10:15 PM
23 de outubro de 2025

Código Civil de Pacheco é criticado por dar “personalidade” a robôs

Código Civil de Pacheco é criticado por dar “personalidade” a robôs

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A comissão responsável por avaliar o projeto do novo Código Civil, apresentado pelo senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG), realizou nesta quinta-feira (23) a terceira audiência pública sobre o tema. O grupo analisa o Projeto de Lei 4/2025 que altera cerca de mil artigos da norma e inclui mais 300 dispositivos. A proposta é criticada por trazer riscos ao direito de família, à liberdade de expressão, à segurança jurídica, além de potencializar o ativismo judicial, entre outros problemas.

A advogada e consultora jurídica em processo legislativo Layla Abdo Ribeiro de Andrada questionou o primeiro artigo do terceiro capítulo do Livro de Direito Digital do novo Código Civil e o artigo 2027-S, que considera como situação jurídica digital “toda interação  no ambiente digital de que resulte responsabilidade por vantagens ou desvantagens, direitos e deveres entre:

  • I -pessoas naturais;
  • II -pessoas jurídicas, incluindo usuários individuais, empresas, entidades governamentais e organizações não-governamentais;
  • III -entidades  digitais,  como  robôs,  assistentes  virtuais,  inteligências artificiais, sistemas automatizados e outros.”

“Da leitura do artigo [2027-S], percebemos que foi atribuído a entidades digitais características da personalidade jurídica. Apesar de saber que não foi essa a intenção dos que o escreveram, a literalidade do texto nos conduz a concluir que, se tornado norma, seria possível estabelecer uma situação jurídica de que resulte responsabilidade entre uma pessoa e um robô”, apontou.

“E isso é catastrófico, por motivos bastante óbvios, mas principalmente pela questão da responsabilidade civil”, acrescentou a advogada. Ela defendeu um regime de responsabilidade específico, apontando que no caso da inteligência artificial, por exemplo, a cadeia de potenciais responsáveis pelos danos que ocorrem nas interações com essa ferramenta é “complexa e muito variável”.  

A juíza Patrícia Carrijo, presidente da Associação dos Magistrados do Estado de Goiás (Asmego), que esteve na comissão de juristas que elaborou o anteprojeto de lei assumido como Pacheco como proposta, contestou os pontos levantados por Layla Abdo sobre ativismo judicial, apontando que o livro de direito digital foi discutido “democraticamente” pelos “membros da comissão”.

“A professora Layla é consultora. Vou fazer uma reflexão sobre as próprias palavras dela, que entendi que ficaram incoerentes quando partimos do pressuposto inicial para a conclusão, vou fazer com a legitimidade que tenho por ser juíza”, criticou Carrijo. 

“O que hoje o Poder Judiciário tem para interpretar essas normas e julgar? Hoje a grande maioria das demandas judiciais que chegam a nós relacionadas à responsabilidade civil, que correspondem a 70% do número de processos que tramitam no Poder Judiciário, já está com correlação direta ou indireta com o direito digital e nós estamos no ano de 2025”, acrescentou.  

Carrijo destacou que o projeto é necessário para dar segurança jurídica às decisões tomadas por juízes. “Os senhores senadores querem ser os responsáveis por editar o Código Civil que daqui a 20 anos não será suficiente para que nós intérpretes legais da lei não possamos trabalhar com segurança jurídica?”, questionou a magistrada.  

Layla Abdo esclareceu que “de modo algum” defendeu que não é necessária a modernização e a introdução de novas normas sobre tecnologia, mas apenas apontar os riscos do texto proposto. O senador Carlos Portinho (PL-RJ) concordou com o entendimento da consultora.

“A não ser que a gente admita que IAs e robôs tenham vida própria, e aí vamos tratá-los como um animal talvez, eles são ferramentas de uma pessoa física ou jurídica, que usa ou desenvolveu [a ferramenta]. Então, como é que vamos atribuir responsabilidade ou personalidade para uma coisa, se essa coisa está diretamente ligada a uma pessoa física ou jurídica?”, questionou. 

Em resposta a Portinho, a juíza disse que “em momento algum” a comissão pensou em atribuir personalidade para robôs, IAs e máquinas. “Entendemos que a responsabilidade é dos donos e a eventual reparação por atitudes, ações e erros precisam ser demandadas pelos donos dos produtos”, afirmou Carrijo. 

Portinho rebateu e apontou que o primeiro artigo do terceiro capítulo do Livro de Direito Digital do Código Civil “dá personalidade às entidades digitais”, porque ele diz que a “situação jurídica” ocorre por vantagens e desvantagens e por direitos e deveres entre pessoas naturais, pessoas jurídicas e entidades digitais.

Pacheco concordou com o pedido da consultora para a realização de audiência pública sobre o livro do direito digital e o projeto de lei aprovado pelo Senado que regulamenta a inteligência artificial.  

O relator-geral da comissão de juristas do Código Civil, Flávio Tartuce, disse não ver “nenhum problema” no artigo 2027-S questionado por Layla Abdo. “No inciso I, nós temos pessoas naturais. No inciso II, nós temos pessoas jurídicas e, no inciso III, nós não temos pessoas, temos novos entes despersonalizados, como aliás são, no Direito Civil, o condomínio, o espólio, a massa falida. Então, eu não vejo aqui, com o devido respeito, nenhum problema nessa proposição”, afirmou Tartuce, relator da proposta de anteprojeto.

Ele disse estar convencido, após as reuniões da comissão, que o livro de direito digital deve ser anexado ao texto geral. “Nós precisamos desse livro de direito digital e cabe ao legislador escolher se é a área do conhecimento ou não. Se o legislador criar o livro de direito digital, assim o será. Estou convencido cada vez mais que esse livro deve vir depois da parte geral do Código”, destacou.  

Tartuce rebate críticas contra a inclusão de neurodireitos no Código Civil

A professora Layla Abdo lembrou que, apesar de Europa e Chile já discutirem os chamados “neurodireitos” (que incluem conceitos genéricos como “privacidade mental”, “liberdade cognitiva”, “acesso justo à ampliação ou melhoria cerebral”, entre outros), é preciso lembrar que não existe legislação sobre o tema no mundo. Além disso, somando-se ao fato de o Brasil já ter “uma das maiores constituições do mundo, que se aventurou a proteger muitos direitos da pessoa natural”, agora não seria o momento para regulamentar os neurodireitos.

“No nosso ordenamento já existe proteção para muita coisa. Já existem, inclusive, algumas proteções que não são observadas e que são plenamente exigíveis, porque as normas constitucionais têm aplicabilidade imediata”, disse Layla Abdo ao destacar que a vedação do anonimato já é prevista na Constituição.

Tartuce repetiu que o Chile e a Espanha já discutem neurodireitos e afirmou que o Brasil deveria ir à frente desses países com uma nova legislação. “O que teremos é o livro de direito digital que será exemplo para outros países. Nós não podemos perder essa oportunidade que os senhores senadores nos deram de fazer uma reforma geracional, histórica do Código Civil de 2002”, afirmou o relator-geral

Prevenção de ilícitos na proposta do novo Código Civil 

A juíza Patrícia Carrijo afirmou que a responsabilidade civil e o ato ilícito não são a mesma coisa, pois nem sempre o ato ilícito traz algum dano. Segundo ela, o projeto amplia o conceito de ato ilícito considerando a função preventiva e pedagógica, além da responsabilidade civil, com seu aspecto reparatório, o que tem sido criticado por diversos juristas.

Hoje, o artigo 186 do Código Civil estabelece que “aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”.  

A nova redação determina que a “ilicitude civil decorre de violação a direito” e “aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência, imprudência ou imperícia, violar direito e causar dano a outrem, responde civilmente”. Para a juíza, essa alteração, considerada genérica demais por diferentes juristas que criticam a proposta, também contempla as mudanças previstas no livro digital da proposta.

A relatora-geral da comissão de juristas do Código Civil, Rosa Nery, também defendeu o dispositivo e apontou que a prevenção de atos ilícitos é um desafio para o projeto, pois sua abrangência “é muito mais ampla” do que a norma em vigor. O artigo 185-A da proposta institui que “a atividade decorrente de série de atos coordenados sob um fim comum será considerada lícita se lícitos forem os atos praticados e o fim visado”.

“Prevenção? [Dizem que] ‘isso não é matéria de Código Civil’. Será que não? Quantos problemas podem ser evitados se no exercício, por exemplo, da atividade de zelo para com os filhos, os pais tivessem a obrigação de serem previdentes”, afirmou.   

Direito digital 

Dierle José Coelho Nunes, professor de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), afirmou que, atualmente, o direito digital é tratado em “uma série de legislações esparsas” e, por isso, existe uma “ausência de parâmetros jurídicos básicos e sólidos” que enfraquece a autoridade normativa do Estado.  

Nunes defendeu a mudança normativa do projeto nessa área, pois é necessário “conferir um conjunto de normas fundamentais” capazes de estabelecer critérios para o digital. Ele ressaltou que a inclusão dos “neurodireitos” é essencial para a “proteção da identidade e autonomia da pessoa, assegurando que as tecnologias que influenciam a mente não sejam utilizadas de maneira coercitiva ou invasiva”.  

A afetividade humana e a tutela civil dos animais 

O professor de Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR) Vicente de Paula Ataíde Júnior, consultor da comissão sobre a tutela civil dos animais, afirmou que “o atual Código Civil é completamente omisso quanto a essa matéria”.  A proposta do novo Código Civil cria o polêmico artigo 19, que relaciona de forma genérica a afetividade humana com a questão animal. “A afetividade humana também se manifesta por expressões de cuidado e de proteção aos animais que compõem o entorno sociofamiliar da pessoa”.

Já o artigo 91-A estabelece que “os animais são seres vivos sencientes e passíveis de proteção jurídica própria, em virtude da sua natureza especial”. Ele destacou que a nova regra não tem a intenção de detalhar a senciência animal, que deve ser feita por projeto de lei.  

“Não há razões de ordem técnica para não aprovar ou suprimir esses artigos, pois eles espelham o que há de mais moderno tanto do ponto de vista da ciência empírica como também daquilo que já se avançou nos países europeus em matéria de direito civil”, disse acreditar.  

Direito de personalidade 

A desembargadora Débora Brandão, do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), afirmou que alguns dos artigos que definem o direito de personalidade, ou seja, inerentes à pessoa e a sua dignidade, como nome, imagem e honra, “merecem algum reparo”. Esse dispositivo é tratado no artigo 12 da proposta. O relator-geral da comissão de juristas do Código Civil, Flávio Tartuce, sugeriu que a desembargadora encaminhe as propostas para a comissão. 

Ela apontou que é necessário uma adequação no primeiro parágrafo do dispositivo que estabelece que “terão legitimidade para requerer a medida prevista neste artigo o cônjuge ou convivente sobreviventes ou parente do falecido em linha reta; na falta de qualquer um deles, passam a ser legitimados os colaterais de quarto grau”.  

A desembargadora defendeu uma mudança de redação para incluir a expressão “passam a ser legitimados os colaterais de até quarto grau”, pois o texto exclui irmãos e eventuais sobrinhos de terceiro grau ao passar diretamente dos parentes próximos (pais e filhos) para os de quarto grau (primos).  

Débora afirmou que é preciso deixar explícitas as formas do “ato de disposição do próprio corpo”, pois, além da doação de órgãos, a pessoa pode decidir doar o próprio corpo para estudos científicos. Para ela, é preciso também diminuir as demandas para que as pessoas oficializem suas “diretivas antecipadas da vontade”, documento que especifica, por exemplo, se a pessoa quer ser reanimada em caso de emergência médica, permitindo que a parte pudesse averbar no cartório civil, à margem da certidão de nascimento, essas diretivas.



Fonte. Gazeta do Povo

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