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- Author, Edison Veiga
- Role, De Corno di Rosazzo (Itália) para a BBC News Brasil
 
Seja por história, seja pelos estereótipos muitas vezes caricaturizados, quando se pensa em máfia inevitavelmente são os italianos que vêm à cabeça. Pois, de acordo com a ferramenta Global Organized Crime Index, a maneira como a Itália lida com o crime organizado é um exemplo internacional cujas lições podem ser aprendidas por outros países.
É uma história que remonta a mais de quatro décadas e da qual o Brasil pode também se inspirar na luta contra o crime organizado. Para especialistas, o esforço precisa partir de uma união da sociedade civil com as autoridades.
E para estancar a organização dos sindicatos do crime é preciso impedir que o dinheiro chegue a eles — ao mesmo tempo, fazer com que eles deixem de exercer um poder territorial sobre suas áreas de atuação.
Em outras palavras, seria replicar no Brasil o “método Falcone”, alcunha dada em referência ao juiz italiano Giovanni Falcone (1939-1992), que foi assassinado quando investigava a organização criminosa Cosa Nostra. Sua morte foi um dos fatores que desencadearam a famosa Operação Mãos Limpas, que ocorreu na Itália.
A morte de Falcone não foi um fato isolado no âmbito de investigações contra a máfia italiana. Em 1979, o magistrado Giorgio Ambrosoli (1933-1979) teve o mesmo destino.
A primeira lição, lembra o economista Andrea Fantini, professor universitário aposentado da Universidade de Teramo, na Itália, é seguir o dinheiro — a expressão “follow the money”, que resume técnica de investigação e foi popularizada no filme Todos os Homens do Presidente (1976) .
“A luta contra a máfia que segue o dinheiro é um método investigativo que ficou famoso graças a Giovanni Falcone”, recorda ele à BBC News Brasil. “Seu princípio fundamental era ‘seguindo o dinheiro, encontra-se a máfia’.”
O economista explica que essa abordagem se baseia na análise de fluxos financeiros e dos capitais ilícitos e, a partir desses dados, parte para a reconstrução das conexões criminosas, das coberturas políticas às cumplicidades dos policiais corruptos. Segundo Fantini, “organizações mafiosas são, antes de tudo, estruturas econômicas, e não apenas bandos de criminosos violentos”.
Foi este o principal método usado por Falcone e seu grupo antimáfia para conseguir combater a Cosa Nostra.

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Sistema criminoso
O passo a passo do magistrado era focar nos fluxos de dinheiro, com a “intuição de que, ao contrário da droga, que pode desaparecer, o dinheiro deixa um rastro por meio de movimentos bancários e investimentos”, explica Fantini.
Então ele passava a reconstruir o sistema criminoso. “Rastreando o dinheiro, é possível mapear a rede de interesses criminosos e demonstrar que as organizações mafiosas estão interligadas e visam à acumulação de poder e dinheiro”, diz o economista.
A partir de então, desenhava-se uma ferramenta investigativa, ou seja, a reconstrução dessas redes econômicas fornecia provas sólidas que acabaram levando a condenações importantes, combatendo a infiltração da máfia na economia legal.
Falcone também ficou conhecido por usar delatores e informantes da máfia. O chefe mafioso arrependido mais famoso provavelmente é Tommaso Buscetta (1928-2000), considerado o primeiro ex-integrante da Cosa Nostra a se tornar colaborador da justiça, revelando a estrutura organizacional da máfia.
Fantini lembra que houve outras figuras de destaque também nesse aspecto, pessoas que acabaram contribuindo “de forma fundamental para desmantelar a cúpula da Cosa Nostra”.
“As operações contra a máfia italiana são consensualmente atreladas à ineficiência do direito penal para atacar problemas estruturais”, comenta à BBC News Brasil o advogado criminalista Thiago Turbay.
“A mobilização do crime organizado, a diversidade de negócios e áreas de influência, as diversas formas de integração entre comunidade e espaços de atuação, a infiltração no Estado, revelam que o aparato de que dispõe o crime organizado é capaz de imunizar as ações policiais, geralmente momentâneas e desarticuladas. A resposta não está no direito penal, no aumento de penas e flexibilização de normas para prender mais.”
Inspiração italiana
“A experiência italiana no enfrentamento à máfia ensina que o combate a organizações criminosas exige articulação interinstitucional, inteligência estratégica e independência funcional dos órgãos de persecução penal”, pontua à BBC News Brasil o advogado criminalista Guilherme Augusto Mota, pesquisador na Universidade de Girona, na Espanha.
“O legado de Falcone não reside apenas na repressão judicial, mas na consolidação de uma cultura institucional de enfrentamento ao crime organizado, com especial ênfase na investigação patrimonial e na quebra do vínculo entre o poder econômico ilícito e o aparato político.”
“A adoção da colaboração premiada como instrumento de obtenção de prova e a centralidade da atuação coordenada entre Judiciário, Ministério Público e polícia demonstraram-se elementos-chave para desarticular redes complexas de criminalidade”, prossegue Mota.
Não é tarefa para uma só instituição. Muito menos para uma só pessoa.
“A primeira lição é que enfrentar o crime organizado exige mais do que operações espetaculares: exige um Estado de Direito forte, articulado, com corrupção atacada na raiz”, acrescenta à BBC News Brasil o sociólogo Rogério Baptistini Mendes, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie. “Falcone mostrou que a máfia italiana não se vence com tiros ou pirotecnia midiática, mas com preparação investigativa, cooperação entre Ministério Público, polícia e Judiciário e, sobretudo, com o rastreamento financeiro, daqueles bens, contratos, empresas de fachada que alimentavam o poder mafioso.”
Mendes acredita que o sucesso da tática de Falcone estava no sistema de incentivo à delação e proteção a testemunhas. E que, para funcionar, era preciso combater também a “infiltração política e empresarial da máfia no Estado, para que o crime não virasse força paralela ou poder invisível que decide quem governa”.
“Em suma: mais que força bruta, instituições, finanças limpas e integridade pública”, acrescenta o sociólogo.
O economista Fantini ressalta ainda que o método Falcone tinha uma abordagem mais ampla, incluindo a organização do trabalho em grupos de magistrados e a colaboração internacional — práticas fundamentais para a sua eficácia.

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Da Itália para o Brasil
O italiano Fantini acredita que seja possível replicar no Brasil o consagrado método Falcone do “follow the money”. “Imagino que está sendo percorrida esta tentativa, mas é preciso ter uma união de objetivos e forte colaboração entre juízes, policiais e poder político, o que me parece difícil numa situação crítica como o Rio de Janeiro”, diz ele.
Mendes argumenta que, para que um método assim funcione no Brasil, seria urgente “adotar a agenda financeira do combate ao crime”, quebrando “a cadeia da lavagem de dinheiro”, rastreando empresas-laranja, serviços de fachada, contratos públicos, recursos desviados. “Sem isso, todo combate ao tráfico ou milícia se limita à ponta visível, ignorando a engrenagem invisível”, diz o sociólogo.
Para Mota, essa estratégia de enfraquecer financeiramente as organizações criminosas é a “espinha dorsal” das estratégias repressivas eficazes. “A restrição ao fluxo de capitais ilícitos afeta diretamente a capacidade operacional, logística e corruptora dessas redes, razão pela qual as investigações patrimoniais e a atuação da Justiça especializada em lavagem de dinheiro assumem papel central”, diz. “A desterritorialização, por sua vez, é instrumento complementar, voltado à quebra da hegemonia local e do domínio simbólico exercido por tais organizações sobre determinadas comunidades.”
“Outro pilar exportável é a metodologia de investigação duradoura, alianças institucionais, proteção a fontes, plano de longo prazo e não apenas megamanifestações de força policial”, acrescenta ele.
“A experiência italiana comprova que o enfrentamento ao crime organizado demanda mais do que vontade política ocasional ou operações pontuais”, diz Mota. “Requer estrutura institucional robusta, continuidade de políticas públicas e capacitação permanente dos agentes estatais.”
Mas nem tudo dá para copiar e colar. O contexto social e político brasileiro é radicalmente distinto do italiano. “Na Sicília e no sul da Itália, a máfia operava em ambientes onde o Estado já existia, ainda que corrompido”, compara o sociólogo. “Aqui, no Rio, estamos diante da falência funcional do Estado, da desigualdade extrema, da exclusão sistemática de territórios pobres.”
Outro aspecto a ser considerado, lembra o especialista, é a questão da territorialidade — ou seja, a maneira como o crime organizado está arraigado a um território e mantém controle sobre ele. “Tirar o narcotráfico das favelas, se lembro bem, facilitando oportunidades de renda alternativa aos jovens e garantindo a presença contínua da polícia, foi uma tentativa que teve sucesso nas décadas passadas. Mas depois acabou abandonada”, afirma Fantini. “Será preciso entender as causas desse fracasso e analisar as possibilidades de desenvolvê-la de forma atualizada.”
Mendes lembra também que, se na Itália a máfia historicamente se entrelaçou com o setor agroalimentar, no Brasil, especialmente no Rio, o cenário é diferente: as facções se originam no cárcere e nas periferias, expandindo o poder pela exploração de serviços urbanos informais — transporte alternativo, gás, construção, “segurança privada” do crime, milícia urbana, além do tráfico de drogas. Em outras palavras, o sociólogo comenta que no Brasil a máfia está intimamente ligada ao que ele chama de “geografia da pobreza”.
“No Brasil, a replicação de tais estratégias deve considerar a complexidade territorial e social do país, exigindo adaptações operacionais e políticas públicas combinadas, repressivas e preventivas, voltadas à retomada do espaço urbano e ao fortalecimento do controle estatal em áreas vulneráveis”, afirma Mota.
Para ele, é desafiador o fato de que o crime no Brasil é plural e tem penetrações em diferentes esferas. “A resposta não pode ser unidimensional: deve conjugar repressão qualificada, gestão do sistema prisional, cooperação interinstitucional e, sobretudo, políticas públicas que reduzam a vulnerabilidade social que sustenta o poder dessas facções. A Itália ofereceu um modelo de enfrentamento possível; cabe ao Brasil construir o seu, com base em suas especificidades e complexidades próprias”, diz ele.

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Não existe solução mágica
Mas é claro que operação nenhuma conseguiu acabar de vez com a máfia na Itália.
“O enfraquecimento da máfia italiana é inegável, mas a persistência de sua atuação, ainda que em novos formatos, revela limitações estruturais do modelo repressivo”, afirma Mota. “Dentre os fatores que fragilizam as ações de longo prazo, destacam-se a ausência de continuidade política, a falta de proteção sistêmica aos agentes públicos e a desarticulação entre políticas de repressão e inclusão.”
Hoje em dia, contudo, essas organizações não são tão letais como eram no passado, ressalta Fantini. A atividade criminosa é desenvolvida sobretudo em nível financeiro, muitas vezes por meio de grandes obras de construção ligadas à infraestrutura pública, em outros casos no controle de esquemas de distribuição agroalimentar.
“As falhas da antimáfia italiana dependeram e dependem ainda da corrupção dos policiais e dos políticos e também da cumplicidade e do uso instrumental que sempre ligaram os serviços secretos aos criminais mafiosos. Recentemente (…) as proteções aos arrependidos da máfia foram reduzidas, o que provocou uma crise neste método que utiliza os mafiosos”, afirma Fantini.
Turbay acrescenta que a Itália foi exemplo de erros judiciais severos e o açodamento prejudicial custou a desconfiança da população nas instituições. “À exemplo do pacote anticrime no Brasil, o congelamento de bens de maneira antecipada, como primeira linha de abordagem, foi incapaz de desarticular conglomerados financeiros do crime organizado, cada vez mais diverso e aperfeiçoado”, ressalta ele.
“A máfia tem interesse em qualquer setor que pode garantir lucro”, completa o economista italiano. Ele lembra que a máfia italiana usa o agronegócio muitas vezes para a lavagem de dinheiro e também se aproveita do grande número de imigrantes na Itália, explorando essa mão de obra em geral barata e frágil quanto aos direitos trabalhistas.
Fonte.:BBC NEWS BRASIL 
 
				

 
								 
								 
								 
								 
								 
								 
								 
								 
								