
- Author, Aleem Maqbool, editor de religião, e Steve Swann
- Role, Programa “File on 4 Investigates”, BBC Rádio 4
Tempo de leitura: 13 min
Parecia ser um encontro inofensivo.
No verão de 2021, Jay Hulme, voluntário da Igreja de São Nicolau em Leicester, no Reino Unido, recebia as pessoas na porta do santuário. Foi quando Venessa Pinto entrou.
“Havia algo estranho com ela“, relembra Hulme. “Mas achei que fosse por estar em uma igreja nova, com outras pessoas, e estávamos saindo da pandemia. Não havia motivo para alerta.”
Venessa Pinto foi contratada pela diocese de Leicester da Igreja da Inglaterra como pregadora leiga — uma pessoa não consagrada, autorizada a liderar o culto. Ela retornaria mais algumas vezes à igreja de Hulme.
Algumas semanas depois, eles estavam em uma missa no meio de semana, na catedral de Leicester. Quando terminou, ela se aproximou e pediu para falar com ele em particular.
Eles foram até o tranquilo cemitério da velha catedral e ela o convidou para sair.
“Fiquei muito surpreso, pois não a conhecia”, ele conta. “Respondi ‘sou gay, mas obrigado pelo convite’ e ela perguntou se era porque ela era negra.”
Jay ficou espantado com a pergunta. Ele repetiu gentilmente que não poderia sair com ela porque é gay, além de não estar no lugar certo para um relacionamento.
“Saí dali pensando: ‘foi muito estranho’. Mas pensei ‘já acabou’.”
Quando ele a denunciou, a mais alta autoridade eclesiástica de Leicester, forte candidato a ser o próximo arcebispo da Cantuária (o principal líder espiritual da Igreja da Inglaterra), afirmou não acreditar nele. E chegou a acusar Jay Hulme de bruxaria.

‘Homem vil’
Jay Hulme tinha pouco mais de 20 anos de idade. Ele vivia um momento muito feliz naquele verão.
O jovem era poeta e escritor, assistente de supervisão na Igreja de São Nicolau, que acolhe a comunidade LGBTQIA+, e conhecido nas redes sociais pelo seu amor pelas edificações e pela teologia da igreja.
Ele analisava sua fé cristã, considerando a possibilidade de estudar e se tornar padre nos próximos anos.
“Também sou trans, assumi há alguns anos e, finalmente, cheguei a um ponto de total e completa felicidade com quem eu era”, relembra ele. “Eu via meu futuro se desenrolando à minha frente de uma forma que, até então, parecia impossível.”
Venessa também tinha pouco mais de 20 anos. Depois de ser rejeitada, ela enviou diversas mensagens “furiosas e acusatórias” para Jay, dizendo que ele estava falando mal dela.
Ele tentou convencê-la de que não aquilo não era verdade, mas ela foi inflexível.
Para tentar resolver a situação, Jay concordou quando ela exigiu que eles se encontrassem.
Ele estava determinado a se encontrar em um local público, mas uma forte tempestade fez com que eles acabassem se reunindo em um ambiente interno, sozinhos, no local de trabalho dela.
Ele conta que ela gritou com ele e o chamou de mentiroso, racista e uma pessoa horrível. Ela exigiu repetidamente um pedido de desculpas, sem dizer o que ele supostamente teria feito.
Jay ficou desestabilizado e deixou de interagir com Venessa. Ela continuou a frequentar a igreja, mas ele passou a evitar a jovem.
Foi quando ele começou a receber mensagens de contas online anônimas, que eram visíveis para os seus seguidores nas redes sociais.

Ele logo percebeu que Venessa era a autora das mensagens. Ela chegou a enviar um e-mail da sua conta pessoal, pedindo desculpas pela “dor” que ela havia causado.
Mas a grosseria online aumentou e ela começou a postar ameaças e acusações falsas em público.

Jay ficou preocupado com a sua segurança e denunciou o assédio à polícia de Leicestershire. Ele não pretendia iniciar um processo naquele momento, mas sim que o abuso cessasse.
O jovem não teve retorno e os abusos continuaram implacáveis. A cada vez que ele bloqueava uma conta, surgia outra e ele achava que não haveria escapatória.
“Minha sensação era que ela estava nos meus bolsos, na minha casa, no meu cérebro todo o tempo, dizendo aquelas coisas horríveis e eu não conseguia escapar daquilo”, ele conta.
Jay precisava permanecer online devido aos seus compromissos como escritor e palestrante. Mas ele começou a perder contatos e suspeita que isso se deveu às acusações sobre ele na internet.
Por fim, semanas depois de avisada, a polícia visitou Venessa. Mas o resultado não foi nada satisfatório para Jay.
“Ela disse ao policial que seus amigos estavam enviando as mensagens e o policial respondeu que ela deveria dizer a eles que parassem”, ele conta. “A polícia me disse que eu deveria simplesmente apagar minhas redes sociais.”
Ele afirma que sua impressão foi que a polícia não considerou a seriedade dos abusos por terem sido praticados online.
Reservas no mesmo retiro
A visita da polícia gerou mensagens ainda mais furiosas contra o jovem.
Jay começou a reunir um poderoso conjunto de evidências. Sua missão, agora, era provar que as mensagens não haviam sido enviadas pelos amigos de Venessa, mas por ela própria.
Ele montou uma planilha detalhada, especificando as conexões entre as diversas contas anônimas que haviam postado mensagens abusivas ou acusações contra ele. Todas elas levavam a Venessa.
Depois de perder a confiança na polícia, Jay entregou todas as evidências para a Igreja da Inglaterra, que prometeu investigar sua queixa formal.
Enquanto esperava, ele pensou em descansar um pouco, em um silencioso retiro jesuíta na zona rural do País de Gales. Mas, dias depois, um colega contou que Venessa havia reservado o mesmo retiro.
Jay havia feito uma reserva de última hora e, segundo ele, não havia muitas vagas.
“Fica no meio do nada. Para mim, é impossível que tivesse acontecido por acaso.”
Ele saiu do retiro horas antes da chegada de Venessa. Aquilo o deixou horrorizado, com a sensação de que o stalking (perseguição) havia ultrapassado os limites da internet.
Acusado de bruxaria
Foi quando, finalmente, surgiram as primeiras notícias positivas. De volta a Leicester, a investigação da Igreja da Inglaterra concluiu que Venessa Pinto era responsável pelo abuso, para grande alívio de Jay.
Ele acreditou que aquilo fosse o fim de tudo. Mas, quase instantaneamente, veio um golpe inesperado.
Ele foi convocado para uma reunião com o bispo de Leicester, Martyn Snow, considerado favorito para ser o próximo arcebispo da Cantuária, o líder da Igreja da Inglaterra.

Crédito, Câmara dos Lordes/Roger Harris
Jay acreditava que Venessa fosse perder o emprego. Ocorre que o bispo realizou sua própria investigação.
“Eu entro e o bispo se senta com uma grossa pasta no colo. E começa a me questionar sobre a minha denúncia”, relembra ele. “Ele chega a dizer ‘é o que ele disse e o que ela disse’.”
O bispo afirmou que não acreditava que Venessa fosse responsável pelo assédio e não apoiaria a denúncia de Jay contra ela.
Ele, então, fez uma acusação extraordinária contra Jay.
“Alguém declarou que eu fui visto na igreja, no escuro, com uma vela — e pensaram que eu estivesse fazendo uma sessão espírita.”
“Para deixar claro, eu estava rezando com uma vela no escuro, porque é algo que fazem os cristãos”, explica ele.
O bispo Snow o acusou de prática de feitiçaria, devido à “sessão espírita” e porque Jay, por acaso, tem um amigo próximo que faz leitura de tarô.
“Parecia um enorme soco no estômago”, descreve ele.
“Essas acusações inventadas me foram apresentadas por uma pessoa com o poder de um bispo, em uma reunião que eu percebi subitamente que não podia controlar.”
“De alguma forma, ela [Venessa] havia conseguido fazer com que um bispo participasse da sua campanha de perseguição, abusos e ameaças, usando seu poder e seu cargo. Eu não conseguia acreditar no que estava acontecendo.”
Jay conta que foi informado que Venessa não perderia sua licença para pregar, mas que ele, sim, sofreria uma punição.

Ele havia decidido seguir o caminho do sacerdócio e conta que o bispo Snow disse que o processo para iniciar seus estudos seria “desacelerado”.
Jay ficou devastado. Ele foi para casa com a sensação de que havia caído em uma armadilha. E, depois que a denúncia foi descartada, foram postadas novas mensagens na internet.
“Coisas realmente horríveis, dizendo que eu estuprei crianças, que roubei dinheiro, que fui racista, que pratiquei bullying”, ele conta. “Ela criava contas falsas minhas, dizendo coisas realmente racistas, tirava cópias de tela e compartilhava.”
O bispo Snow sugeriu que suas acusações não condiziam com o caráter de Venessa. Mas Jay logo descobriu que ele não era a única pessoa prejudicada pelo comportamento dela.
Queixas ‘de 30 pessoas’
Uma colega que trabalhava próxima a Venessa, Kat Gibson, havia se queixado dela mais de um ano antes do início da campanha contra Jay.
Ela conta que Venessa era imprevisível e antagônica ao extremo.
“Eu ficava muito assustada quando estava perto dela, pensando, ‘por que será que ela vai explodir comigo desta vez?'”, relembra ela, “com esses surtos de raiva explosivos e imprevisíveis.”
Ela destaca que, com o passar dos meses, “cerca de 30 pessoas” de oito igrejas fizeram contato com ela, se queixando informalmente do comportamento de Venessa. Ela relembra o episódio como um “segredo aberto”, que os gerentes se sentiam incapazes de enfrentar.
Em declaração conjunta, o chefe de Kat Gibson, Lusa Nsenga Ngoy (hoje, bispo da Igreja da Inglaterra em Londres) e a diocese de Leicester afirmaram que foi oferecido apoio pastoral e psicológico às pessoas afetadas. A Igreja da Inglaterra declarou que as queixas de Kat Gibson foram tratadas com cuidado e seriedade.

Gibson era pregadora leiga em Leicester, mas Venessa logo ganhou proeminência cada vez maior em nível nacional.
Em 2022, vários meses após sua campanha de perseguição contra Jay Hulme, ela foi eleita para a assembleia nacional da Igreja da Inglaterra, o Sínodo Geral.
Pouco tempo depois, Venessa foi uma das poucas pessoas do Sínodo indicadas para o Comitê de Nomeações da Coroa, um grupo que seleciona novos bispos e arcebispos. Mas, ainda nessa época, ela continuava enviando incontáveis mensagens sinistras para Jay Hulme.

O assédio online, agora, incluía conteúdo pornográfico extremo postado nas suas redes sociais, até que ela twittou o endereço de Jay.
Ele foi à polícia pela segunda vez, mas novamente não percebeu urgência por parte das autoridades.
“Houve uma época em que, todas as noites, eu acordava gritando, porque sonhava que Venessa estava me assassinando”, ele conta. “Coloquei mais travas na minha porta.”
Desculpas e condenação
Apesar da aparente passividade, a Igreja da Inglaterra claramente começou a perceber nos bastidores que tinha um problema nas mãos.
Por um lado, Jay foi informado, no verão de 2022, que uma investigação da diocese de Leicester considerou Venessa responsável pelo assédio a Jay. Mas também foi dito a ele que o bispo de Leicester decidiu exatamente o contrário.
A BBC tomou conhecimento de que, pouco antes do anúncio, o bispo, na verdade, disse a Venessa que se afastasse do ministério devido ao “seu comportamento”, embora não se saiba o que isso significava.
Ele também revogou sua licença para pregar posteriormente, devido ao surgimento de “novas evidências”, segundo o bispo. A diocese também recomendou o seu afastamento.
Mas nada disso veio a público, nem impediu sua implacável perseguição a Jay.

Subitamente, no final de 2022, a diocese de Leicester anunciou a saída de Venessa da igreja. O anúncio dizia que ela iria “buscar outras oportunidades” e agradeceu pelas suas contribuições positivas.
Mais uma vez, aparentemente não houve impacto sobre a artilharia repleta de ódio voltada contra Jay.
“Escrevi meu testamento”, relembra ele. “Senti que a polícia havia me abandonado, a diocese havia me abandonado e eu acreditava que isso continuaria até que um de nós dois estivesse morto.”
Tomado pelo desespero, Jay foi à polícia novamente em dezembro de 2022.
A polícia finalmente agiu contra Venessa em março de 2023 — 21 meses após o início da campanha de perseguição contra Jay e oito meses depois que o bispo de Leicester disse ao jovem que não acreditava nele.
“Recebi uma ligação da polícia de Leicestershire, basicamente reconhecendo que agiu mal neste caso”, ele conta. “E, muito pouco tempo depois, Venessa foi presa. Seus aparelhos foram confiscados.”
Em nota, a polícia de Leicestershire declarou que sua reação inicial ficou aquém dos padrões esperados e destacou que continuaria a “desenvolver seu conhecimento e treinamento em relação à prevenção e detecção de crimes de stalking“.
No final de 2023, Venessa recebeu suas acusações. Em maio de 2024, ela se declarou culpada de stalking, causando sérios danos ou sofrimento. Ela foi condenada a 18 meses de serviços comunitários e proibida de manter contato com Jay por um ano.
Após a condenação de Venessa, Jay pediu uma audiência com o bispo de Leicester, Martyn Snow, que pediu desculpas pelo ocorrido.
“Ele reconheceu sua participação, de certa forma, e disse que deveria ter agido melhor”, conta Jay. “E eu concordo.”
A diocese de Leicester declarou à BBC que recebeu aconselhamento legal e tem a confiança de ter seguido a prática de recursos humanos e processo devido, ao lidar com a queixa de Jay. Mas não informou por que levou meses para dispensar Venessa, depois de concluir que ela havia enviado as mensagens para ele.
Um porta-voz da Igreja da Inglaterra afirma estar “chocado com o sério comportamento criminoso que levou à condenação de Venessa Pinto”.
Kat Gibson foi recentemente dispensada do seu cargo em Leicester. Ela afirma que se sente muito melhor, física e mentalmente, e está feliz por não ser mais funcionária da Igreja da Inglaterra.
‘Todos deixaram de me proteger’
Mas o que aconteceu com Venessa Pinto?
Depois do seu serviço comunitário e obedecendo sua ordem de restrição, ela voltou a pregar e também realizou trabalhos missionários no Brasil.
Ela declarou à BBC que houve um aspecto específico da ação judicial que mudou tudo para ela.
“Ler a declaração de impacto à vítima escrita por Jay destacou ainda mais as dores que causei e fortaleceu minha resolução de assumir a responsabilidade e fazer correções”, afirma ela.
“Reconheço a seriedade da minha conduta do passado e não pretendo diminuir as suas consequências. Levei minha vida adiante e espero que as pessoas prejudicadas em Leicester e em outros lugares possam encontrar, nos seus corações, espaço para cura e crescimento.”
Embora admita o assédio pelo qual foi condenada, Venessa nega algumas das outras acusações, como os frequentes surtos de raiva relatados por Kat Gibson e outras pessoas.
Na verdade, ela afirma que essas acusações de comportamento agressivo nunca foram formalmente levantadas quando ela estava em Leicester.
Venessa afirma que estava passando por um período difícil e enfrentava problemas de saúde mental, durante o tempo que passou na cidade.

Seus ataques deixaram cicatrizes em Jay.
Ele tem dificuldade para abrir seu e-mail, com medo do que irá encontrar, e afirma que suas finanças foram destruídas por anos de trabalho esporádico.
“Sinto que todos deixaram de me proteger. Quase me sinto como tendo sido ingênuo quando pensei que a Igreja, que tanto fala em proteção, iria me proteger depois que a polícia falhou comigo.”
“A Igreja falha porque as pessoas têm medo de fazer o que é certo”, segundo ele.
“Na Epístola de Tiago, meu livro favorito da Bíblia, existe um trecho que diz que qualquer pessoa que saiba o que é certo e deixa de fazê-lo comete pecado. E este é o problema central desta Igreja.”
Imagens de Emma Lynch, da BBC.
Ouça neste link o episódio do programa de rádio File on 4 Investigates (em inglês), da BBC Rádio 4, que deu origem a esta reportagem.
Fonte.:BBC NEWS BRASIL


