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Era uma sexta-feira como outra qualquer na ilha taiwanesa de Kinmen, a poucos quilômetros da costa da China, quando uma sirene de ataque aéreo rompeu com a calmaria.
Em um escritório do governo local, pessoas apagaram as luzes e se esconderam debaixo das mesas. Outras correram para um estacionamento subterrâneo.
Em um hospital próximo, funcionários corriam para atender pessoas com ferimentos sangrentos.
Mas o sangue era falso, e os feridos eram atores voluntários. Junto com os funcionários do governo, eles participavam de exercícios obrigatórios de defesa civil e militar realizados em toda a Taiwan no mês passado.

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A China promete, há muito tempo, a reunificação com a Taiwan autônoma e não descartou o uso da força. É uma ameaça que Taiwan está levando cada vez mais a sério.
O evento reuniu mais de 20 chefes de Estado estrangeiros, entre eles Vladimir Putin, da Rússia, e Kim Jong Un, da Coreia do Norte, ambos dependentes de apoio econômico da China.
Foi uma demonstração da força militar chinesa — o desfile militar exibiu um míssil apelidado de Destruidor de Guam (em referência a um território dos EUA no Oceano Pacífico onde há instalações militares americanas), um drone apelidado de Fiel Escudeiro e até lobos-robôs.
Já o presidente de Taiwan, William Lai, que assumiu o cargo no ano passado, está por trás de uma das maiores iniciativas em anos para fortalecer a defesa do país.
Um dos seus desafios principais, contudo, é convencer seu próprio povo da urgência. Embora sua campanha de defesa tenha ganhado apoio, também gerou controvérsias.
“Nós precisamos desses exercícios de defesa, eu acredito que há alguma ameaça da China” diz Ben, um profissional de finanças que trabalha em Taipei.
“Mas as chances de uma invasão chinesa são baixas. Se eles realmente quisessem nos atacar, já teriam feito isso.”
Assim como Ben, a maioria das pessoas em Taiwan — 65% de acordo com uma pesquisa divulgada em maio pelo Instituto de Defesa Nacional e Pesquisa Estratégica (INDSR), ligado ao Exército — acredita ser improvável um ataque da China nos próximos cinco anos, mesmo com o alerta dos Estados Unidos de que a ameaça a Taiwan era “iminente” e de que Pequim está preparando seu exército para uma invasão até 2027.
Os preparativos militares de Taiwan
Lai e seu governo costumam repetir uma frase para explicar o que está acontecendo: “Ao nos prepararmos para uma guerra, nós evitamos uma guerra”.
Eles enfatizam que não buscam o conflito, mas estão exercendo o direito de Taiwan de fortalecer sua defesa.
Além de terem iniciado grandes reformas militares, eles também querem aumentar os gastos com a defesa em 23% no próximo ano, chegando a 949,5 bilhões de dólares novos taiwaneses (R$ 169 bilhões, na conversão atual) — o que representaria mais de 3% do PIB —, seguindo a pressão dos EUA em investir mais em defesa.
Lai prometeu elevar esse percentual para 5% até 2030.

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Após o prolongamento do seu programa de serviço militar obrigatório, Taiwan aumentou agora o pagamento e os benefícios para os militares, e introduziu treinamentos mais rigorosos.
Essas medidas têm como objetivo enfrentar os problemas crônicos de escassez de tropas e baixa moral — anteriormente, os soldados reclamavam de treinamento deficiente e eram apelidados de “soldados de papel” por uma suposta fragilidade.
Os exercícios anuais de guerra Han Kuang, que ensaiam uma reposta militar a um ataque chinês, foram reformulados para substituir os exercícios roteirizados por simulações mais realistas.
A edição deste ano foi a maior e mais longa de todas, com 22 mil reservistas participando, cerca de 50% a mais do que no ano passado.
Além de combater a guerra em zonas cinzentas e as campanhas de desinformação, um dos principais focos foi a preparação para combates urbanos.
Os soldados treinaram a defesa contra tropas inimigas no sistema de transporte público, nas rodovias expressas e nos subúrbios da cidade.
Em Taipei, eles praticaram o carregamento de mísseis em helicópteros de ataque em um parque à beira do rio e transformaram uma escola em uma estação de reparo de tanques de guerra.
Mas o governo também está preparando seus cidadãos para uma possível invasão, aumentando a frequência e a escala dos exercícios de defesa civil.
Treinos de evacuação, ataques simulados e resgates
Um dos maiores treinamentos já realizados, chamado de Exercício de Resiliência Urbana, aconteceu no mês de julho.
Ao longo de vários dias, todas as principais áreas urbanas de Taiwan realizaram, em turnos, simulações de ataque aéreo.
Moradores de distritos designados tinham que permanecer dentro de casa, enquanto hotéis, lojas e restaurantes tiveram que suspender as atividades.
Passageiros não podiam embarcar ou desembarcar de trens e aviões. Quem fosse pego desrespeitando as ordens, corria risco de ser multado.

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No centro de Taipei, equipes de emergência e voluntários praticaram a evacuação de pessoas feridas, o combate a incêndios e descida por cordas de prédios que foram preparados para simular estruturas atingidas por mísseis.
Equipes médicas realizaram a triagem de pessoas em um estacionamento, tratando ferimentos e pendurando bolsas de soro para aplicações intravenosas em tendas.
Alguns taiwaneses aprovaram.
“Acho que é uma coisa boa. Porque eu realmente acredito que a ameaça tenha aumentado”, disse Stanley Wei.
“Olhe como a China continua nos cercando”, pontuou, lembrando como a China tem realizado exercícios militares para cercar Taiwan com navios de guerra.
“Acredito em uma co-existência pacífica com a China, mas nós precisamos aumentar nossa defesa também” diz Ray Yang, que trabalha na área de TI.
“Antes da guerra na Ucrânia, eu não me preocupava com isso [possível ataque chinês]. Mas depois do que aconteceu na Ucrânia, eu comecei a acreditar que isso poderia acontecer.”
Alguns, contudo, são indiferentes.
“Mesmo se um ataque ocorrer, o que podemos fazer?”, argumenta Liu, que é engenheiro.
“De toda forma, não tenho certeza se eles invadiriam. Essa ameaça sempre existiu.”
‘Por que machucariam pessoas como nós?’
Em Kinmen, o ceticismo é ainda mais evidente.
A pequena ilha, que foi palco de confrontos sangrentos entre as forças chinesas e taiwanesas no fim da década de 1940 e nos anos 1950, é considerada a linha de frente de um possível ataque.
Mas, com a melhora nas relações por meio de laços econômicos, muitas pessoas em Kinmen veem sua proximidade com a China como uma vantagem e não uma ameaça.
Boa parte da economia de Kinmen é hoje voltada para atender turistas chineses que atravessam o estreito de balsa saindo de Xiamen, a cidade chinesa mais próxima.

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Yang Peiling, 77 anos, tem uma loja em Kinmen que vende petiscos tradicionais. Quando era criança, testemunhou as forças chinesas de Xiamen bombardeando sua ilha durante a Segunda Crise do Estreito de Taiwan, em 1958.
“Estávamos na montanha, colhendo alguns vegetais silvestres, quando vimos eles atirando canhões contra Kinmen”, lembra.
“As pessoas gritavam: ‘Xiamen está em guerra.’ Tudo ficou vermelho.”
Yang e sua família sobreviveram escondendo-se em cavernas das montanhas. Outros moradores de sua vila foram mortos.
Décadas depois, ela recebe com naturalidade os viajantes vindos de Xiamen em sua loja.
“A China não vai nos atacar agora”, argumenta. “Somos todos chineses, somos todos uma família. Por que eles machucariam pessoas como nós?”
Um pouco mais à frente, em uma loja de souvenirs, a atendente Chen concorda.
“Se eles destruírem nossos prédios e matarem a gente, qual o sentido de reivindicar uma terra assim? Eles herdariam uma Taiwan sem nada, o que não lhes traria nenhuma vantagem.”
Essa ideia, de que invadir Taiwan seria caro demais e sem propósito para a China, é compartilhada por muitos taiwaneses.
Pequim tem reiterado que quer uma “reunificação pacífica”, o que para alguns é um sinal de que prefere uma Taiwan intacta.

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Mas Lai argumenta que a China é uma “força hostil estrangeira” que planeja “anexar” Taiwan e continuar com sua “intimidação política e militar”.
Outro fator que há muito tempo tranquiliza os taiwaneses é que os EUA estão, por lei, obrigados a ajudar Taiwan a se defender.
Embora pesquisas sugiram que essa sensação de segurança tenha diminuído com a volta de Donald Trump à Casa Branca, alguns ainda acreditam que os EUA ajudariam Taiwan em caso de um ataque — e que a China seria relutante em se envolver em um conflito direto com os americanos.
“Não é uma visão ingênua e inocente pensar que a China não representa ameaça a Taiwan e que nunca atacaria a ilha”, disse Shen Ming-shih, analista de defesa do INDSR.
“Sim, Xi Jinping tem intenções estratégicas de guerra em relação a Taiwan. Mas a força militar da China atualmente não se compara com a dos Estados Unidos.”
Há ainda uma crença de que a comunidade internacional enviaria ajuda a Taiwan, diante da sua importância na indústria global de semicondutores.
Mas, após décadas de ameaças, existe hoje “uma sensação de Pequim como ‘o menino que gritava lobo'”, diz Wen-ti Sung, cientista política do Taiwan Center da Australian National University.
“Psicologicamente, você não pode levar toda a ameaça a sério sem enlouquecer. Então as pessoas passam a ignorar algumas coisas para priorizar sua saúde mental.”

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O debate sobre se a China vai ou não invadir
Se a China vai invadir ou não é um debate antigo em Taiwan.
Mas a urgência dessa questão aumentou com uma escalada recente nas tensões, especialmente após a eleição de William Lai para presidente.
Lai, que insiste que Taiwan nunca fez parte da China, e seu Partido Progressista Democrático (DPP, na sigla em inglês) são vistos pelo governo chinês como “separatistas”.
Pequim acusa o governo de Lai de provocá-los deliberadamente, especialmente com a campanha de defesa.
Em julho, o Ministério de Defesa da China chamou os treinamentos em Han Kuang como “nada além de um blefe e um truque de autoengano jogado pelas autoridades do DPP para sequestrar os compatriotas taiwaneses para sua carruagem da guerra pela ‘Independência de Taiwan'”.
Qualquer declaração formal de independência por Taiwan poderia desencadear uma ação militar da China, que possui uma lei declarando que recorrerá a “meios não pacíficos” para impedir a “secessão” de Taiwan.
Lai afirma que Taiwan já é uma nação soberana e, portanto, não precisa declarar formalmente a independência.

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Além de intensificar sua retórica, a China também tem aumentado o envio de aviões e navios de guerra para o espaço aéreo e as águas de Taiwan.
A China nunca confirmou a alegação dos EUA de que estaria preparando suas forças militares para ser capaz de invadir Taiwan até 2027. Mas tem ficado cada vez mais claro que o país tem fortalecido seu exército, marinha e arsenal, exibidos em um desfile no início de setembro.
Os especialistas estão divididos se a China está realmente planejando uma invasão em breve. Mas muitos concordam que as tensões, junto com os movimentos militares da China, aumentam a possibilidade de confronto.
Existem inúmeras formas pelas quais a China poderia atacar.
Além de desembarcar nas praias de Taiwan e lançar ataques com mísseis, a China poderia realizar bloqueios aéreos ou navais, ou mesmo cortar cabos de comunicação submarinos.
Muitos desses cenários são retratados em uma série de TV financiada pelo governo de Taiwan, que mostra uma invasão chinesa fictícia.
Contudo, o governo de Taiwan acredita que uma invasão mais sutil pode já estar acontecendo: a que tenta conquistar os corações e as mentes dos taiwaneses na esperança de que, um dia, eles escolham a unificação.
Oficialmente, a China tem encorajado o comércio e laços econômicos com Taiwan, assim como conexões culturais.
De forma não oficial, analistas e autoridades taiwanesas afirmam que Pequim tem investido em campanhas de desinformação e operações de influência.
Um estudo conduzido pelo Instituto V-Dem da Universidade de Gotemburgo, na Suécia, concluiu que, por muitos anos, Taiwan tem sido o lugar mais visado do mundo por campanhas de desinformação iniciadas por um governo estrangeiro.
Em março, Lai alertou sobre a crescente influência da China na economia, cultura, mídia e até mesmo no governo de Taiwan, e anunciou várias medidas para reforçar a segurança.
Diversos soldados e oficiais militares taiwaneses foram presos por supostamente espionar em favor da China. Membros do DPP, incluindo um ex-assistente de Lai, também foram acusados de espionagem.
Enquanto isso, celebridades taiwanesas simpáticas à China, influenciadores de redes sociais e cônjuges chineses de cidadãos taiwaneses passaram a ser alvo de rigorosa vigilância, com alguns sendo deportados ou obrigados a deixar o país.
Lai também tem apoiado um movimento popular profundamente controverso, com o objetivo de afastar políticos da oposição que são vistos como muito próximos da China.
Há alguns sinais de apoio público à campanha de defesa. A pesquisa do INDSR revelou que mais da metade dos taiwaneses aprovam o aumento dos gastos com defesa, e apoiam ainda mais a compra de armamentos dos EUA.
Mas também há apreensão. Uma visão é que a campanha de defesa e a retórica de Lai estão provocando a China, o que poderia levar a uma guerra.
“Eu sinto que lidar com a China é muito simples”, diz Chen, assistente de loja em Kinmen.
“Contanto que você não diga a eles que quer independência, eles não farão nada com você. Mas William Lai fala com a China de um jeito completamente louco. Isso vai provocar a ira deles. Você nunca sabe, um dia Xi Jinping pode ficar muito irritado e nos atacar.”
As pesquisas mostram que a maioria dos taiwaneses quer o “status quo”, ou seja, eles não querem nem unificar com a China e nem declarar formalmente a independência.
A oposição política, dominada pelo partido Kuomintang (KMT), acusa o governo do DPP de usar a possibilidade de invasão chinesa para espalhar medo e ganhar apoio político.
Alexander Huang, diretor de assuntos internacionais do KMT, caracterizou o governo do DPP como “verbalmente intimidando os chineses desnecessariamente e prejudicando a estabilidade no Estreito de Taiwan”.
Ainda assim, outros defendem que os taiwaneses precisam adotar uma posição firme contra a China.
“[Os cidadãos] precisam reconhecer que a China é uma ameaça a Taiwan, que pode usar a força, e está se preparando atualmente para isso”, afiram Shen.
“E, por isso, os responsáveis pela segurança nacional e os militares devem primeiro se preparar para isso.”
Fonte.:BBC NEWS BRASIL