O frio chega e, com ele, um tipo de ritual que aguardamos o ano inteiro: o momento de abrir aquele tinto que dormia na adega, robusto, musculoso, carregado de histórias e promessas. Chega o inverno — mesmo que por poucos meses — e finalmente temos licença sensorial para extrair da garrafa tudo aquilo que seria exagero no verão.
O tinto encorpado é, no inverno, o protagonista absoluto. E não há quem lhe roube a cena. Passamos o ano flertando com brancos e rosés, leves e refrescantes.
O mercado brasileiro, aliás, está aos poucos descobrindo outras cores e estilos: espumantes finos, brancos vibrantes, rosados gastronômicos, tintos leves. É um movimento saudável, de amadurecimento do gosto e ampliação do repertório. Mas sejamos francos: os tintos encorpados ainda reinam soberanos nas taças nacionais.
São eles o padrão dominante de consumo. O imaginário popular sobre o vinho no Brasil ainda veste terno escuro e fala grosso. E é no inverno que esses vinhos se sentem em casa. Tintos muito encorpados — com taninos, álcool e madeira — ganham vida quando a temperatura cai. Há algo de cerimonial em servi-los.
Primeiro, escolhe-se o vinho com cuidado, como se fosse uma companhia. Abre-se com calma, deixa-se respirar. Em muitos casos, é preciso decantar. Não só para remover os sedimentos, mas para deixar que a fera se acomode e nos mostre sua verdadeira face.
E então, o primeiro gole. Quente, denso, quase mastigável. O vinho envolve a boca como um veludo. Toma conta do palato. Persiste. Impõe presença. Há quem diga que vinhos assim são excessivos. Que pesam, que cansam. Discordo. Todos os estilos têm seu momento, e o inverno é a hora dos gigantes.
Um grande tinto potente não é exagero, é luxo. Não é para todos os momentos. É essa espera, essa antecipação, que o torna tão desejável. Há um prazer quase infantil em abrir aquele vinho que ficou guardado para uma noite fria. É como acender uma lareira ou usar o melhor casaco. Há algo de performático, sim — e por que não? Vinho também é teatro, é mise-en-scène.
Esses vinhos não entram sozinhos em cena. Exigem pratos de igual peso dramático. Carnes de longa cocção, assados, queijos intensos. Um ossobuco, uma paleta, um boeuf bourguignon — pratos que, assim como os vinhos que os acompanham, aquecem por dentro.
Há tintos que refrescam. Outros que divertem. E há os que aquecem. Os muito encorpados são como fogueiras líquidas: iluminam o rosto, aquecem o peito, reúnem em torno de si. São bebidas para partilhar, para deixar na mesa. E quando o inverno se vai, deixamos eles dormirem mais um pouco.
Sabemos que o reencontro virá. E que o prazer será ainda maior quando o próximo frio bater à porta.

José Zuccardi Malbec 2016. Malbec predominante, com um toque de cabernet sauvignon, de vinhedos em Altamira e Gualtallary, no Vale de Uco (Mendoza). Estagia por 24 meses em tonéis usados de carvalho francês. Aromas de frutas negras maduras, notas florais, ervas e especiarias. Na boca, é encorpado, com taninos firmes, acidez equilibrada e final persistente. Um tinto potente e sofisticado. R$ 709,90, na Grand Cru.
Vértice Limited Edition 2021. Da Viña Ventisque, com uvas de Apalta, um dos melhores vales do Chile. 51% carménère e 49% syrah, com 22 meses em barricas francesas. Cor rubi intensa, aromas de frutas negras, especiarias, pimenta preta e um leve tostado. Encorpado, com taninos polidos e final longo. Tem potencial de guarda. R$ 179,90, na Wine.
Fonte.: Veja SP Abril