As universidades públicas brasileiras, muitas vezes vistas como redutos do pensamento livre e do debate racional, parecem cada vez mais mergulhadas em um ambiente hostil à divergência e intolerante ao contraditório. Professores e especialistas alertam para um fenômeno crescente de homogeneização ideológica nos campi, impulsionado pelo avanço do wokismo, substituindo o debate por militância e a ciência pela fé dogmática em causas identitárias.
A professora Mayalu Felix, doutora em Ciências da Linguagem e em Letras, que leciona há 20 anos em uma universidade pública do Maranhão, relatou em artigo na Gazeta do Povo a hostilidade que enfrentou por usar textos de autores como Roberto Motta, Olavo de Carvalho e Luiz Felipe Pondé em sala de aula. Segundo ela, o ambiente acadêmico se tornou “um lugar de discurso único, de uma só ideologia, do monólogo”. E completa: “Não há espaço para o contraditório. Nem mesmo para questionamentos, que são a base do desenvolvimento da Ciência”.
Ao utilizar um artigo de Roberto Motta, colunista da Gazeta do Povo, para debater textualidade, Felix presenciou protestos e reações exageradas de estudantes. “Fui surpreendida com reações de insatisfação que foram do protesto – porque o texto não condizia com a ideologia do aluno – à saída de sala com pezinhos batendo no chão, porta fechada com violência e cobranças acerca da maneira como devo conduzir as minhas aulas, que planejo, executo, leciono com esforço e conhecimento”, conta. Em outra ocasião, ela foi formalmente denunciada à Ouvidoria da universidade por ter apresentado textos de opinião de Olavo de Carvalho e Pondé.
“Se o texto não está de acordo com sua ideologia, dizem eles, deve ser proibido”, lamenta a professora. “Um simples texto se torna uma ameaça, em vez de suscitar curiosidade e interesse pelas informações novas”. Apesar da resistência, ela afirma que suas aulas são planejadas com rigor e pautadas pela pluralidade. Entre os autores que utiliza estão também Ferreira Gullar, Roland Barthes e Chico Buarque. “Não se trata de direcionar ideologicamente textos, mas de escolher aqueles que são mais bem escritos”, argumenta.
Felix denuncia ainda a vigilância velada que paira sobre os professores universitários: “Os textos que uso, as opiniões que professo e as crenças que cultivo passam pelo crivo do emburrecimento geral. Alguns são ‘permitidos’, outros não. […] Há teorias que não podem nem mesmo ser contestadas, ainda que haja base para a crítica, porque já saímos do campo da ciência e entramos na área do dogma”, alerta. “É uma tragédia moderna que os alunos tenham deixado de lado a inteligência e a capacidade de discussão a ponto de já não serem capazes de pensar, mas apenas de sentir, porque ideias que ameaçam seu porto seguro são tomadas como agressões pessoais”, conclui.
O “wokismo” como religião acadêmica
O professor Jean Marcel Carvalho França, da Unesp, analisa o fenômeno de forma mais ampla. Para ele, as universidades, que surgiram na Europa medieval como espaços de rebeldia e pensamento livre, hoje abrigam uma nova forma de ortodoxia, baseada no chamado pensamento woke. Em seu artigo “Wokismo: uma religião universitária?”, França define essa nova ortodoxia como uma “religião universitária de coloração cristã-marxista”, cuja teologia gira em torno da oposição entre vítimas e opressores, com o “homem branco ocidental” no papel central de vilão. A lista dos “oprimidos”, segundo ele, é potencialmente infinita: “Colonizados, não brancos, mulheres, doentes mentais, trans, obesos, e até mesmo animais”, lista.
Nesse sistema de crenças, palavras como “realidade”, “objetividade” e “verdade” são rejeitadas como instrumentos de opressão. “A ‘desconstrução’ rapidamente degringolou num relativismo cultural e num construtivismo social alucinados, desprovidos de qualquer princípio de realidade ou objetividade”, escreve. Ele nota ainda que até disciplinas como Física e Matemática têm sido acusadas de serem “excessivamente brancas e pouco inclusivas”.
A crítica de França também recai sobre a moral rígida do wokismo, onde não há possibilidade redenção, apenas penitência eterna. “Os brancos arrependidos constituem a maioria dos fiéis […], mas a religião woke não concede o perdão. Ao contrário, impõe-lhes a penitência e a contrição eternos, sem qualquer esperança de redenção”, explica.
Da universidade crítica à universidade dogmática
Os relatos de Mayalu Felix e a análise de Jean Marcel França convergem num ponto essencial: a perda da liberdade de pensamento e da pluralidade de ideias na universidade. Se antes a missão acadêmica era formar mentes críticas, hoje, denunciam os autores, ela se converteu em máquina de conformismo ideológico, onde “alguns discursos são permitidos” e outros, banidos. O que antes era um espaço para o embate de ideias tornou-se um campo minado, onde o medo de retaliações silencia professores e inibe alunos críticos. O maior risco, alertam, é o de formar gerações que não sabem lidar com a diferença – nem com a liberdade.
Felix vê esse processo como uma ameaça direta à liberdade de cátedra, garantida pelo artigo 206 da Constituição Federal e pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação. “A universidade é lugar onde estudam e trabalham pessoas adultas, que deveriam saber lidar com o contraditório e argumentos diferentes dos seus”, afirma. “Mas não é isso o que se observa.”
Para França, o atual estado de coisas representa o triunfo de uma fé que se diz progressista, mas que, na prática, age como dogmatismo, impermeável à crítica e resistente à ciência. “Há esperança de sairmos desse mundo cada vez mais claustrofóbico e obscurantista?”, pergunta ele. “Braunstein acredita que sim”, conclui, referindo-se ao filósofo francês Jean-François Braunstein, crítico do wokismo.
“Costumo dizer que os estudantes têm toda a liberdade para discordar de mim, mas que isso seja feito de modo adulto, com respeito”, defende Mayalu Felix. “Acredito que o diálogo entre diferentes é possível e desejável, sobretudo na Academia. Aliás, essa é a própria essência da Ciência”, finaliza.
Fonte. Gazeta do Povo