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- Author, Edison Veiga
- Role, De Bled (Eslovênia) para a BBC News Brasil
As três grandes religiões monoteístas (cristianismo, islamismo e judaísmo) são machistas? A resposta mais curta e direta: pode-se considerar que sim, porque elas espelham valores das sociedades que as criaram e as moldaram.
E, justamente porque a religião se baseia em um repositório doutrinário, elas custam mais a se adaptarem às transformações sociais e culturais.
Mas é possível ir mais fundo nesse debate para entender melhor as fundamentações dessas três grandes religiões monoteístas acerca da ideia de inferioridade feminina.
A freira agostiniana, filósofa e teóloga feminista Ivone Gebara, autora de As Incômodas Filhas de Eva na Igreja da América Latina lembra estudos de antropólogas que confirmam que “nos primeiros tempos a divindade maior era a feminina ligada aos corpos femininos capazes de gerar”.
“A primeira estátua de barro a ser venerada é a de uma mulher em cócoras dando à luz”, salienta ela, à BBC News Brasil. “A criação era entendida como obra do feminino. E, em certo sentido, isso é confirmado pela ciência biológica que afirma a primazia do feminino na criação da vida.”
Mas as religiões que acabaram se institucionalizando, como o judaísmo, o cristianismo e o islamismo, trouxeram a ideia de um deus macho. “Como chegamos aos monoteísmos e a sua adoração a divindades masculinas? Parece que o caminho foi longo e temos muitas hipóteses”, prossegue a teóloga.
Isso teria começado a ocorrer 8 mil anos atrás, segundo ela. Justamente em um momento em que, naquelas civilizações primitivas do Oriente Médio, a força física passou a ser vista como algo mais importante — para lavrar a terra, para conquistar outras terras, para manter a posse, para escravizar, para guerrear.
“Interessante notar que da harmonia conflitual da natureza liderada pelo feminino plural foi nascendo uma desconfiança da matéria até se criar o mundo das ideias, das divindades, do espírito”, reflete Gebara. “Consequentemente esse mundo forma-se através de hierarquias especialmente masculinas.”
Autor do livro A Constituição de Medina e pesquisador na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), o cientista da religião Atilla Kus diz à BBC News Brasil que “a raiz comum que possa justificar” uma ideia religiosa de suposta inferioridade feminina é “o contexto histórico […] em que a força física contava mais do que a força intelectual”.
“Nesse sentido, a mulher não participava tanto quanto o homem da vida social, comercial e econômica”, comenta.
Na definição do teólogo e historiador Gerson Leite de Moraes, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie, “o patriarcalismo antecede as organizações religiosas”.
“Se olharmos para uma perspectiva antropológica, […] as primeiras civilizações já realizavam uma divisão do trabalho, e essa divisão separava homens e mulheres”, contextualiza ele, à BBC News Brasil.
Nessa divisão, os papéis masculinos acabaram sendo aqueles mais ligados ao âmbito externo.
Quando as religiões foram criadas, elas respondiam a essa organização de mundo. “Assimilaram os valores sociais que estavam postos. No final das contas, as religiões, de maneira geral, privilegiam uma visão masculina”, pontua Moraes.
“Na verdade, essa desigualdade não tem origem exclusiva nas religiões, mas sim nas estruturas sociais mais antigas da humanidade. Desde os tempos primitivos, a diferença física entre homens e mulheres, especialmente no que diz respeito à força física, contribuiu para que os homens assumissem posições de liderança nas sociedades tribais, agrícolas e posteriormente urbanas”, acrescenta à BBC News Brasil o advogado e pesquisador Amir Mazloum, cofundador do podcast de cultura islâmica Salamaleiko.

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Gênesis
A base do debate está no pentateuco, um conjunto de cinco livros milenares considerados sagrados que compõem a Torá judaica e estão no início do Antigo Testamento da Bíblia cristã: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio.
“As religiões são muito diversificadas e mesmo aquelas que têm por base comum o pentateuco fazem leituras diferentes a partir de pressupostos diferentes do mesmo texto”, contextualiza à BBC News Brasil o rabino Uri Lam, da congregação israelita Templo Beth-El, de São Paulo.
“Existem muitas formas de se ler, comentar e interpretar o texto bíblico. O texto é o mesmo, mas ele está exposto a interpretações de várias sociedades, com várias influências diferentes. Está exposto no tempo e no espaço a leituras”, ressalta ele.
Por isso algumas passagens são consideradas mais problemáticas do que outras. Por isso um texto pode ser entendido como aquele que deixa a mulher num papel frágil — e o mesmo trecho acaba sendo utilizado também para valorizar o papel da mulher.
No livro do Gênesis, por exemplo, há o mito da criação do mundo. O texto é entendido por pesquisadores contemporâneos como uma colagem de tradições orais da época e, por isso, conta a mesma história de Adão e Eva no Paraíso duas vezes, na sequência — com nuances um tanto distintas.
No capítulo primeiro, está escrito que Deus criou “homem e mulher”, “os abençoou” e mandou que eles se multiplicassem, sendo responsáveis por dominar todas as demais criaturas.
Mas aí no capítulo seguinte, há a narrativa de que Deus criou o homem, Adão, fez com que ele caísse “em sono profundo”, retirou uma de suas costelas e fez dela a mulher, Eva.
“No primeiro texto, homem e mulher são iguais. No segundo, o homem é superior à mulher”, afirma à BBC News Brasil a teóloga Tereza Maria Pompeia Cavalcanti, professora aposentada na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ).
Há um deslocamento no discurso. A mulher deixa de ser também criatura “à imagem e semelhança” do divino para ser apresentada como uma auxiliar feita para que Adão não ficasse sozinho.
Contudo, o Gênesis foi exaustivamente interpretado de muitas e muitas formas ao longo dos milênios. E há quem veja essa ideia da costela também como um sinal de igualdade — pela localização anatômica, no meio do corpo. Ou mesmo a narrativa como indicando uma complementaridade simbiótica entre masculino e feminino.
A freira Andreia Cristina de Morais, pedagoga, teóloga e professora na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG) frisa à BBC News Brasil que “em nenhum momento a antropologia bíblica afirma que a mulher é inferior ao homem”.
“Esta equívoca interpretação deriva do modo de compreender o texto bíblico da criação do homem e da mulher no livro de Gênesis”, comenta. “Os dois relatos são totalmente diferentes, pois, no primeiro, homem e mulher são criados juntos e, no segundo, Deus cria primeiro o homem e depois a mulher.”
Morais explica que a palavra em hebraico “tsela”, que costuma ser traduzida como costela também pode ser lida como “lado”. “Portanto, no texto de Gênesis, entende-se que Deus formou a mulher não somente de uma parte do osso do homem, mas do seu lado, isto é, a mulher não é inferior ao homem, e sim, alguém que participa da mesma natureza, destacando a reciprocidade, a paridade e a alteridade entre homem e mulher”, interpreta ela.
“A partir da análise literária da antropologia apresentada no livro de Gênesis, pode-se concluir que o ser humano é criado por Deus com igual dignidade; homem e mulher são igualmente imagem e semelhança de Deus, isto é, não há superioridade ou inferioridade, mas sim paridade e reciprocidade, ambos participam da mesma dignidade de criaturas e filhos de Deus”, argumenta a freira.
“Ao ser tirada do lado do homem, há uma visão de que a mulher foi feita correspondente ao homem, em situação de igualdade”, frisa à BBC News Brasil a linguista Ana Azevedo Bezerra Felicio, autora do livro O Amor Não Está à Venda, integrante da Associação Brasileira de Cristãos na Ciência e fundadora do Projeto Agostinhas, em que mulheres cristãs e negras fomentam a discussão do racismo e sua relação com a fé cristã evangélica.
“O que gosto do texto bíblico é que ambos, homem e mulher, compartilham a mesma dignidade, feitos à imagem de Deus, e a identidade, ou seja, foram criados por Deus. Então a distinção entre os sexos não implica na superioridade de um ou de outro”, afirma à BBC News Brasil o pastor adventista Jorge Miguel Rampogna, diretor de Comunicação, Liberdade Religiosa e Assuntos Públicos da Igreja Adventista do Sétimo Dia na América do Sul.

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Mas o debate não se apresenta somente neste trecho. A narrativa prossegue com a expulsão do primeiro casal do paraíso por um descumprimento de uma ordem de Deus. E, segundo o livro sagrado, foi Eva quem primeiro mordeu a maçã e depois a ofereceu a Adão.
“Tudo o que se refere a sexualidade, em especial a feminina é criticável depois do mito adâmico em que Eva tomou o fruto proibido e o deu a Adão. Esse mito ainda é uma grande referência e de certa forma a chave das proibições do poder das mulheres nas igrejas”, comenta Gebara. “No fundo a racionalidade dessas proibições é totalmente mítica e não ousa enfrentar-se às reais possibilidades da vida humana e de todas as vidas.”
A narrativa prossegue com um Deus irado com a desobediência. Que diz para a mulher que ela terá dor ao dar à luz seus filhos, que o desejo dela “será para o seu marido” e que o homem “a dominará”.
Rampogna entende que, sob o prisma religioso, isso não é um mandamento, mas sim uma consequência da “entrada do pecado”. “A Bíblia deixa claro que o relacionamento entre o ser humano e Deus foi afetado. Consequentemente, o relacionamento entre homem e mulher também foi afetado”, pontua.
“Infelizmente, ao longo da história e da cultura, ao longo dos séculos, esse comportamento foi naturalizado”, admite. “A meu ver, a raiz da desigualdade é espiritual: foi fruto do pecado. A perpetuação dessa desigualdade, contudo, é uma questão cultural.”
“Mas o verdadeiro cristianismo acredita que os dois, mesmo sendo diferentes, são iguais diante de Deus”, conclui.
“Minha perspectiva é que homem e mulher são totalmente iguais mas que possuem papéis diferentes na sociedade, não por questão de capacidade, mas por questão de design divino”, avalia à BBC News Brasil o pastor batista Yago Martins, autor do livro Igrejas Que Calam Mulheres.
Religiosidades à parte, é preciso voltar ao início da argumentação. Segundo os especialistas, não é que as religiões sejam machistas porque os textos considerados sagrados são machistas. Os textos considerados sagrados seriam machistas porque foram escritos por homens em contextos de sociedades patriarcais.
E as religiões acabaram perpetuando essas ideias de uma época específica.

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Cristianismo
Com o advento do cristianismo, essas camadas acabaram mantidas. Jesus, é preciso lembrar, era um judeu. Mas os relatos bíblicos indicam que entre seus primeiros seguidores havia mulheres — e elas assumiam papéis de protagonismo, por exemplo, tendo sido as primeiras a entenderem, segundo o evangelho, que ele havia “ressuscitado” depois da morte.
“Na perspectiva cristã, Jesus era um rabino, chamado de rabino. Mas não um rabino de uma escola convencional, como as demais. E ele se destacou por ser um rabino que reuniu em torno de si mulheres, com um outro olhar para a mulher”, diz à BBC News Brasil o teólogo Raylson Araujo, pesquisador na PUC-SP.
Mas aí quando o cristianismo se torna uma religião institucionalizada, a partir dos seguidores de Jesus que passam a se organizar e espalhar a fé pelo mundo ocidental da época, novas camadas de machismo começam a se acumular.
Nas cartas que acabaram fazendo parte do chamado Novo Testamento, há trechos em que dizem que as mulheres precisam ficar caladas nas igrejas — primeira epístola de Paulo aos Coríntios — ou que nenhuma mulher possa ensinar nem ter autoridade sobre um homem — primeira carta de Paulo a Timóteo.
“Esses textos bíblicos não devem ser utilizados fora de contexto para justificar o silenciamento feminino. Precisam ser lidos à luz do contexto cultural da época”, salienta Rampogna.
Era novamente a religião espelhando as sociedades, no caso o mundo romano e, segundo Araujo, principalmente o mundo grego, “que olhava para a figura da mulher de maneira negativa”.
“Na cultura greco-romana, mulheres eram submissas aos maridos. E isso era a coisa mais normal do mundo”, contextualiza o pastor Martins. “O que Paulo disse sobre as mulheres não tinha nada de chocante [para a época].”
Ele ressalta, entretanto, que o mesmo apóstolo escreveu em suas cartas que o marido precisava proteger e cuidar das mulheres como cuidavam de seu próprio corpo. E isso era uma novidade para aquele contexto.
“Era um texto claramente contra a violência doméstica, já que naquele contexto era comum que as mulheres às vezes deixassem de comer em detrimento da alimentação e do bem-estar do marido. Paulo estabeleceu uma série de cuidados para que a mulher se colocasse em posição de dignidade e de igualdade.”
Revisionismo
Ao que parece, olhar para um registro textual com as lentes da época permite enxergar algo além do que pareceria sensato ou insensato hoje. As realidades tinham suas próprias necessidades — e até mesmo onde parece haver atraso, para o contexto da antiguidade poderia na verdade representar um avanço.
O problema é manter isso ao pé da letra em pleno século 21. “O fundamentalismo bebe na tradição patriarcal. Quanto mais fundamentalista [um grupo ou uma vertente religiosa], mais patriarcal. Porque aí se assume a literalidade do texto e se usa aquilo como respaldo para perpetuar uma tradição dita masculina”, analisa o teólogo Moraes.
“Não podemos negar que havia machismo, dado que no contexto bíblico temos uma sociedade patriarcal”, diz à BBC News Brasil a freira, filósofa, teóloga e biblista Zuleica Aparecido Silvano, professora na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia e integrante da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica.
Ela ressalta, entretanto, que justamente por se esquecer desse contexto socio-histórico, costuma ser feita uma “má-interpretação” de textos bíblicos.
Mas haveria espaço para uma revisão desses textos? Gebara é pessimista. “Creio que dificilmente as igrejas tomarão a iniciativa de rever criticamente suas escrituras, suas teologias e sua legitimação de poderes”, diz ela.
“O tempo fará isso através de outros caminhos, como por exemplo a diminuição de fiéis, a laicização dos Estados, o crescimento da consciência crítica em diferentes processos educacionais, a recuperação do amor ao próximo e da misericórdia como comportamentos humanos sem os quais a vida não subsistirá sobre a face da Terra”, completa a teóloga.

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E no islamismo?
No mundo islâmico o fenômeno foi equivalente, afirmam os especialistas. Por um lado, é preciso entender a doutrina como resultado de um contexto cultural, histórico e social muito machista. Por outro, justamente com esta visão, pode-se entender que o próprio Alcorão trouxe avanços a mulheres que, naquela época e naquelas sociedades, não tinham nem sequer direitos mínimos.
“O islã surge no século 7 em uma sociedade tribal profundamente patriarcal, onde mulheres, antes do islã, eram herdadas como propriedade, enterradas vivas ao nascer e não possuíam qualquer direito legal”, comenta o também advogado Walid Mazloum, cofundador do podcast Salamaleiko .
“Nesse contexto, a revelação do Alcorão trouxe avanços revolucionários para as mulheres: o direito à herança, ao divórcio, à propriedade, ao voto, à participação na vida pública e até mesmo à escolha do marido”, diz.
O cientista da religião Kus explica que o islã estipula uma “divisão de papéis” e, como surgiu em uma época e em uma sociedade “em que a mulher não tinha voz, não tinha vez, era excluída”, acabou dialogando com esse contexto.
“Quando se analisa o texto corânico, vê-se que ele na verdade vira de ponta-cabeça toda aquela tradição que excluía as mulheres, que tirava das mulheres até o papel de ser humano”, comenta.
Há menções nas escrituras, por exemplo, de que o testemunho de um homem valeria pelo de duas mulheres ou que a mulher deveria receber metade da herança que coubesse a um homem. A questão aí, segundo os especialistas, é justamente comparar com o anterior: havia um avanço, já que antes do islã às mulheres não era reservado nada.
“Portanto, a ideia de que o islã, em sua essência, seria machista, é uma leitura distorcida”, completa Amir Mazloum. “O que existe, muitas vezes, é a interferência de culturas locais, patriarcais tanto no Oriente quanto no Ocidente, que aplicam seletivamente trechos religiosos para justificar desigualdades que são, na verdade, culturais.”
Ele ressalta que o islã “não é um obstáculo à valorização da mulher”. “O obstáculo, muitas vezes, é a cultura local.”
Fonte.:BBC NEWS BRASIL