
Crédito, Netflix
- Author, Nick Levine
- Role, BBC Culture
Duas palavras parecem definir a história das pessoas gay nas Forças Armadas dos Estados Unidos: serviço e sigilo.
Friedrich Wilhelm von Steuben (1730-1794), conselheiro de confiança do primeiro presidente americano, George Washington (1732-1799), é frequentemente considerado o criador do Exército profissional dos Estados Unidos, no final do século 18.
Muitos historiadores acreditam que ele tenha sido gay. Mas, como incontáveis outros militares que seguiram seu caminho, ele nunca saiu do armário. Isso porque, por muitas décadas, as pessoas gay eram punidas e expulsas das Forças Armadas americanas.
Mesmo em 1994, quando ficou estabelecido que pessoas lésbicas, gays e bissexuais (LGB) poderiam legalmente servir as Forças Armadas, havia uma norma clara: “não pergunte, não conte“, que proibia que eles discutissem sua sexualidade.

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Quando a política “não pergunte, não conte” foi eliminada, em 2011, pessoas abertamente LGB foram finalmente recebidas nas Forças Armadas americanas e novos progressos viriam posteriormente.
Em junho de 2024, o então presidente Joe Biden emitiu um perdão geral a milhares de veteranos que haviam sido condenados com base no Artigo 125 do Código Uniforme de Justiça Militar dos Estados Unidos (UCMJ, na sigla em inglês).
Criada em 1951 e extinta em 2013, esta controversa legislação militar proibia que os militares se envolvessem em “copulação carnal não natural” com qualquer pessoa do mesmo sexo.
Ao conceder o perdão, Biden emitiu uma declaração reconhecendo que “muitos ex-militares… foram condenados simplesmente por serem eles mesmos”.
Agora, a nova série de drama e comédia Boots, da Netflix, traz para a tela a coragem dos militares gay. Ela se baseia nas memórias de Greg Cope White, The Pink Marine (“O fuzileiro cor-de-rosa”, em tradução livre), publicadas em 2016.
Cope White chama o serviço militar de “o grande equalizador”.
“Eles raspam sua cabeça, colocam camuflagem em você, entregam uma espingarda e dizem que todos são iguais”, conta ele à BBC.
Mas, nas últimas décadas, os militares LGBTQIA+ precisaram lutar pelo direito de receber o mesmo tratamento dos seus colegas heterossexuais.
Apesar da sua redação rígida, o Artigo 125 do UCMJ nunca impediu pessoas homossexuais de servirem ao país. Elas simplesmente precisavam tomar cuidado para não serem pegas.
“Soldados gay, bissexuais e lésbicas operavam sob uma nuvem de medo, suspeitas e incertezas”, afirma o historiador cultural Nathaniel Frank.
“Muitas vezes, os relacionamentos [do mesmo sexo] que corriam mal ou incidentes com um superior ou subordinado podiam gerar chantagem, o que era uma vulnerabilidade constante para os soldados LGB.”

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Frank é o autor do livro Unfriendly Fire: How the Gay Ban Undermines the Military and Weakens America (“Fogo inimigo: como a proibição gay prejudica as Forças Armadas e enfraquece a América”, em tradução livre), de 2009. Ele também é diretor do Portal de Pesquisa “What We Know” (“O que sabemos”), da Universidade Cornell, nos Estados Unidos.
Ele destaca que o “pagamento, a aposentadoria e toda a carreira” de um militar dentro do armário “estavam sempre em risco” se ele fosse expulso.
“E, ocasionalmente, as pessoas gay acabavam em prisões militares por praticar intimidade com o mesmo sexo”, segundo Frank.
Frank afirma que quando o ex-presidente Bill Clinton criou a norma “não pergunte, não conte” “o que se pretendia era oferecer uma melhoria, pondo fim à chamada ‘caça às bruxas'” e protegendo os militares gay, para que não sofressem assédio nem discriminação.
Mas, na prática, a política agravou ainda mais as suas condições.
“Ao chamar a atenção para esta questão em uma guerra cultural nacional, as pessoas gay ficaram sob o microscópio e dados demonstram que o número de dispensas [por razões de sexualidade], na verdade, aumentou em vez de diminuir”, prossegue Frank.
“Os militares não deveriam perguntar se alguém era gay, mas [muitos] violavam constantemente esta regra e a caça às bruxas prosseguiu.”
Ilustração única da vida militar
Boots destaca a coragem e a resiliência dos militares que sublimaram uma parte integrante da sua identidade para servir às Forças Armadas.
A série foi criada por Andy Parker, o mesmo da série Crônicas de San Francisco (2019), a adaptação feita pela Netflix do clássico da literatura LGBT Histórias de Uma Cidade, de Armistead Maupin (Ed. Record, 1998).
Boots é fiel ao espírito do livro de Cope White — sincero, engraçado e com mais positividade do que compaixão.
O ator Miles Heizer interpreta o protagonista Cameron, um adolescente gay não declarado que se alista no Corpo de Fuzileiros Navais dos Estados Unidos. Era um esforço desesperado em busca de pertencimento, algo que Cope White também precisou enfrentar.
“Sei que sou homem, mas a sociedade me dizia que eu era menos homem [devido à minha sexualidade]”, relembra o autor.
“Fui para aquele ambiente para encontrar meu lugar no mundo masculino, embora seja possivelmente o local mais difícil para encontrar isso.”
Mas, ao mesmo tempo, a série em oito episódios altera significativamente o escopo e o ambiente do livro.
Cope White situa o campo de treinamento em 1979, mas Boots transfere as ações para 1990, apenas quatro anos antes da criação da norma “não pergunte, não conte”.
Parker espera que a série seja renovada para outras temporadas. E, se isso acontecer, esta política deverá fornecer muitos impulsos dramáticos para os novos roteiros.
“Nosso principal personagem gay certamente tem um segredo que traz riscos muito altos para ele naquele ambiente”, destaca Parker, “mas todas as pessoas que ele conhece também têm algo a esconder ou um motivo para fugir.”
“Este sentimento comum, para mim, parece algo interessante para ser explorado.”

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Mesmo com o frisson homoerótico, este senso de absurdo reflete o que era uma situação real desesperadora, triste e destrutiva para muitos soldados.
“Alguns dos ex-fuzileiros que trabalharam nesta série [como consultores históricos] não são homossexuais, mas acharam esta política tão absurda [quanto seus parceiros gay]”, segundo Parker.
Ele destaca como esta política parecia “totalmente contraintuitiva para a coesão social” do núcleo da vida militar.
Cope White conta que seu principal motivo para deixar os Fuzileiros Navais após seis anos de serviço foi o desgaste de precisar mentir constantemente, algo que Cameron precisa enfrentar ao longo da série.
“O Corpo de Fuzileiros Navais é um lugar para encontrar seu verdadeiro eu”, ele conta. “Mas eu não podia ser meu eu verdadeiro e não conseguia continuar sendo falso com as pessoas que eu tanto admirava e respeitava.”
A proibição de pessoas trans
Atualmente, as pessoas LGB podem servir às Forças Armadas sem subterfúgios.
Uma pesquisa de 2015, entre 16 mil militares, concluiu que 5,8% dos participantes se identificaram como sendo gays, bissexuais ou lésbicas.
A ordem executiva afirmou que se identificar como transgênero “gera conflito com o compromisso do soldado com um estilo de vida honrado, verdadeiro e disciplinado” e prejudica a preparação militar.
Em maio, a Suprema Corte americana permitiu temporariamente que Trump execute sua proibição enquanto são examinados os questionamentos legais à decisão.
Esta batalha judicial em andamento fez com que Boots se tornasse extraordinariamente oportuna para uma obra de época, segundo Parker.
“Quando vendi a ideia em 2020, pensei que iríamos contar uma parte importante da história. Não era possível imaginar o que ela significaria no momento atual, quando estamos discutindo [o direito a servir às Forças Armadas] das pessoas trans e observando uma crueldade similar ser infligida.”
Frank acredita que “a defesa nacional sempre serviu de campo de preparação de debates sobre o que significa ser americano”, devido à sua posição única na psique coletiva do país.
“Para os ativistas antigay, deixar que pessoas gay sirvam ao seu país de uniforme ameaçava revelar algo que eles não queriam reconhecer — que as pessoas gay não são hedonistas egocêntricos que pertencem às margens da sociedade americana”, afirma ele.
Para Cope White, qualquer tipo de exclusão é um anátema à própria ideia de serviço militar.
“Pedimos aos jovens de todos os estilos de vida que se reúnam e [potencialmente] deem a vida para proteger nossa constituição”, defende ele.
“Todas as pessoas dispostas e qualificadas não devem ser apenas autorizadas a servir. Elas devem ser bem recebidas e homenageadas.”
Fonte.:BBC NEWS BRASIL