embora “muitos” queiram “marcar uma data para a volta de Cristo”, os humanos “não temos o calendário de Deus nas mãos”.
Essa ideia de que “o fim está próximo” se baseia principalmente na interpretação do último dos livros da Bíblia, o Apocalipse. Entre os capítulo 6 e 16, o livro descreve uma série de tragédias, como guerras, pragas, fome e terremotos. Esses eventos catastróficos seriam o indício da proximidade do fim dos tempos.
Apresentador de rádio e bispo da Igreja Universal do Reino de Deus, o religioso Sergio Corrêa publicou em sua página no Facebook há alguns meses que “Deus levará os seus no arrebatamento” e “em breve isso vai acontecer, o arrebatamento”. Segundo ele, a “igreja está se despedindo”. “Prepare-se”, recomendou.
Já o professor de teologia no Instituto Bento 16, em Lorena, e escritor famoso, o padre Paulo Ricardo (não confundir com o cantor pop de mesmo nome), publicou em seu site um texto a respeito, frisando que os católicos rechaçam a ideia do arrebatamento.
O pastor sul-africano Mhlakela não é o primeiro religioso dos tempos atuais a previr o arrebatamento. O pastor e apresentador de TV e rádio norte-americano Harold Camping (1921-2013) ficou famoso por dizer que o mundo acabaria em 2011, alegando que a profecia era resultado de cálculos que ele havia realizado a partir de um estudo bíblico. Curiosamente, em 1992 ele tinha publicado um livro chamado 1994?, no qual levantava a hipótese de que o retorno de Jesus para o arrebatamento ocorreria naquele ano.
Celebridade do mundo gospel norte-americano, o apresentador de TV Jack Van Impe (1931-2020) defendia a teoria de que o papa Francisco (1936-2025) seria o último da história, o que comandaria a Igreja Católica no fim dos tempos. Antes, ele havia profetizado que Jesus voltaria entre 2001 e 2012.
Para o sociólogo Ribeiro Neto, o contexto atual tem levado mais e mais as pessoas a “uma dissociação cognitiva”, “uma incapacidade de olhar com realismo e racionalidade a tudo o que está acontecendo em volta”. “Nesse contexto, teorias de final do mundo, de escolhas de alguns privilegiados que poderiam escapar das catástrofes e coisas do tipo, vão se tornando cada vez mais presentes”, afirma ele.
Curiosamente, o efeito social é diferente se comparado ao que ocorria com as mitologias do passado. “Enquanto no mundo antigo a comunidade inteira compartilhava certos mitos — e fantasias mitológicas ajudavam a comunidade a se fortalecer enquanto grupo social —, agora esses mesmos mitos surgem como alternativa escapista de alguns grupos específicos”, compara ele.
“Aquilo que era um processo social, global, agora é um processo cada vez menos racional e cada vez mais restrito a algumas bolhas sociais”, diz Ribeiro Neto.

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O que é a teoria
Nas redes sociais, o tema do arrebatamento viralizou, sobretudo nos Estados Unidos. Há gente se perguntando se os animais de estimação dos crentes também serão arrebatados ou se eles acabariam deixados para trás em um mundo de tribulações. Há ainda vídeos de gente chorando em desespero e outros clamando pela conversão de todos.
Outros conteúdos mostram pessoas pedindo demissão de seus empregos ou mesmo vendendo tudo porque “o mundo vai acabar”. Evidentemente que o tema também é gatilho para anedotas, piadas e todo tipo de humor caça-clique comum em tempos de redes sociais.
O sacerdote Paulo Ricardo lembra que a ideia do arrebatamento foi trazida pelo pastor protestante anglo-irlandês John Nelson Darby (1800-1882) e depois popularizada graças às notas de rodapé da edição da Bíblia produzida pelo teólogo e pastor fundamentalista norte-americano Cyrus Ingerson Scofield (1843-1921).
Ao longo do século 20, pastores midiáticos disseminaram essa interpretação em programas de rádio e TV. “Embora haja algumas variações, geralmente a doutrina do arrebatamento ensina que, a qualquer momento, Jesus Cristo retornará à terra subitamente e de forma invisível. Nesse momento, todos os fiéis serão levados ao céu em corpo e alma para se unir a Cristo e somente serão arrebatados os que forem salvos”, diz o texto publicado no site do padre.
Em entrevista concedida à BBC News Brasil em 2024, o teólogo, filósofo e historiador Gerson Leite de Moraes, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie, explicou que o texto bíblico sobre o arrebatamento precisa, “assim como toda leitura bíblica”, ser observado no contexto histórico.
Ele explica que o apóstolo Paulo vivia um problema naqueles primeiros anos de cristianismo: as pessoas estavam abandonando seus afazeres para simplesmente aguardarem “a volta de Cristo”. “[Ele então] tentou de alguma maneira dizer: continuem vivendo, porque ninguém sabe quando isso vai acontecer”, afirma Moraes. “Aí ele escreve essa passagem falando desse suposto encontro entre os que estiverem vivos e Jesus.”
É preciso pontuar que Paulo, assim como muitos daqueles cristãos, tinha confiança de que Jesus voltaria enquanto ele ainda estivesse vivo.
“A questão do arrebatamento é uma doutrina muito polêmica, muito disputada, absolutamente não consensual”, esclarece à BBC News Brasil o sociólogo Edin Sued Abumanssur, líder do Grupo de Estudos do Protestantismo e Pentecostalismo da PUC-SP, em entrevista realizada em 2024.
Fonte.:BBC NEWS BRASIL