Ao longo de mais de 40 anos da epidemia global de HIV e aids, cientistas se esforçam para desvendar os mecanismos de ação do vírus e encontrar uma forma de eliminá-lo do corpo humano de forma definitiva e acessível a todas as pessoas infectadas.
Do Brasil, desponta o mais novo passo rumo à cura da infecção, hoje controlada com medicamentos diários. Mas e se fosse possível riscar as pílulas da agenda?
É o plano de cientistas da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Com a utilização de diferentes tecnologias e fármacos, um estudo inédito conduzido por eles mostrou resultados promissores.
Em um grupo de 30 voluntários, três apresentaram controle viral por alguns meses sem o uso dos remédios disponíveis. Entre os destaques, está um participante que manteve o vírus controlado por 78 semanas, ou quase um ano e meio. O estudo foi publicado no Journal of Infectious Diseases.
Antes de compreender o que fez o grupo de pesquisa da Unifesp, com a colaboração de instituições internacionais, vamos a alguns conceitos básicos.
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Como o tratamento do HIV funciona hoje
O tratamento antirretroviral tem como objetivo impedir a multiplicação do HIV no corpo — e faz isso com sucesso.
Com a adesão à terapia contínua, a quantidade de vírus fica baixa a ponto de não ser identificada no sangue do indivíduo durante a realização de exames laboratoriais.
É o que se chama de carga viral indetectável, que garante saúde, qualidade de vida, preservação do sistema imunológico e zero risco de transmissão através de relações sexuais.
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Mas, mesmo que os remédios tenham evoluído bastante ao longo do tempo, ainda não são capazes de eliminar o micro-organismo totalmente do corpo.
Isso ocorre por conta do comportamento do HIV no organismo. Quando a infecção acontece, ele invade células chamadas linfócitos T CD4, que fazem parte do sistema imune. A partir de então, começa o processo de replicação, que consiste na produção de inúmeras cópias do vírus (veja o infográfico abaixo).
O problema é que o HIV é um agente “traiçoeiro”, capaz de criar reservatórios, ou seja, células e tecidos onde ele pode se esconder até um novo ciclo começar.
Para isso, ele infecta o linfócito T CD4 de forma latente, permanecendo silencioso e sem produzir novos vírus. Isso significa que a célula não será detectada pelo sistema imunológico e nem destruída, uma vez que ela está aparentemente normal.
Com essa espécie de “capa da invisibilidade”, o patógeno engana os antirretrovirais disponíveis no Brasil e em todo o mundo. Ou seja: ele não consegue se replicar o suficiente para causar doença, mas também não vai embora de vez.

Agora, considerando que o controle viral está associado à medicação, o que acontece quando uma pessoa abandona a terapia?
Infelizmente, isso acontece com frequência. Os fatores são diversos e incluem a falta de informação, possíveis efeitos adversos, esquemas com dois ou mais comprimidos, além da vulnerabilidade social.
O problema é que abre-se uma brecha para a multiplicação viral ocorrer novamente sem barreiras. Assim, em até seis meses, é observado um cenário semelhante ao do início da infecção, de alta carga viral. É justamente nessa etapa que apareceu a grande novidade do estudo.
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Estratégias inovadoras
Como explicamos, o HIV se “esconde” em células específicas do sistema imunológico e ali permanece quieto, sem se replicar. Por outro lado, ele também não é reconhecido por nossas defesas como um agente ameaçador — e, consequentemente, passa ileso.
Para tentar contornar esse grande dilema, os pesquisadores chegaram a duas estratégias.
Uma delas recorre a agentes que reativam o vírus “quietinho” nas células. É uma espécie de “Acorda, menina!”. Assim que eles botam a cara pra fora, tanto o sistema imune quanto os fármacos selecionados pelos experts em cada estudo já estarão ali de prontidão para deter o invasor.
Essa técnica é chamada de “shock and kill” (“choque e morte”, no bom português). Só que ela tem falhas, como a possibilidade de nem todos os vírus serem reativados e, posteriormente, eliminados. Em alguns casos, as defesas podem não ser lá muito suficientes.
A segunda medida consiste em aproveitar que certa quantidade viral está confinada dentro de células para trancá-la de forma permanente por lá. Desse modo, a proposta é que o vírus não cause mais problemas.
A tática, nomeada “block and lock” (bloqueio e travamento), também conta com algumas lacunas. Nesse caso, os especialistas enfrentam desafios para assegurar que esse “lacre” permaneça intacto.
Para chegar aos resultados, o grupo da Unifesp conduziu um ensaio clínico de prova de conceito combinando essas estratégias, junto com a terapia antirretroviral, o uso de nicotinamida (vitamina B3), o composto auranofina e uma imunoterapia personalizada com células dendríticas, um tipo de glóbulo branco importante para a resposta imune.
“A ideia é tentar mostrar se é possível conseguir que o paciente não precise tomar a medicação, mas tenha os mesmos benefícios do indivíduo em tratamento hoje em dia, usando múltiplas estratégias para chegar em algo parecido com uma cura funcional”, resume Naime.
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A um passo da cura
Uma etapa necessária dos estudos voltados para a remissão do HIV é realizar a interrupção do tratamento para avaliação dos indicadores da infecção, como a carga viral.
Vale lembrar que, diferentemente do abandono da terapia, o procedimento é realizado no contexto da pesquisa científica, que oferece segurança e acompanhamento. Nesse sentido, o artigo relata que não foram observados eventos adversos graves durante esse período.
A análise revelou que a maior parte dos indivíduos apresentou resultados detectáveis para o vírus até a semana 14. Dois participantes mantiveram taxas muito baixas ou abaixo do limite de detecção por 22 semanas, voltando então a tomar os comprimidos por decisão clínica.
Do universo avaliado, destaca-se um participante que atingiu quase um ano e meio sem detecção do vírus no sangue após a pausa na terapia. O artigo descreve que a primeira carga viral detectável ocorreu na semana 84, tendo o voluntário retomado o tratamento quatro semanas depois, de acordo com os critérios da pesquisa.
“Esse paciente apresentou sorologia negativa para o HIV e a imunidade celular também. É exatamente o que aconteceu com aqueles que foram curados com transplante de medula”, pontua o médico Ricardo Sobhie Diaz, autor do estudo e professor da Unifesp. “Ele é a única pessoa sem o transplante que preencheria os requisitos para ter sido curado com alguma intervenção em estudo do HIV”, acrescenta.
As análises sugerem que o indivíduo possa ter eliminado o HIV do organismo por completo e contraído nova infecção. Devido à relevância dos achados, a pessoa ficou conhecida como “paciente de São Paulo”. As evidências foram reunidas e o caso será descrito em nova publicação científica.
“Cura” com ressalvas
É comum observar em textos jornalísticos o recurso de aspas na palavra cura quando a notícia envolve resultados de um novo estudo sobre HIV. Os cientistas costumam utilizar os termos remissão ou cura funcional.
Falar sobre o tema requer cuidado. Por quê?
Sem o tratamento adequado, o vírus pode levar ao comprometimento do sistema de defesa e, em fase crítica, ao desenvolvimento da aids, a doença.
Além dos mistérios científicos que permanecem nos últimos 40 anos, persiste também desde a década de 1980, o estigma sobre a população que vive com o vírus — vale lembrar.
Por isso também, abordar o caminho para acabar de uma vez com a infecção requer responsabilidade, uma vez que é algo que envolve esperança e sonhos de milhões de pessoas pelo mundo.
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Fonte.:Saúde Abril


