
Crédito, Miriam Prado
- Author, André Bernardo
- Role, Do Rio de Janeiro (RJ) para a BBC News Brasil
Em outubro de 1987, Arnaldo Brandão visitou Cazuza em sua cobertura na Lagoa, bairro no Rio de Janeiro (RJ).
Munido de uma fita cassete, o líder do grupo Hanói-Hanói queria mostrar ao parceiro a melodia que tinha acabado de compor.
Depois de ouvir a gravação, Cazuza abriu um sorriso: “Gostei. Parece Bob Dylan. Vou fazer uma canção de protesto”, prometeu.
Brandão se despediu com um abraço apertado. Mas o amigo se queixou do corpo doído.
Uma semana depois, Cazuza embarcou para uma viagem a Boston (EUA), onde fez exames no New England Medical Center e deu início ao tratamento com azidotimidina (AZT), sob os cuidados do médico Sheldon Wolff.
Neste meio tempo, Brandão recebeu uma ligação de Ezequiel Neves, produtor do grupo Barão Vermelho e parceiro musical de Cazuza em músicas como Codinome Beija-Flor, Exagerado e Por que a Gente É Assim?, entre outras.
Pelo telefone, Neves começou a ditar os versos de O Tempo Não Para, a melodia que virou canção: “Disparo contra o sol / Sou forte, sou por acaso / Minha metralhadora cheia de mágoas / Eu sou o cara…”
“Chorava enquanto anotava a letra”, recorda Brandão, hoje com 73 anos.
“Nos shows, toco com uma levada de bateria mais groovada para não lembrar da versão do Cazuza. Caso contrário, não conseguiria cantá-la sem chorar.”

Crédito, Miriam Prado
A música O Tempo Não Para foi a escolhida por Cazuza para fechar o show do álbum Ideologia, lançado em abril de 1988. O terceiro álbum da carreira solo do ex-vocalista do Barão Vermelho vendeu mais de 500 mil cópias.
No bis, ele voltava ao palco para cantar Faz Parte do Meu Show (1986), letra de Cazuza e música de Renato Ladeira, vocalista do grupo Herva Doce.
O show teve direção artística de Ney Matogrosso, que namorou Cazuza por três meses, e musical de Nilo Romero.
Ao todo, a turnê teve 42 shows. Começou no dia 17 de agosto de 1988, em São Paulo (SP). E terminou no dia 24 de janeiro de 1989, no Recife (PE). Em cinco meses, passou por 12 cidades — de Belém (PA) a Porto Alegre (RS).
Dos músicos que tocaram no disco Ideologia, três foram convidados para cair na estrada: o baixista Nilo Romero, o guitarrista Ricardo Palmeira e o tecladista João Rebouças.
Cazuza convidou também Luciano Maurício para a guitarra, Christiaan Oyens para a bateria, Widor Santiago para o saxofone, Marçal para a percussão e as irmãs Jussara e Jurema Lourenço para os vocais de apoio.
“A lembrança mais forte? A luta pela vida”, afirma o guitarrista Ricardo Palmeira.
“Cazuza vivia cada momento intensamente. Sempre que acontecia alguma adversidade, ele se recuperava e seguia adiante. Não se rendia nunca.”
‘Não sou eu que levo a vida. É a vida que me leva’
Das 12 músicas do álbum Ideologia, sete entraram no repertório do show: Ideologia, Boas Novas, Orelha de Eurídice, Brasil, Vida Fácil, Blues da Piedade e Faz Parte do Meu Show.
Cazuza cantou quatro do álbum Exagerado (1985): Exagerado, Codinome Beija-Flor, Mal Nenhum e Só as Mães São Felizes.
E duas de Só Se For a Dois (1987): O Nosso Amor a Gente Inventa e Completamente Blue.
Para completar o setlist, resgatou uma canção do repertório do Barão Vermelho, Todo Amor que Houver Nessa Vida (1982), e outra do álbum Virgem, de Marina Lima, Preciso Dizer que Te Amo (1987).
Duas canções eram inéditas na voz de Cazuza: Vida Louca Vida (1987), de Lobão e Bernardo Vilhena, e O Tempo Não Para, de Cazuza e Arnaldo Brandão.
A canção Vida Louca Vida, escolhida para abrir o show, foi composta para o terceiro disco de Lobão, Vida Bandida (1987).
Parte do refrão foi inspirada na epígrafe de um livro de Lou Andreas Salomé: “Não sou eu que levo a vida. É a vida que me leva”.
“Adoro aquela versão”, elogia Vilhena, coautor de clássicos, como Menina Veneno (1983), com Ritchie; e Vida Bandida, com Lobão.
“Na estreia do show, tomei o maior susto. É daqueles momentos que você não esquece mais.”

Crédito, Acervo Lucinha Araújo
Ordem e progresso
A turnê de O Tempo Não Para passou duas vezes pelo Rio: em outubro e em novembro de 1988.
Da primeira vez, Cazuza fez cinco shows no Canecão e um no Teatro Fênix. Nos estúdios da Globo, gravou, no dia 24 de outubro de 1988, o programa Uma Prova de Amor.
Fez dueto com as cantoras Gal Costa, Simone e Sandra de Sá nas músicas Brasil, Codinome Beija-Flor e Blues da Piedade e com o eterno parceiro musical, Roberto Frejat, em Ideologia. O especial foi ao ar no dia 1º de janeiro de 1989.
Da segunda vez, mais dez shows no Canecão e um em Barra Mansa (RJ), município a 127 quilômetros da capital fluminense.
O álbum O Tempo Não Para, o primeiro ao vivo da carreira de Cazuza, foi gravado no Canecão nos dias 14, 15 e 16 de outubro de 1988 e lançado em janeiro de 1989.
Foi no show do dia 16 que, durante a música Brasil, Cazuza cuspiu na bandeira brasileira atirada ao palco por alguém da plateia.
A cena está registrada no documentário Cazuza: Boas Novas, dirigido por Nilo Romero e Roberto Moret, que chegou em julho aos cinemas.
À época, Lucinha Araújo tentou colocar panos quentes. Aos repórteres que ligavam para sua casa, dizia que não passava de um mal-entendido.
“Cazuza tinha soprado pétalas de rosas que havia no chão do palco”, desconversou.
Foi desmentida pelo próprio filho: “Cuspi. E cuspiria mil vezes”, declarou.
No dia 18 de outubro, Cazuza escreveu uma carta-resposta.
“Não me arrependo. Sabia muito bem o que estava fazendo”, admite.
“Eu sei muito bem o que é a bandeira do Brasil”, prossegue. “Me enrolei nela no Rock in Rio junto com uma multidão que acreditava que esse país pudesse realmente mudar”.
“Vamos amá-la e respeitá-la no dia em que o que está escrito nela for uma realidade. Por enquanto, estamos esperando”, concluiu.
O texto só foi publicado no jornal O Globo no dia 16 de julho de 1990, nove dias depois da morte de Cazuza, por complicações decorrentes da Aids.
O documentário também mostra cenas divertidas de bastidores. Como o casamento de George Israel, em 1989 — Cazuza foi seu padrinho.
Num trecho, o roqueiro sobe ao palco para cantar O Tempo Não Para, mas erra a letra. Em outro, ele e o noivo brindam com champanhe no sapato da noiva.
‘Tiete alucinada’
A cusparada na bandeira não foi o único apuro da turnê. Nilo Romero lembra dois desmaios do cantor: um em Belém (PA) e outro em Salvador (BA).
“Você já foi a Belém? Então, é muito quente! Esse dia foi punk”, lembra o baixista. “Da outra vez, ele comeu acarajé e passou mal. No momento seguinte, é como se nada tivesse acontecido.”
Por medida de precaução, a produção do show providenciava balão de oxigênio e ambulância de plantão.
“Cazuza gostava de meter o pé no acelerador. Por essa razão, a gente fugia dele para ir à praia. Fugia, mas não adiantava. Pegava o motorista e ia atrás da gente. Quando encontrava, rolava o maior esporro”, diverte-se Romero.
No livro Só as Mães São Felizes (Globo, 2016), Lucinha Araújo relata alguns dos perrengues da turnê.
Em São Paulo, seu filho se desentendeu com o gerente de um hotel. No auge do descontrole, quebrou uma porta de vidro.
O segurança sacou uma arma e Cazuza resolveu enfrentá-lo: “Atira! Vamos ver se é homem mesmo para atirar!”
Em Maceió, arriou as calças após levar vaia da plateia e, no Recife, recebeu vaia após se dirigir à plateia em inglês.
Em Salvador, um desavisado na plateia gritou “Dá-lhe, aidético!” sem saber que estava sentado atrás de Lucinha e João Araújo.
Resultado: foi convidado a se retirar debaixo de socos e pontapés. Mas, antes de ser expulso, teve o valor do ingresso reembolsado.
“Aquele sujeito foi duplamente infeliz”, recorda Lucinha. “Primeiro, por ter gritado o que gritou e, segundo, por ter sentado atrás da gente. O João meteu a porrada nele.”
Em Protegi Teu Nome Por Amor, Lucinha Araújo atribui as crises agudas do filho, como mudanças de humor e rompantes de agressividade, ao uso do AZT.
“Era insuportável para todos”, lamenta.
Apesar dos pesares, Lucinha fazia questão de assistir a todos os shows do filho. Na turnê O Tempo Não Para, viajou, sozinha ou acompanhada do marido, para São Paulo, Salvador e Porto Alegre.
Só no Rio, assistiu ao show do Canecão cinco vezes! Cazuza, ela conta, não aprovava sua “corujice”.
Resmungava: “Que horror, mãe! Me seguindo por toda a parte. Parece uma tiete alucinada. Não sabe que roqueiro não tem mãe?”
Não bastava ir, tinha que levar rosas brancas. No bis, atirava as pétalas sobre o palco.
“Quando eu podia, queria estar perto dele. Quando não podia, ficava em casa rezando para ele não passar mal. Cazuza queria porque queria fazer aquela turnê. Sabia que era a última e queria se despedir do público. Foi corajoso até o fim”, emociona-se.
‘Não espere eu morrer para fazer uma poesia para mim’

Crédito, Miriam Prado
A turnê de despedida de Cazuza não se resume a escândalos, polêmicas e barracos. Houve também encontros especiais – no palco e fora dele.
No Teatro Castro Alves, em Salvador, Cazuza recebeu a visita de Gilberto Gil.
Juntos, cantaram Um Trem Para as Estrelas (1987), tema do filme homônimo de Cacá Diegues composto pela dupla.
No Aeroanta (SP), Cazuza recebeu a visita de Caio Fernando Abreu. Antes de cantar Só as Mães São Felizes, o cantor dedicou a música ao amigo.
“Foi a maior homenagem que recebi em toda a minha vida”, declarou o escritor no artigo Homenagem, publicado no Jornal do Brasil, em julho de 1990.
“Cazuza foi o melhor que aconteceu à Música Popular Brasileira depois de Caetano Veloso”, disse.
No Canecão, a visita ilustre foi sua avó paterna, Maria José, com 91 anos. Foi ela que inspirou o neto a escrever Poema com apenas 17 anos.
“Não espere eu morrer para fazer uma poesia para mim”, ela dizia. “Faça enquanto estou viva!”
Musicada por Frejat em 1998, foi gravada no álbum Olhos de Farol (1999), de Ney Matogrosso.
“Nunca tinha visto um show dele ao vivo. Só pela televisão”, declarou Maria José ao jornal O Globo de 14 de outubro de 1988. “Devia ter trazido o algodãozinho, mas deu para aguentar. Ele é ótimo. Canta muito bem”.
Caio Fernando Abreu morreu em 1996, aos 47 anos, e Maria José em 1998, aos 100 anos.
Um momento emocionante é quando Cazuza canta Todo Amor Que Houver Nessa Vida.
Christiaan Oyens sai de trás da bateria e vem para a frente do palco. Nos ensaios, Cazuza explicou para Ney [Matogrosso] que queria algo intimista.
“Um clima de fogueira”, ilustrou.
Foi quando o baterista avisou a todos que sabia tocar gaita.
“O número terminava com um abraço entre mim e Cazuza. A gente repetia esse número toda noite, mas toda noite, eu me emocionava. Foi lindo”, relembra Oyens.
“Quem me apresentou ao Cazuza foi o Nilo Romero”, continua. “Tinha uma maturidade espiritual enorme. Foi incrível saber que tínhamos o mesmo livro de cabeceira: Apanhador no Campo de Centeio, de J. D. Salinger.”
‘Vou viver pelo menos até uns 70 anos’
O camarim no Canecão é reproduzido na exposição Cazuza Exagerado, inaugurada em junho no Shopping Leblon, na capital fluminense.
A exposição, com direito a projeção holográfica do artista, fica no Rio até setembro, quando segue para São Paulo.
Estão lá o terno de Panamá branco, do estilista Gregório Faganello, e a foto com a avó Maria José, da fotógrafa Cristina Granato.
“O Tempo Não Para é o ápice da carreira do Cazuza. Seu canto do cisne”, define o poeta Ramon Nunes Mello, organizador da fotobiografia Protegi Teu Nome Por Amor e da obra poética Meu Lance é Poesia (Martins Fontes, 2024).
“Sabia que ia morrer e deu tudo de si. Embora sua aparência fosse frágil, transmitia muita força”.
A Polygram lançou duas versões de O Tempo Não Para: em 1988, com 10 faixas, e em 2022, com o show completo.
Na versão original, a foto da capa era do fotógrafo Paulo Ricardo. Na versão de 2022, da fotógrafa Miriam Prado. Foi Prado, aliás, quem fotografou os shows em São Paulo, Rio e Belo Horizonte com uma Pentax de 35mm.
“Eu e o Luciano Maurício tivemos um relacionamento de 36 anos: 24 como casados e 12 como namorados”, calcula Prado.
“Apesar da pouca convivência, minha relação com o Cazuza era de admiração mútua. Quando ele autografou meu disco O Tempo Não Para, escreveu: ‘Miriam, você é realmente uma Mulher’, com um ‘M’ maiúsculo. Isso me comoveu. Nunca me impediu de fazer fotos. Pelo contrário. Gostava de posar para mim.”

Crédito, Miriam Prado
O show do disco Ideologia, batizado de O Tempo Não Para, foi parar no livro Os 50 Maiores Shows da História da Música Brasileira (Belas Letras, 2024), escrito pelo jornalista Luiz Felipe Carneiro e pelo pesquisador Tito Guedes.
“É o disco brasileiro mais importante dos anos 1980”, elege Carneiro. “Duas músicas que retratam bem aquele momento histórico são Ideologia e Brasil. Em 1985, o Brasil era colorido; em 1988, tornou-se preto e branco. Foi o ano da morte de Chico Mendes [no dia 22 de dezembro] e do naufrágio do Bateau Mouche [no dia 31].”
“Além disso, Cazuza ainda não tinha assumido publicamente que tinha Aids. Havia muita especulação”, acrescenta Carneiro, que está preparando uma biografia para 2027. “Ainda estou na fase da pesquisa. Só com Lucinha Araújo, foram 40 horas de entrevista”, adianta.
No dia 6 de dezembro de 1988, Cazuza foi entrevistado pela jornalista Marília Gabriela para o programa Cara a Cara, da Band.
Na frente das câmeras, negou que tivesse contraído o vírus HIV. Disse ter sido vítima de “uma doença grave”, mas “já curada”.
Nos bastidores, Gabriela argumentou que não fazia sentido negar a doença. Foi quando ele repensou sua decisão de mantê-la sob segredo.
Cazuza assumiu publicamente que era soropositivo em 13 de fevereiro de 1989, quando concedeu uma entrevista ao jornal Folha de S.Paulo.
“Estou lutando para ficar vivo”, declarou ao jornalista Zeca Camargo, direto de Nova York. “Tenho certeza que vou viver pelo menos até uns 70 anos.”
Entre anjos e demônios
Ao voltar do Nordeste, o baterista Christiaan Oyens decidiu comunicar aos amigos que estava saindo da banda. Pesou em sua decisão o fato de ter perdido o irmão recentemente.
“Cazuza não se cuidava como deveria. Ora fazia dieta e tomava os remédios. Ora fumava e bebia muito, e não dormia o suficiente. A guerra que ele travava com seus anjos e demônios me afetou profundamente. Eu também atravessava uma fase extremamente dura.”
A turnê O Tempo Não Para chegou ao fim no dia 24 de janeiro de 1989. O último show da carreira de Cazuza foi realizado no Pavilhão do Centro de Convenções, no Recife (PE).
Em abril de 1989, Cazuza voltou ao estúdio para gravar seu último disco, Burguesia (1989). O álbum duplo vendeu 250 mil cópias e rendeu um Prêmio Sharp póstumo com a música Cobaias de Deus, parceria dele e Ângela Ro Ro.
Chegou a marcar quatro shows no Jazzmania, no Rio de Janeiro, entre os dias 14 e 17 de maio de 1990. Mas, teve que cancelá-los. No dia 18, deu entrada no Hospital Nove de Julho, em São Paulo.
Cazuza morreu no dia 7 de julho de 1990, aos 32 anos. Na lápide de seu jazigo no Cemitério São João Batista, no Rio, está escrito: “O tempo não para”.
Fonte.:BBC NEWS BRASIL