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- Author, Edison Veiga
- Role, De Bled (Eslovênia) para a BBC News Brasil
Dinheiro e fé são dois temas que andam juntos, embora nem sempre tenham um relacionamento saudável.
A cobrança de juros, ou a ideia de ganhar dinheiro a partir do dinheiro que se tem, é uma questão que permeia o cristianismo desde os primórdios — e, com o passar dos séculos, o próprio pensamento teológico foi claramente moldado pelo surgimento do capitalismo.
Antes de entrar na discussão religiosa, é preciso deixar claro o significado de dois termos que estão no cerne desta questão — ao menos o significado contemporâneo.
De acordo com o Dicionário Caldas Aulete, juro é a “porcentagem acrescentada ao total de um empréstimo ou de uma compra a prazo, a ser paga pelo devedor”, ou corresponde ao “rendimento de capital investido”.
O mesmo dicionário define a usura, em primeiro lugar, como “juro ou renda de capital”.
Mas os significados secundários externam uma carga histórica contaminada pela visão religiosa.
Diz-se que usura é “empréstimos a juros exorbitantes, agiotagem”, “juro exagerado, extorsivo”, “ambição ou cobiça exacerbada” e “avareza, mesquinharia”.
Esta visão está presente na contextualização feita pelo sociólogo Francisco Borba Ribeiro Neto, ex-coordenador do Núcleo Fé e Cultura da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e editor do jornal O São Paulo, da Arquidiocese de São Paulo.
“Temos de distinguir entre usura e empréstimo a juros”, pontua ele.
“O juro exorbitante é considerado um pecado de injustiça e falta de solidariedade para com o necessitado, que contrai o empréstimo porque precisa e não tem alternativas.”
Neto explica que o que mudou, ao longo da história, é a percepção da Igreja. O empréstimo passou a não ser considerado, necessariamente, uma exploração do necessitado, mas também uma forma de parceria entre quem empresta e quem contrai o empréstimo.
Ele cita o caso da organização Montes da Piedade, fundada pelos religiosos franciscanos como instituições “que emprestavam dinheiro sem juros ou com juros baixos para libertar os pobres das mãos dos usurários”.
“Em resumo, eu diria que não foi a visão católica da usura que mudou, mas sim a organização econômica da sociedade que mudou, criando novas relações financeiras entre as pessoas”, comenta o sociólogo.
“A usura, no sentido do empréstimo a juros exorbitantes, ainda é condenada pela Igreja, só que hoje em dia existe um mercado de juros muito mais complexo que o medieval”, completa.
O que diz a Bíblia

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A Bíblia não poupa críticas ao empréstimo a juros.
No livro do Levítico, há um trecho que diz: “Se teu irmão tem dívidas e não tem com que te pagar, tu o sustentarás, seja ele um migrante ou um morador, a fim de que ele possa sobreviver a teu lado. Não aufiras dele nem juros nem lucro; é assim que terás o temor de teu Deus, e teu irmão poderá sobreviver a teu lado”.
Em Êxodo, está escrito: “se emprestares dinheiro ao meu povo, ao necessitado que está contigo, não agirás com ele como um agiota, não lhe cobrareis juros”.
“Não emprestarás a juros a teu irmão: nem empréstimo de dinheiro, nem de alimento, nem empréstimo de qualquer coisa sobre a qual indicam juros”, diz o livro do Deuteronômio. “Não empreste a juros nem pratique a usura”, determina o livro de Ezequiel.
O Salmo de número 15 descreve aquele que “será recebido” na tenda do Senhor. Um dos versículos da descrição afirma que este “não emprestou seu dinheiro com usura”.
“A cobrança de juros é vista como ganância”, resume à BBC News Brasil o historiador e teólogo Gerson Leite de Moraes, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie.
“Usura é receber mais do que se deu, ensinou Santo Ambrósio [considerado um dos quatro doutores da Igreja antiga]. São inúmeras as definições semelhantes a esta”, complementa o teólogo, filósofo e jornalista Domingos Zamagna, professor na PUC-SP e na Faculdade São Bento.
Zamagna conta que, prática antiga entre os povos, a usura era artifício daqueles que “buscavam o enriquecimento por todos os meios”. “Sempre houve quem quisesse lucros abusivos. E sempre houve quem precisasse de alguma forma de empréstimo”, contextualiza.
“A Bíblia, porém, é expressão de um povo que buscou uma forma alternativa de vida, encaminhando-se para o que chamamos de justiça social”, explica o professor.
Editor na Sociedade Bíblica do Brasil (SBB), pós-graduado em mercado financeiro e autor de, entre outros livros, Igreja Polarizada, o escritor, jornalista e teólogo Gutierres Fernandes Siqueira reforça que “a base bíblica é bastante ampla [sobre o tema]”.
“No Antigo Testamento, especialmente no pentateuco [os cinco primeiros livros], há passagens claras sobre o dever de ajudar o irmão necessitado sem cobrar juros nem lucrar com isso”, diz ele. “[Segundo esses textos], a integridade daquele que não empresta com usura é recompensada por Deus.”
“Um dos principais argumentos, além da injustiça, era o de que a usura é uma venda do tempo, e o tempo é um dom de Deus: logo não pode ser vendido”, completa Zamagna.
A teologia moldada ao capitalismo

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Mas a lógica capitalista contemporânea está moldada ao sistema bancário, com toda a estrutura de investimentos, empréstimos e juros — muitos juros. De tal forma que o cristianismo foi obrigado a se adaptar.
A evolução, porém, foi gradual.
O professor Gerson Moraes explica que a problemática que explica a condenação bíblica à usura está no fato de que, nas sociedades ancestrais, em geral a garantia para um empréstimo era a própria pessoa e sua família. Aquele que não honrasse, portanto, acabava sendo escravizado, ao menos por tempo determinado.
Segundo ele, as cobranças de juros também costumavam ser extorsivas. Não havia qualquer regulamentação.
“Então estamos pensando em sociedades nas quais a exploração mediante a cobrança de juros era algo muito perigoso”, comenta ele.
“A Bíblia tem suas preocupação em relação a isso. Estar em dívida era muito pesado, com riscos para a pessoa, para a família e sob taxas de juros impraticáveis.”
Para o professor, os textos bíblicos sobre o assunto em geral eram, portanto, instrutivos, buscando dissuadir as pessoas de enveredarem por práticas sociais nocivas.
Domingos Zamagna, da PUC-SP, pontua que os pioneiros da Igreja “tiveram especial aversão e desprezo pelos usurários”.
“A Bíblia, porém, tem suas contradições. Mesmo pregando a fraternidade, abriu-se exceção para o empréstimo aos não judeus, caso em que se poderiam cobrar juros”, salienta.
Os chamados “pais da Igreja”, aqueles que sedimentaram a teologia cristã entre os séculos 2 e 7, também fizeram suas interpretações.
Ambrósio de Milão, no século 4, teve a sutileza de argumentar que “em caso de guerra, era permitido praticar a usura contra os inimigos”, como exemplifica o professor Zamagna.
“A tendência dos concílios foi a de condenar a usura, e Santo Anselmo [que viveu no século 11] situou a usura como roubo, forma de rapina. Muitos a identificaram como ‘lucro vergonhoso'”, acrescenta.
A questão era sempre debatida pela intelectualidade cristã, que dialogava com o conceito de “troca justa” de Aristóteles durante a Idade Média. O filósofo grego acreditava que, para a justiça se manter, ninguém deveria sair prejudicado ou ser excessivamente favorecido nas relações comerciais.
Zamagna avalia que, nos meios populares, a flexibilização sobre empréstimos a juros principiou-se a partir do século 12, mesmo com tentativa da Igreja de coibir a prática.
O 2º Concílio de Latrão, realizado em 1139, reafirmou a condenação da prática. O entendimento era de que a usura se assemelhava ao roubo, sendo, portanto, um pecado. Além disso, aquele que vivia dos juros estava ainda agindo com avareza e preguiça, na interpretação cristã da época.
“Sem possuir terras, gado e sem instrumentos de trabalho, os camponeses foram atraídos pela usura”, contextualiza o professor.
“Temendo o êxodo rural, e consequente desocupação das terras, o 3º Concílio de Latrão, em 1179, constata e insiste na condenação da prática usurária.”
O discurso contrário ao empréstimo a juros persistiu, ainda que de forma um tanto utópica, no século 13.
Tomás de Aquino, o teólogo que viveu no século 13, foi o primeiro a operar o que Moraes qualifica como “deslocamento em relação ao conceito aristotélico de troca justa”.
“Ele discute o preço justo, mas incorpora o lucro do comerciante, rompendo a equivalência como princípio da justiça”, conta.
“A doutrina então dá um passo adiante expondo que a remuneração do comerciante pelo seu trabalho tinha de ter uma proporção que garantisse a subsistência dele e de sua família, e isso não violava a ideia de justiça.”
Foi a primeira vez que a troca desigual entre produtos não era necessariamente vista como injusta.
Mas Aquino entendia que a usura era um “pecado contra a justiça” por “vender algo que não existe”.
Com o fim da Idade Média e o desenvolvimento de um capitalismo baseado na estrutura bancária, as posições da Igreja foram obrigadas a se adaptar.
“A doutrina católica vai se acomodando às mudanças”, diz Moraes.
“Há um risco também, nesse processo todo [de empréstimos], então parece sempre haver uma evolução do modo de produção em vigor que acaba forçando os teólogos e canonistas a enxergarem de maneira diferente determinadas posições em relação a essa temática.”
A chegada do protestantismo

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Com a reforma protestante, o primeiro momento ficou marcado por Martinho Lutero (1483-1546) e seus seguidores tomando a bíblica ao pé da letra. “E, obviamente, condenando a usura”, diz Zamagna.
O professor e teólogo Gerson Moraes conta que há documentos mostrando que, entre os seguidores da vertente de João Calvino (1509-1564) do protestantismo, determinadas igrejas chegaram a proibir banqueiros de participarem da celebração da Santa Ceia “como uma espécie de punição pelos juros abusivos que eles cobravam”.
Mas gradualmente foi havendo uma distensão desse discurso.
Para o teólogo, a motivação principal foi a ética protestante que mescla o conceito de vocação — entendendo todo tipo de trabalho como um meio de “glorificar a Deus” — com a percepção do lucro como algo “benéfico”, “o sinal das obras”, “que deve ser utilizado para fins beneficentes”.
O teólogo Gutierres Siqueira atenta para Calvino como “um ponto de inflexão no tema”.
“Ele interpretou os textos do Antigo Testamento que proíbem a usura não como algo absoluto, mas sim como uma exploração injusta. Essa era a diferença entre juros abusivos ou não abusivos”, explica. “Então desde que não fosse abusivo, podia.”
Da Era Moderna aos dias atuais
“Os juros são a moderna denominação da usura”, argumenta Zamagna. “Quem contrai dívidas sabe que isso é verdade.”
“A partir do Iluminismo [século 17], uma sociedade que quase não mais cultiva valores bíblicos e humanísticos, os juros se impuseram como fato consumado, tanto que hoje é muito difícil achar um teólogo que escreva contra a prática de juros, mesmo os abusivos. Calam-se”, completa o professor.
Zamagna lembra que o assunto foi trazido pelo então papa João Paulo 2º (1920-2005), na virada do milênio.
“[Ele] procurou chamar a atenção para a tradição dos jubileus bíblicos, que comportava o perdão das dívidas”, comenta.
Essa visão dialoga com recentes declarações do papa Francisco, que já pediu a líderes das nações ricas que cancelassem dívidas de países pobres.
Mas são pedidos que acabam sem repercussão, avalia o professor Zamagna.
“Não encontrarão eco numa economia globalizada onde os conglomerados bancários imperam e não deixam espaço para alternativas significativas”, diz.
Muito antes, em 1745, o papa Bento 14 (1675-1758) também insistia em condenar a prática. Em encíclica (carta aos fiéis e bispos), definiu a usura como um pecado, alegando que aquele que emprestava não deveria querer “a devolução de mais do que foi recebido”.
No entanto, as interpretações cada vez mais se tornaram frouxas, inclusive com o deslocamento semântico do termo usura, que passou a ser utilizado mais para “juros abusivos” do que para simplesmente “juros”.
“De maneira geral, há essa divisão até hoje. Livros de ética teológica separam cobrança abusiva de não abusiva, sendo que esta seria legítima de ser cobrada”, ressalta o teólogo Siqueira.

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Esta é a visão que foi mais trabalhada da Era Moderna para cá.
“O modo de produção foi se impondo. Passou-se a entender que os juros pagos por dinheiro emprestado para melhorar o próprio negócio, por exemplo, não deveriam ser considerados usura por natureza, desprezando todas as proibições do passado”, diz Gerson Moraes.
“O entendimento era de que os juros pagos pelo dinheiro emprestado deveriam ser considerados o aluguel pelo uso do capital de outrem. Veja só que mudança sutil: não era um erro se cobrar juros se você compreendesse que esses juros, na verdade, seriam uma espécie de aluguel”, contextualiza o teólogo.
Ou seja, assim como eu posso alugar um edifício, eu poderia alugar um dinheiro que não me pertence. E seria justo que aquele que empresta cobre alguma coisa porque há um risco nesse processo todo.
Para Siqueira, contudo, é preciso entender que a lógica de emprestar dinheiro também mudou.
“A usura era condenada no Antigo Testamento porque, é preciso lembrar, os empréstimos [daquela época] sempre visavam a socorrer alguém que estava extremamente vulnerável. Por isso que cobrar juros em cima de uma necessidade assim era vista como algo completamente deplorável”, diz ele.
“Não havia a ideia, naquele momento histórico, da figura do empréstimo como forma de financiar um negócio, como a gente hoje pega um financiamento para comprar um apartamento, um carro, montar uma empresa”, exemplifica.
Ele vê na Igreja Católica uma “mudança de postura” baseada na diferenciação entre o que seria a “cobrança justa de juros” e o que seria a “cobrança abusiva”.
“A Igreja Católica foi evoluindo com a própria formação do capitalismo, com a figura do empréstimo remunerado também sendo vista como importante para a economia”, prossegue Siqueira.
Já Moraes defende que houve uma reinterpretação dos ensinamentos bíblicos para que estes se compatibilizassem com as mudanças nos modos de produção.
“Ao longo do tempo, teólogos e intelectuais orgânicos das mais variadas tradições cristãs tiveram de se amoldar e fazer uma remodelagem, uma releitura das percepções bíblicas a respeito da cobrança de juros”, explica.
Fonte.:BBC NEWS BRASIL