
Crédito, Getty Images/BBC
- Author, Katya Zimmer
- Role, BBC Future
No verão de 2017, Elizabeth Russel passava por uma fase difícil. Ela enfrentava um divórcio envolvendo suas duas filhas adolescentes, ao mesmo tempo em que lidava com uma depressão.
“Foi uma época muito, muito estressante”, lembra Russel, que é professora e bibliotecária em uma escola primária em Connecticut, nos Estados Unidos.
Um dia, navegando pela internet, ela se deparou com algo chamado “biblioterapia criativa”, em que recomendações personalizadas de obras de ficção são feitas com o objetivo de melhorar a saúde mental.
Um nome que aparecia com frequência era o de Ella Berthoud, uma biblioterapeuta que morava em Sussex, no Reino Unido, coautora do livro Farmácia literária (Ed. Verus, 2016). Russel, uma leitora ávida, quis experimentar.
Depois de responder um quiz sobre seus hábitos de leitura e ser entrevistada por Berthoud sobre os desafios que enfrentava, Russell recebeu uma lista de recomendações de livros relevantes para a sua vida, muitos deles sobre personagens que lidavam com decisões difíceis no casamento, como George e Lizzie, de Nancy Pearl. “Fiquei impressionada”, lembra Russell.
Aprender com os erros e acertos dos personagens fictícios a ajudou a entender melhor o que estava vivendo e a se sentir menos sozinha.
“Isso abriu algo dentro de mim que precisava ser aberto e curado”, conta.

Crédito, Getty Images/BBC
No Reino Unido e em outros países, a biblioterapia — que também pode incluir recomendações de não-ficção e literatura de autoajuda — vem ganhando popularidade como uma forma de melhorar o bem-estar das pessoas, ajudá-las a passar por momentos difíceis e até mesmo a tratar condições de saúde mental.
Embora os benefícios da literatura de autoajuda sejam amplamente conhecidos e documentados, defensores da “biblioterapia criativa” alegam que ela oferece vantagens semelhantes.
Eles argumentam que mergulhar em mundos simulados e ricos pode ajudar os leitores a processar emoções, descobrir estratégias de enfrentamento ou simplesmente oferecer um escape para dificuldades do dia a dia.
Conforme escrito por dois pesquisadores em um artigo publicado em 2016 na revista The Lancet, a imersão em grandes obras literárias pode “ajudar a aliviar, restaurar e revigorar uma mente aflita — e pode ter um papel fundamental no alívio do estresse e da ansiedade, assim como de outros estados mentais perturbadores”.
Considerando a escassez de serviços de saúde mental acessíveis em muitos países, a ideia que a ficção pode oferecer algum tipo de suporte é bastante atraente.

Crédito, Getty Images
Qualquer pessoa que já leu e gostou de um drama, uma poesia ou obra de ficção pode atestar que as histórias têm efeitos poderosos sobre a nossa mente e emoções. Mas isso não significa que qualquer tipo de ficção vá beneficiar a saúde mental de todos.
Vários especialistas entrevistados para este artigo demonstraram preocupação com o que eles consideram uma promessa exagerada da biblioterapia criativa no tratamento de condições específicas de saúde mental, que carecem de evidências científicas. Na verdade, as pesquisas sugerem que certos livros podem até ser prejudiciais.
Em vez disso, pesquisas existentes traçam um panorama mais sutil, sugerindo que a ficção pode ajudar a melhorar o bem-estar, mas depende muito da pessoa, do livro, e como ela se envolve na leitura, segundo James Carney, cientista cognitivo computacional da Escola Interdisciplinar de Londres.
“Existe essa ideia de que os livros são esses objetos quase sagrados que vão fazer tudo melhor”, Carney diz. “Eu acho que para um certo número de condições e para um certo tipo de personalidade, isso pode ser verdade, mas a ideia de que os livros são um remédio universal é simplesmente falsa.”
A origem da biblioterapia
Alguns remontam as origens da biblioterapia à Primeira Guerra Mundial, quando livros de ficção e não-ficção eram usados para aliviar o sofrimento e o trauma dos soldados. Mas, segundo Carney, a ideia voltou a ganhar força na década de 1990.
Hoje, a biblioterapia tem muitas formas — desde biblioterapeutas como Berthoud, que oferecem recomendações personalizadas por 100 libras esterlinas (R$ 740) por sessão, até médicos do sistema público de saúde britânico (NHS, na sigla em inglês), como Andrew Schuman, que indicam a ficção para alguns pacientes.
Schuman é conselheiro da ONG ReLit, voltada à biblioterapia, e coautor do artigo publicado em 2016 na revista The Lancet sobre os benefícios da leitura para a saúde mental.
Embora a biblioterapia com ficção não substitua outros tratamentos, “em conjunto com outras terapias, pode ser extremamente poderosa”, diz Schuman.
Para Russell, uma das vantagens em relação a outros tipos de terapia é que a leitura pode ser feita no tempo da própria pessoa. Ela pode pegar um livro para ler quando se sentir emocionalmente pronta e parar de ler se estiver sobrecarregada.

Crédito, Getty Images/BBC
Desde 2013, o programa Reading Well (Lendo Bem, em tradução livre), da organização britânica sem fins lucrativos The Reading Agency, tem feito curadoria de livros para pessoas com algumas condições, como demência e depressão.
As listas de livros são cuidadosamente escolhidas e revisadas por especialistas e pessoas com experiência nessas condições, segundo Gemma Jolly, chefe de saúde e bem-estar da organização.
Jolly afirma que o objetivo é levar às pessoas obras genuinamente úteis, principalmente diante da enorme quantidade de livros sobre saúde mental disponíveis hoje, e do que ela percebe como uma arrogância generalizada em torno do que é classificado como “boa” literatura.
Ao fazer parcerias com bibliotecas locais na Inglaterra e no País de Gales, o programa facilitou o empréstimo de mais de 3,9 milhões de livros desde a sua criação.
Até mesmo algumas agências de saúde do Reino Unido têm prestado atenção à biblioterapia: em certos casos, como nos transtornos alimentares, livros de autoajuda são reconhecidos como uma ferramenta terapêutica nas diretrizes clínicas.
É importante lembrar que, assim como ocorre com as recomendações de ficção, nem todos os livros de autoajuda voltados para uma condição ou fase da vida serão benéficos para todos os pacientes — e é sempre aconselhável consultar um médico caso haja preocupações específicas de saúde.
Pouca pesquisa e ‘evidências ainda frágeis’
A evidência de que a leitura melhora a saúde mental é complexa.
Cientistas observaram que, comparado com quem não lê, pessoas que leem regularmente por prazer tendem a ser menos estressadas, depressivas e solitárias, além de serem mais socialmente conectadas, confiantes e, talvez, até viverem por mais tempo, conforme indicou a psicóloga Giulia Poerio, da Universidade de Sussex, em um artigo publicado em 2020.
Mas, Poerio questiona: “É realmente leitura de ficção que melhora o bem-estar, ou será apenas que pessoas com maior bem-estar tendem a ler ficção?
Para os livros de autoajuda — que alguns especialistas descrevem como uma espécie de terapia autoguiada —, os benefícios são claros, segundo Poerio.
Um estudo de 2004, por exemplo, mostrou que livros de autoajuda podem ajudar as pessoas com ansiedade e depressão, enquanto um estudo de 2006 com pacientes com transtornos alimentares descobriu que esse tipo de leitura tinha efeitos psicológicos similares de outras terapias na redução de episódios de compulsão, vômitos e sintomas depressivos.
Mas os benefícios da ficção são mais complexos. Estudos sugerem que ler aumenta a empatia, reduz o estigma contra grupos marginalizados, faz com que as pessoas tratem com os outros de forma mais gentil e melhora a auto-confiança.
No caso de crianças, a leitura melhora o comportamento, incluindo na redução de atitudes agressivas em meninos, além de ajudar crianças com certos problemas de saúde ou desenvolvimento a se expressarem melhor.

Crédito, Getty Images
As evidências ainda são frágeis quando falamos de tratamentos para condições específicas de saúde mental. Alguns especialistas teorizam que ler sobre personagens com experiências de vida semelhante às nossas nos permite nos identificar com eles e vivenciar um momento catártico quando esses personagens superam desafios, algo que nós podemos replicar em nossas próprias vidas, segundo Emily Troscianko, pesquisadora em literatura da Universidade de Oxford.
Mas existe pouca pesquisa que comprove se isso realmente acontece.
Na visão de Troscianko, “é muito simplista e claramente não é o que acontece na maior parte do tempo quando as pessoas leem sobre experiências difíceis que se assemelham às delas.”
Curiosamente, muitas pessoas dizem que a ficção as ajudou em seu estado mental.
Um total de 81% das pessoas que participaram da pesquisa anual de 2022 da The Reading Agency disseram que o livro do programa Reading Well as ajudou a entender melhor suas necessidades de saúde.
“‘Me fez perceber que eu não estou sozinha’…’saber como eu posso me ajudar’: essas são as coisas que mais aparecem nas pesquisas”, disse Jolly.
Mas provar que a biblioterapia criativa pode ajudar no tratamento de transtornos mentais requer estudos amplos para cada condição, nos quais os participantes que leem o livro seriam comparados com um grupo de controle, explica Carney.
Segundo ele, as pesquisas existentes não atendem a esse padrão.
No caso do transtorno de estresse pós-traumático — condição que alguns especialistas acreditam que a ficção poderia ser especialmente útil permitindo pacientes a processar emoções que, de outra forma, pareceriam ameaçadoras —, uma revisão de 2017 concluiu que não havia estudos de alta qualidade que comprovassem seus benefícios.
Quando a leitura é prejudicial
Um pouco mais preocupante é que algumas pesquisas identificaram que certos tipos de ficção podem causar danos.
Um deles é um estudo de 2018 em que Troskianko colaborou com a organização britânica Beat — uma entidade de apoio a pessoas com transtornos alimentares — para entrevistar quase 900 participantes, a maioria com histórico pessoal de algum transtorno alimentar.
Os participantes foram questionados sobre como a leitura de livros de ficção afetava seu humor, auto-estima, hábitos alimentares, rotina de exercício e a forma como se sentiam a respeito de seus corpos.
De forma surpreendente para Troskianko, quando os participantes lembravam de livros com personagens que tinham transtornos alimentares, isso tendia a piorar seus sintomas.
“Se você tem um transtorno alimentar, provavelmente vai ao menos perceber que os efeitos da leitura desse tipo de livro para você foram negativos”, diz.
Preocupantemente, cerca de uma dúzia de participantes disse que procurava ativamente esse tipo de livro, acrescenta.
Troscianko especula que esses livros despertem os mesmos sentimentos negativos que impulsionam os transtornos alimentares, como a competitividade em relação ao corpo e aos hábitos alimentares dos outros.
Outra pesquisa conduzida por ela sugere que pessoas com transtornos alimentares têm dificuldade para se concentrar em textos que não estejam relacionados à sua condição.
“No fim das contas, as únicas coisas nas quais elas conseguem focar são justamente aquelas que as puxam ainda mais para dentro desse mundo obsessivo e restrito”, diz.
“Essa é uma das razões pela qual eu fico frustrada com essa atitude meio despreocupada de ‘ler livros sobre determinado assunto deve ser sempre útil’, porque, bem, tudo depende dos livros. A literatura é complicada. Os seres humanos são complicados, então por que esperar que os efeitos não sejam também complexos e cheios de nuances?”
Carney suspeita que pessoas com dependência química podem ter o mesmo sentimento ao lerem ficções que tenham personagens que abusam de substâncias, que muitas vezes tendem a glamourizar o vício.
Enquanto isso, Schuman, o médico do NHS, afirma que ele apenas indica ficções para pacientes que ele conhece bem e que nunca recomendaria para pessoas com doença psicótica ou com pensamentos suicidas — situações em que, segundo ele, isso pode ser não apenas prejudicial, mas também inadequado e inútil, podendo até minar a confiança do paciente nos médicos.

Crédito, Getty Images/BBC
O programa Reading Well leva em conta esses tipos de nuances, segundo Jolly.
Por exemplo, a Reading Agency desenvolveu uma lista de livros geralmente estimulantes e que elevam o humor, voltada para pessoas que desejam escapar de qualquer condição ou experiência difícil pela qual estejam passando.
As recomendações do programa para adultos com transtornos alimentares incluem apenas livros que oferecem apoio prático, e não obras ficcionais relacionadas a hábitos alimentares ou imagem corporal (embora a lista de leitura para adolescentes incluam esses livros, com base na opinião de profissionais de saúde e jovens que desejavam mais histórias pessoais).
O programa também removeu histórias de ficção sobre demência depois de receber comentários de pacientes que disseram preferir obras reais que capturavam melhor as nuances da condição.
Jolly reconhece que livros não são a solução para todo mundo.
“Nós sempre dizemos que o ‘tamanho único’ não serve para todo mundo”, afirma. “É sobre ter uma ferramenta a mais que pode funcionar para algumas pessoas.”
Nada disso quer dizer que a ficção não pode ajudar a melhorar certas condições.
Um estudo pequeno acompanhou dois grupos de até oito pessoas com depressão, que relataram ter uma melhora na saúde mental durante o ano em que participaram de grupos de leitura de poesia e ficção.
Carney suspeita que certos tipos de ficção podem ser úteis para pessoas com ansiedade, que, em sua essência, é impulsionada pela imprevisibilidade.
Ele sugere que ler ficção com personagens previsíveis, no estilo de Sherlock Holmes, por exemplo, pode ser benéfico “porque, essencialmente, você está inundando o mundo com evidências de que ele é previsível”.
Fora desse contexto do tratamento de condições específicas, ler uma obra de ficção, drama ou poesia pode ajudar a melhorar o bem-estar mental no geral.
Por exemplo, pessoas com dores crônicas, que fazem parte de um programa de leitura oferecido pela organização britânica The Reader relataram sentir um senso de comunidade compartilhada, melhora no humor e na qualidade de vida.

Crédito, Getty Images
Esses benefícios para o bem-estar podem depender de como as pessoas se envolvem com os livros.
Em um dos estudos de Poerio, ela e seus colegas fizeram com que 94 pessoas idosas ouvissem audiolivros que haviam escolhido de uma lista de livros populares de ficção e não ficção.
Mesmo duas semanas depois do programa, os participantes relataram uma melhora no bem-estar e que sentiam que suas vidas tinham mais sentido — mas isso aconteceu apenas com aquelas pessoas que disseram que tinham se envolvido profundamente com a leitura e apreciado os livros que escolheram.
“Quando as pessoas estavam emocionalmente envolvidas com o conteúdo do livro — ele as transportava, elas se sentiam absorvidas, o livro ressoava com elas, deixava uma impressão duradoura — é aí que vimos os benefícios para o bem-estar”, diz Poerio.
Carney concorda que apenas dar um romance para as pessoas lerem não fará muito efeito. Sua pesquisa sugere que refletir sobre os livros depois da leitura, especialmente em grupo, oferece uma ajuda muito maior ao bem-estar.
Discutir literatura oferece às pessoas uma maneira de pensar sobre assuntos angustiantes sem afetar negativamente seu bem-estar, diz Carney.
“A ficção nos dá uma forma de ensaiar todas essas dificuldades, desafiar cenários sociais. E se você pode fazer isso com outras pessoas, isso torna tudo mais real, e impactante.”
Para as pessoas que querem experimentar a biblioterapia por conta própria, Carney recomenda tentar encontrar um clube do livro para discussões.
Jolly sugere visitar bibliotecas públicas, onde você pode ler vários livros de graça, e se você não gostar de um, pode simplesmente pegar outro, tentar algo mais curto ou um gênero diferente, como poesia.
E se ler não for para você, Poerio diz que talvez haja outras formas de melhorar seu bem-estar, como por meio da música, por exemplo.
“Se você sente que está ajudando, que está tirando algum benefício, você vai querer continuar”, diz Schuman. “Mas se parecer inútil ou intrusivo, então você se sentir totalmente livre para parar a qualquer momento.”
Quanto a Russell, ela está convencida de que a biblioterapia oferece um caminho para uma saúde mental melhor e já fez várias sessões com Berthoud desde sua primeira consulta.
Ela até comprou vale-presentes de sessões de biblioterapia para os amigos, e está usando essa abordagem para ajudar seus alunos, escolhendo livros que abordam as experiências de imigrantes, temas de perda e outras dificuldades.
“Eu acho que o ponto mais importante é que você não se sinta tão sozinho”, diz.
“Você pode respirar fundo e dizer: eu não estou sozinha nessa jornada.”
Todo o conteúdo deste artigo é fornecido apenas para fins informativos gerais e não deve ser usado como substituto de aconselhamento de um médico ou de qualquer outro profissional de saúde.
A BBC não se responsabiliza por qualquer diagnóstico feito por um leitor com base no conteúdo desde site. A BBC também não é responsável pelo conteúdo de sites externos listados, nem endossa qualquer produto comercial ou serviço mencionado ou aconselhado em qualquer um dos sites.
Sempre consulte seu médico de confiança se estiver preocupado com a sua saúde.
Fonte.:BBC NEWS BRASIL