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A ministra comparou o autoritarismo a um vírus. E, para ela, assim como a pandemia exigiu vacinas para proteger a saúde pública, a democracia também precisaria de instrumentos para se defender.
“Desde 2021, para além da provação mundial da pandemia covid-19, novos focos de pesares sociopolíticos brotaram nestas terras a partir de estratégias e práticas voltadas a objetivos espúrios”, disse a ministra ao proferir seu voto nesta quinta-feira (11/9).
“Nunca é demais lembrar que, por mais que se cuide da saúde pública e política de uma sociedade estatal, por mais que se cuide de produzir instrumentos ou vacinas constitucionais e legais para se imunizar a sociedade de aventuras ditatoriais, em nenhum lugar do mundo se tem imunidade absoluta contra o vírus do autoritarismo”, continuou.
Mais tarde, com o placar de 4 a 1 já definido contra Bolsonaro, Cármen Lúcia voltou a comparar os atos golpistas com um vírus: “Ele é insidioso, invisível, até que vai se espalhando e contaminando o corpo inteiro”.
O ministro Flávio Dino complementou: “Esse julgamento é um check-up da democracia”, ao que Cármen Lúcia respondeu: “Espero que seja também um remédio — a recidiva não é boa”.
O paralelo com a saúde pública é apenas retórico. Mas a metáfora ressoa com a própria trajetória do processo que resultou na condenação do ex-presidente, já ele começa justamente com uma apuração da Controladoria-Geral da União (CGU) sobre possíveis fraudes no cartão de vacinação de Bolsonaro.

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Naquele mês, em pronunciamento em rede nacional de rádio e TV, Bolsonaro pediu o fim de medidas de isolamento social.
“Algumas poucas autoridades estaduais e municipais devem abandonar o conceito de terra arrasada, como proibição de transporte, fechamento de comércio e confinamento em massa”, disse.
Com o surgimento das primeiras vacinas contra a covid-19, Bolsonaro defendeu a não obrigatoriedade do imunizante e repetiu que ele próprio jamais se vacinou.
Também afirmou que quem dizia que ele dava um mau exemplo era “imbecil ou idiota”, no mesmo dia que ironizou os possíveis efeitos colaterais da vacina da Pfizer. “Se você virar um jacaré, é problema seu.”
De um lado, Bolsonaro fazia declarações que colocavam em xeque a eficácia das vacinas. Ao mesmo tempo, defendia o uso de medicamentos comprovadamente sem eficácia contra a doença, como a cloroquina e a hidroxicloroquina.

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Antes do fim de seu mandato, no dia 30 de dezembro de 2022, o então presidente viajou à Flórida, nos Estados Unidos.
No início do ano seguinte, já no governo Lula, a CGU começou a investigar uma denúncia de adulteração do cartão de vacinação do ex-presidente, que havia decretado sigilo ao próprio documento.
O órgão apontou que o registro de imunização de Bolsonaro contra a covid feito em São Paulo era falso. A Polícia Federal passou a investigar, a partir das informações da CGU, se houve fraude na inserção deste e de outros dois registros de vacinação de Bolsonaro, em Duque de Caxias (RJ).
Segundo a PF, tanto os registros de vacina de Bolsonaro quanto o de sua filha Laura e de assessores do então presidente, como o tenente-coronel e ex-ajudante de ordens Mauro Cid, teriam sido adulterados poucos dias da viagem.
Em maio de 2023, uma operação ligada ao inquérito apreendeu o celular do ex-presidente e outros materiais para investigação, como pen drives.
Nesta operação, os policiais também prenderam Cid — cuja delação premiada viria a ser, meses mais tarde, peça central da ação penal que apurou a tentativa de golpe de Estado.
A operação foi determinada pelo ministro Alexandre de Moraes que, na época, investigava o inquérito das “milícias digitais”, que apurava a disseminação de notícias falsas nas redes sociais.
A avaliação era que a suposta falsificação dos certificados de vacinação tinham conexão com outra investigação que tramitava em seu gabinete e, por isso, esse caso deveria ficar também em sua relatoria.
Moraes considerou que a falsificação teria sido realizada para manter a coerência da campanha de desinformação contra a vacinação de covid-19 e, dessa forma, estaria relacionada com os crimes apurados no inquérito das milícias digitais.
Após a busca e apreensão da PF em sua casa, Bolsonaro disse que não temia a perícia em seu celular: “Meu telefone não tem senha, não tenho nada a esconder sobre nada”, falou a jornalistas.

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Na época, a apreensão do celular levantou questionamentos sobre se o material colhido após perícia poderia ser usado em outros inquéritos contra Bolsonaro.
Naquele momento, o advogado criminalista e professor da FGV Celso Vilardi — que defenderia mais tarde Bolsonaro na ação penal que apurou de golpe de Estado — afirmou à BBC News Brasil que era perfeitamente possível usar eventuais provas colhidas em uma investigação para outras apurações em curso.
“Existem indícios muito fortes no sentido de que a carteira de vacinação do presidente foi efetivamente falsificada”, afirmou Vilardi à reportagem na época.
“A busca era efetivamente necessária, a partir daí não se fala mais em fishing expedition [“pescaria probatória” em português], se fala em um celular apreendido. Se esse celular, para além de comprovar ou não [os crimes alvos da operação], demonstrar que outros crimes foram praticados, a autoridade pública que se depara com isso obrigatoriamente tem que apurar.”
Foi o que aconteceu. A PF identificou mensagens potencialmente criminosas a partir da quebra de sigilo dos dados armazenados nos aparelhos de Cid, evidências que estruturam operações posteriores envolvendo o caso das joias e também da tentativa de golpe de Estado.
Foi no celular do tenente-coronel que uma minuta para um golpe, uma espécie de “roteiro do golpe” detalhando um “passo a passo” para a ruptura institucional, e um decreto de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) foram encontrados.
A minuta previa, apontaram as provas validadas pelos ministros do STF, a contestação do resultado das eleições e o afastamento de ministros do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), como Moraes e Cármen Lúcia.
Além disso, indicava a atuação das Forças Armadas para “mediar o conflito institucional” e nomear interventores no tribunal para convocar novas eleições.
Em setembro de 2023, Cid ganhou liberdade, com o uso de tornozeleira eletrônica.
Meses antes, ele havia entrado na prisão como o principal assistente e braço-direito de Bolsonaro. Saiu como seu principal algoz: mais tarde, foi divulgada a informação de que ele havia firmado um acordo de colaboração premiada.
Na delação, Cid afirmou que recebeu ordens do ex-presidente para inserir dados falsos de vacinação contra a covid-19 nos sistemas do Ministério da Saúde.
Em fevereiro de 2024, foi deflagrada uma operação contra Bolsonaro, ex-ministros militares e aliados do ex-presidente, já que evidências apontavam que Bolsonaro tinha conhecimento da existência do plano para impedir a posse de Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Em novembro daquele ano veio o indiciamento no caso que levou o ex-presidente e outros réus à condenação.
Mauro Cid era considerado um dos homens de confiança de Bolsonaro e vem de uma família de militares.
Sua delação foi duramente criticada pelas defesas dos demais réus por conta das supostas contradições e da quantidade de depoimentos que ele prestou às autoridades. A validade de sua delação, contudo, foi mantida pelos ministros da Primeira Turma.
No julgamento, o tenente-coronel recebeu pena de dois anos de reclusão em regime aberto, a mais branda entre os julgados pela tentativa de golpe de Estado.
Ele tomou a decisão após pedido de arquivamento feito pelo procurador-geral da República, Paulo Gonet, que afirmou que não foram encontradas provas suficientes para corroborar o que foi dito na delação de Cid.
Uma situação diferente, disse Gonet, da denúncia que condenou Bolsonaro.
Fonte.:BBC NEWS BRASIL