A culinária francesa é famosa por ser uma das melhores do mundo. Então, o que faz uma astronauta francesa diante da perspectiva de passar meses na Estação Espacial Internacional comendo comida liofilizada direto da embalagem?
Recrutar uma chef com estrela Michelin para reinventar clássicos franceses como foie gras e bisque de lagosta foi a resposta de Sophie Adenot, que deve realizar sua primeira missão espacial em 2026.
As refeições elaboradas por Anne-Sophie Pic farão parte do “alimento bônus” levado à Estação Espacial Internacional durante a missão εpsilon de Adenot, informou a Agência Espacial Europeia (ESA) em um comunicado na última terça-feira.
A comida no espaço é, normalmente, liofilizada e embalada em plástico, escolhida a partir de uma lista de itens pré-aprovados, segundo a ESA. Frutas e vegetais são um luxo raro, disponíveis apenas quando uma nave chega com suprimentos.
Contudo, os astronautas podem levar um “alimento bônus” especialmente preparado, que representa cerca de 10% do que eles consomem. Essas refeições geralmente são desenvolvidas em parceria com um chef, e os astronautas dizem que isso melhora o bem-estar mental, traz variedade e ajuda a fortalecer os laços com os colegas quando compartilhadas em órbita, segundo a ESA.
Adenot contou que conheceu Pic em uma reunião em Paris e que a comida irá encantar seus colegas astronautas e permitir que se reconectem com a vida na Terra. Descrevendo a culinária de Pic como “profundamente influenciada pela terra”, ela disse:
“Isso é importante para mim porque cresci no interior, e isso vai me lembrar das minhas raízes.”
O menu da missão inclui entradas como foie gras sobre brioche tostado com limão cristalizado, bisque de lagosta com caranguejo e alcarávia, velouté de pastinaca com curry e haddock defumado, e sopa de cebola com pimenta-rosa e croutons gratinados.
Os pratos principais incluem carne bovina desfiada e assada com alho negro e baunilha defumada, e frango com pimenta voatsiperifery, fava tonka e polenta cremosa com queijo comté. Para a sobremesa: arroz doce com coco e baunilha defumada, além de creme de chocolate com flor de avelã e café.
“Durante uma missão, compartilhar nossos alimentos é uma forma de convidar nossos colegas a conhecer mais sobre nossa cultura,” disse Adenot. “É um momento muito especial de conexão entre todos nós e uma mudança bem-vinda na rotina diária. Não tenho dúvidas de que eles ficarão tão entusiasmados quanto eu ao provar os pratos da Anne-Sophie.”
Adenot é uma piloto de helicóptero multilíngue que passou por treinamento militar básico. Ela estudou engenharia e espaçonaves antes de concluir o treinamento de astronauta em abril do ano passado. A bordo da Estação Espacial Internacional, ela realizará experimentos científicos e pesquisas europeias.
A missão recebeu o nome εpsilon, em referência ao símbolo matemático “ε”, que representa algo pequeno com papel significativo em um todo maior. É também a quinta letra do alfabeto grego e a quinta estrela mais brilhante da constelação de Leão, seguindo a tradição francesa de nomear missões espaciais com nomes celestes.
Pic é membro de um “clube altamente exclusivo de chefs mulheres com três estrelas Michelin”, segundo o Guia Michelin, que a descreve como uma “figura icônica”. Seu restaurante, Pic, em Valence, na França, venceu o prêmio de Melhor Restaurante do Tripadvisor em 2024. Ela também foi nomeada a melhor chef mulher do mundo em 2011 pelo World’s 50 Best Restaurants Awards da San Pellegrino.
Pic disse estar empolgada em participar da missão, já que “cozinhar para o espaço significa ultrapassar os limites da gastronomia”. Ela afirmou que sua equipe de pesquisa aceitou o desafio de “preservar a emoção do sabor apesar das restrições técnicas extremas”. A comida foi produzida em parceria com a Servair, empresa francesa de catering aéreo, que ajudou a adaptar e fabricar as receitas esterilizando os alimentos em bolsas flexíveis, segundo a ESA.
Uma dieta saudável, variada e nutritiva é essencial para astronautas, que perdem massa óssea e muscular no espaço. As agências espaciais também enfrentam desafios de como armazenar alimentos por meses, manter baixo peso e evitar migalhas flutuantes que podem danificar equipamentos. Ovos mexidos liofilizados, por exemplo, costumam ser criticados por serem “esfarelentos demais e difíceis de comer em microgravidade,” segundo a NASA, que atribui isso ao processo de liofilização.
Na ISS, os EUA fornecem a maior parte da comida desidratada, enquanto a Rússia fornece alimentos enlatados, segundo a ESA. Os cardápios são planejados com meses de antecedência e seguem um ciclo de oito dias. Pudim de chocolate, macarrão com queijo e tortilhas estão entre as opções fornecidas pela NASA, além de pratos únicos, como arroz e feijão jamaicano picante com leite de coco, criado por estudantes do ensino médio da Virgínia e enviado à ISS em 2016.
A NASA também tem mostrado interesse em desenvolver cardápios vegetarianos, já que vegetais são mais fáceis de cultivar e conservar do que carnes ou laticínios.
Embora o menu de Pic seja bastante aguardado, não será a primeira vez que um chef famoso serve comida gourmet no espaço. No mês passado, a ESA anunciou que o astronauta belga Raphaël Liégeois, que viajará na mesma missão de Adenot, levará para o espaço pratos como gratinado de endívias belgas com presunto e boulets à la liégeoise — um prato local de almôndegas. Ele trabalhou com o renomado chef Wouter Keersmaekers, do restaurante De Schone van Boskoop, em Antuérpia, para desenvolver as versões adequadas ao espaço. O astronauta Thomas Pesquet colaborou com os chefs franceses Thierry Marx e Alain Ducasse em 2016.
A Fundação Alain Ducasse já havia elaborado refeições para astronautas da ISS em uma missão de 2006, pensadas para ocasiões comemorativas, segundo a ESA.
Naquela missão, pratos como espadarte ao estilo Riviera, peito de pato confitado com alcaparras, e codornas assadas no vinho com caponata — um antepasto de tomate, berinjela e azeitonas — foram enlatados e aquecidos no forno da ISS pelos astronautas.
O astronauta da ESA Thomas Reiter disse, na época, que era “um verdadeiro mimo para um domingo à noite.” A única reclamação?
“Não temos dúvidas de que ficaria ainda melhor se tivéssemos um pouco de vinho para acompanhar!”, disse ele.
Fonte.:Folha de São Paulo