Alerta: contém relatos de pensamentos suicidas
Abbie tinha 16 anos quando começou a usar cetamina. Foi a primeira vez que ela se sentiu no controle de tudo.
Os pensamentos negativos que a assombravam desde pequena começaram a desaparecer.
Doze anos depois, ela ainda luta contra o vício que quase lhe tirou a vida.
Após passar um período de desintoxicação, Abbie decidiu falar abertamente para alertar sobre o que torna a cetamina uma droga tão popular —especialmente entre jovens com problemas de saúde mental— e os danos que a substância pode causar a longo prazo.
O alerta de Abbie vem à tona enquanto é inaugurada a primeira clínica do NHS —o serviço público de saúde britânico— dedicada a ajudar jovens com problemas relacionados à cetamina. São atendidos pacientes de até 12 anos.
A cetamina é diferente de muitas outras drogas ilícitas por causa da forma como interage com o cérebro.
Em alguns contextos médicos, a substância é usada como anestésico dentro de tratamentos paliativos em caráter experimental e no tratamento de casos graves de depressão.
Pequenas quantidades dessa droga podem provocar euforia e excitação, enquanto doses maiores podem levar ao chamado “Buraco K”, um estado de dissociação em que o usuário se sente fora da realidade —como se tivesse uma experiência extracorpórea.
O número de menores de 16 anos relatando problemas com a droga quase dobrou nos últimos dois anos, ultrapassando a cocaína em popularidade entre crianças e adolescentes.
Quase metade (49%) das pessoas que iniciaram tratamento por uso de drogas em 2023-2024 relatou ter um problema de saúde mental —e mais de um quarto delas não recebia qualquer tipo de tratamento para isso.
Especialistas alertam que alguns jovens estão consumindo quantidades perigosas de cetamina não só pelo baixo custo e facilidade de acesso, mas também pelos efeitos dissociativos que ela provoca.
“Estamos vendo uma tempestade perfeita”, diz David Gill, fundador da Risk and Resilience, empresa que treina profissionais da linha de frente sobre novas tendências de drogas.
“Mais jovens estão lidando com depressão, traumas, ansiedade e falta de serviços —e existe uma droga barata que os ajuda a se desconectar.”
A primeira vez de Abbie com cetamina foi exatamente assim. Ela diz que se sentiu “em um lugar de muito poder”.
“Meus pensamentos já não me afetavam negativamente —a vida passava diante de mim, mas eu não precisava me envolver.”
A infância de Abbie foi difícil. Com problemas de saúde mental e Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) não diagnosticado, ela abandonou a escola aos 14 anos e mergulhou em um turbilhão de álcool, drogas e relacionamentos problemáticos.
Apesar do vício que marcou sua juventude, ela conseguiu entrar na universidade, ficou sóbria durante o curso e se formou na área da saúde.
Inteligente, articulada e determinada, acabou recaindo após dois relacionamentos abusivos e controladores —a cetamina se tornou seu único escape para o trauma.
Quando procurou ajuda médica, recebeu apenas comprimidos para dormir e foi orientada a “parar com a cetamina”.
“A abstinência era terrível. Eu tremia e vomitava”, diz ela. “Não era só decidir parar, como se fosse fácil.”
Logo, um vício mais profundo se instalou.
“No começo, eu me orgulhava de manter meus valores e não mentir. Mas não conseguia parar e comecei a esconder o uso dos meus amigos.”
A situação piorou. Abbie passou a usar cetamina todos os dias —sem parar. Ela só tomava banho quando ia encontrar o traficante na rua.
Os efeitos físicos começaram a aparecer: dores abdominais intensas, conhecidas como “K-cramps”, a faziam gritar de dor. Ela usava bolsas de água fervente para aliviar —e queimava a pele. Depois, tomava mais cetamina para anestesiar a dor.
O que é cetamina?
A cetamina é uma droga usada na medicina e veterinária por suas propriedades sedativas, apesar de seus efeitos alucinógenos também a tornarem um composto perigoso quando consumida como substância recreativa.
Na própria comunidade médica, embora seja amplamente utilizada como anestésico, sedativo e analgésico, a cetamina gera diversidade de opiniões devido às suas fortes propriedades dissociativas.
No Sistema Nacional de Saúde britânico (NHS) e nos serviços públicos de outros países, a cetamina é usada como sedativo, anestésico e analgésico.
Também tem uso generalizado na sedação de animais.
A primeira molécula foi sintetizada em 1962 pela equipe do professor Calvin Lee Stevens, da Wayne State University, em Michigan, Estados Unidos.
Dois anos depois, essa molécula foi testada durante um ensaio clínico e foi rapidamente introduzida na prática clínica como anestésico.
Nos últimos anos, diversos estudos exploraram o uso da cetamina para tratar vícios e casos graves de depressão.
Esse ciclo de abuso é algo que a professora Rachel Isba, consultora de saúde pública, também vê nos efeitos físicos do uso de cetamina dentro de sua clínica para menores de 16 anos.
O uso crônico da droga pode causar uropatia induzida por cetamina —uma condição relativamente nova que afeta a bexiga, os rins e o fígado. A inflamação da bexiga pode ser tão grave que requer sua remoção.
“Os primeiros sinais são dores abdominais fortes, urina com sangue e secreções parecidas com gel vindas do revestimento da bexiga”, explica Isba.
“Os pacientes recebem atendimento amplo: tratamento com equipe de urologia e apoio psicológico e social, quando necessário.”
“Completamente impotente”
Sarah Norman conta que se sentiu como uma “espectadora silenciosa” vendo sua filha Maisie, de 25 anos, “desaparecer diante de seus olhos”.
No ano passado, ela descobriu que Maisie era viciada em cetamina, que já havia causado danos possivelmente irreversíveis aos rins.
“Somos uma família comum”, diz Sarah. “Nunca imaginei que ela se viciaria em drogas —ela nem bebe álcool.”
Maisie mantinha segredo por vergonha. Começou usando a droga em festivais, como recreação, mas logo não conseguia mais viver sem ela.
Seu companheiro acabou indo embora com o filho de três anos.
“Não tinha mais por que viver”, diz Maisie. “Chegou um ponto em que eu cheirava uma carreira [de cetamina] atrás da outra.”
Sua mãe e irmã a levaram ao hospital —ela pesava apenas 32 kg.
“Os médicos disseram que o corpo dela estava parando de funcionar. Achamos que iríamos perdê-la.”
Maisie precisou colocar tubos de nefrostomia nos rins —que drenam a urina para bolsas externas que ela carrega até hoje.
Mesmo após a cirurgia, ainda demorou para deixar a droga. Mas, após conseguir uma vaga na desintoxicação, está sem usar há cinco meses.
Sarah compartilha a história da filha no TikTok e orienta outros pais.
“Essa droga é horrível. Muitos jovens estão sofrendo com ela”, diz. “Mas estou muito orgulhosa da Maisie. Ela vai às reuniões dos Narcóticos Anônimos todas as noites. Não sei se eu teria a força que ela teve.”
‘Reabilitação ou caixão’
Abbie foi recusada duas vezes pelo sistema público de desintoxicação no Reino Unido, ela diz que chegou a considerar o suicídio.
“Estava tudo um caos ao meu redor, os serviços não ajudavam, e eu só queria acabar com tudo.”
Depois de enviar uma carta de cinco páginas ao comitê que avalia os pedidos, ela finalmente conseguiu acesso a um serviço de desintoxicação e reabilitação.
“Eu tinha três escolhas: reabilitação, internação compulsória —ou um caixão.”
Ela foi tratada na mesma unidade que Maisie. Diz que está sóbria e orgulhosa do avanço, mas afirma que o tratamento não lidou com seus traumas.
“Consigo cuidar de mim mesma, estou indo bem. Mas o verdadeiro trabalho começa agora, fora da clínica. E agora que estou sóbria, espero conseguir o apoio em saúde mental que tanto precisei quando usava.”
Um porta-voz do Departamento de Saúde e Assistência Social disse que, como parte do plano de 10 anos para reformar o NHS, o governo pretende ser “mais ousado na prevenção em vez de apenas tratar doenças”.
“Este governo está reduzindo o uso de drogas como a cetamina, garantindo que mais pessoas recebam tratamento e apoio oportunos, e tornando nossas ruas e comunidades mais seguras.”
Texto publicado originalmente aqui.
Fonte.:Folha de S.Paulo