Apesar de alterar mais de mil artigos e introduzir centenas de novos dispositivos ao Código Civil, o Projeto de Lei nº 4/2025 começou a tramitar no Senado sem dar espaço a vozes críticas na primeira audiência pública da comissão criada especialmente para analisá-lo.
Realizada na última quinta-feira (9), a primeira audiência da Comissão Especial responsável por analisar o projeto foi marcada por um desequilíbrio evidente: todos os oradores oficiais participaram da elaboração do texto ou são seus apoiadores declarados.
Professores de Direito críticos do projeto que viajaram por conta própria até Brasília para tentar participar não tiveram a oportunidade de falar. O Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP) denunciou a exclusão e aponta risco de que o debate seja conduzido por um “consenso artificial”.
O evento, conduzido pelo presidente da comissão temporária, senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG), teve como convidados os ministros Luis Felipe Salomão e Marco Aurélio Bellizze, ambos do STJ, além dos professores Rosa Maria de Andrade Nery e Flávio Tartuce, relatores do anteprojeto. As falas foram todas em tom elogioso à proposta.
Não houve espaço para manifestações divergentes nem para perguntas do público presente. Apesar de o regimento interno do Senado prever a participação de todas as partes interessadas em audiências públicas, a presença de críticos foi vetada na prática.
A assessoria de Rodrigo Pacheco limitou-se a informar, quando questionada pela reportagem da Gazeta do Povo, que “haverá mais” audiências. O senador Marcos Pontes (PL-SP), que integra a comissão como suplente, confirma que tentou indicar nomes para a primeira audiência, mas foi informado de que essa primeira reunião seria restrita aos integrantes da comissão de juristas. “O tema é muito importante e exige participação ampla da sociedade e especialistas”, diz. “Não se pode criar leis que impactam a sociedade transversalmente sem abrir a discussão ampla. Isso se chama democracia.”
O senador Carlos Portinho (PL-RJ), membro titular da comissão e sub-relator da matéria de responsabilidade civil, afirma que haverá mais participação. “Tenho recebido notas técnicas semanalmente. Estou avaliando todas e serão colocadas as sugestões e críticas em debate”, garante. “Se o anteprojeto é ruim, mais ainda precisamos da sociedade civil para construir um texto melhor.” Segundo Portinho, “a primeira audiência era para participação daqueles que participaram do anteprojeto”. “Ponto de partida. Terão muitas para participação aberta e outras mais, como as que farei”, diz. Sobre a premissa de que o projeto de Pacheco é necessário, contudo, Portinho não manifesta discordância.
Professores críticos do Código Civil de Pacheco viajam a Brasília e não são ouvidos na audiência
Alguns juristas especialistas em Direito Civil ressaltam que a primeira audiência seria justamente a ideal para que críticas às próprias premissas do projeto pudessem ser feitas.
O professor Giordano Bruno Soares Roberto, da UFMG, viajou a Brasília por conta própria para tentar se manifestar na audiência inaugural. “O assunto da audiência pública era discutir a conveniência de aprovar um novo código. Era um assunto muito importante, porque todas as audiências sequentes terão temas específicos. Fui na expectativa de me inscrever para participar, mas não houve esse momento de abertura”, relata.
O momento reservado à participação popular limitou-se à leitura de mensagens enviadas pelo portal e-Cidadania. “Foi lamentável haver uma sessão em que só uma voz fosse ouvida, em que todas as pessoas falassem sempre na mesma direção”, diz Giordano.
Outros professores especialistas em Direito Civil não puderam falar, como Paulo Doron Rehder de Araujo (FGV). Doron chegou a entregar pessoalmente a Pacheco um ofício do IASP pedindo que críticos do projeto fossem ouvidos. “Não foi aberta a possibilidade de se discutir criticamente as premissas e a própria conveniência de se fazer uma reforma tão ampla de um Código que tem vinte e poucos anos”, afirma.
O professor Torquato Castro Jr., da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), também foi à audiência com a expectativa de participar. Em carta aberta à Comissão pela preservação do Código Civil de 2002, ele se define como “o professor titular de Direito Civil mais antigo da mais antiga casa que ensina Direito Civil no Brasil” e critica a condução do processo. Destaca a falta de diálogo com a comunidade jurídica, a ausência de diversidade de pensamento, o sigilo na elaboração dos textos e a pressa excessiva para aprovar mudanças profundas.
“Por que, quando deveríamos abrir as portas ao outro, para haver mais democracia, é quando mais procuramos o conforto das nossas bolhas? Vi nitidamente que minha opinião dissidente, sou pela abolição da união estável, não teria voz nem vez nesse ambiente”, afirma na carta.
À reportagem, ele explica que viajou a Brasília especificamente para a reunião e não teve espaço para falar: “Fui instado por colegas professores a me manifestar na audiência, que seria para ouvir sobre a necessidade do projeto. Eu ia trazendo restrições à ocasião e à forma assumidas na proposta de renovação, que considero antes um retrocesso na proteção da mulher e do idoso”, conta. “Fui porque que seria um evento aberto e gravado, onde poderia tornar pública a minha opinião e de muitos colegas exatamente no sentido de achar o projeto inoportuno e visivelmente inconsistente, de tão apressado.”
IASP diz que falta de diversidade compromete legitimidade das discussões
O IASP formalizou seu protesto em uma nota pública e em um requerimento ao presidente do Senado, Davi Alcolumbre (União-AP), pedindo a abertura do processo a vozes divergentes. A entidade aponta a falta de equilíbrio na escolha dos convidados, a limitação do número de audiências públicas e a exclusão de nomes que expressam críticas ao texto.
“Ainda que incluam juristas de reconhecida trajetória acadêmica, não representam a diversidade das vozes nem contemplam manifestações críticas já apresentadas pela comunidade jurídica. Essa limitação esvazia o devido processo legislativo e compromete a legitimidade do procedimento. Críticos apontam que o projeto não é pacificado e que a premissa de que a maioria das mudanças já é aceita pela doutrina e jurisprudência é questionável”, diz a nota pública.
“Se é verdade que, em um país de dimensões continentais, a plataforma e-Cidadania se mostra um instrumento importante, o recurso digital seria desvirtuado se utilizado como pretexto para repelir participações mais diretas”, afirma o requerimento do IASP a Alcolumbre.
O cronograma aprovado pela comissão prevê, por enquanto, cinco audiências públicas além da que já ocorreu, divididas por temas específicos. A primeira tinha como título “Debates sobre a Importância de Reforma do Código Civil”, mas não houve espaço para debate.
A próxima, que ocorrerá na quinta (16), tratará da parte geral do projeto e do Direito Digital. Em audiências posteriores serão discutidas as partes sobre Família, Responsabilidade Civil e Direito das Coisas. Professores argumentam que a estrutura engessada do cronograma vai dificultar a contestação das premissas do projeto, como a própria necessidade de um novo Código Civil no Brasil.
“O projeto feito pela comissão de juristas não tem qualidade técnica suficiente pra subsidiar o debate parlamentar”, avalia Giordano Bruno. “Essa opinião teria lugar nessa primeira audiência, porque as próximas já servem pra discutir temas específicos e pressupõem que a gente tenha um material suficiente pro trabalho parlamentar. E eu discordo desse pressuposto.”
Alguns críticos do projeto estão agora sendo indicados por senadores da oposição para as próximas audiências. É o caso de Giordano, que foi indicado pelo senador Marcos Pontes para participar da audiência sobre Direito de Família. As juristas Regina Beatriz Tavares da Silva – da Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS) – e Andrea Hoffman – do Instituto Isabel – também foram sugeridas por Pontes para compor o debate.
Fonte. Gazeta do Povo