Existe uma diferença fundamental entre reconhecer a imensidão do Brasil , capaz de abrigar mundos tão distintos em torno de um mesmo nome, e percorrer essa imensidão, sobre terra e asfalto, a bordo de um carro com tração 4×4 .
A paisagem vista das janelas entra em constante mutação, e infinitas planícies, cheias de soja, milho e, eventualmente, bananas, aos poucos se convertem em serras, que viram chapadas, que abrigam florestas e introduzem um sertão de árvores retorcidas e terra calejada.
Esse foi o cenário dos cerca de 3.200 km percorridos pela Folha junto aos turistas que encararam o desafio de acompanhar o Rally do Sertões, reconhecido como a maior competição off-road das Américas. Da largada, em Goiânia, à rampa de chegada, montada na praia do Francês, próximo a Maceió, foram oito dias de viagem, numa expedição que consegue congregar a paixão pelo automobilismo e o impacto de desvelar o país com os próprios olhos.
Há 33 edições, o Sertões explora os milhões de quilômetros das estradas de terra brasileiras —que são 87% da malha rodoviária nacional—, traçando rotas para a competição anual de motos, quadriciclos, carros e UTVs. Mas foi só há três anos que a organização do evento abraçou as operadoras de viagem especializadas em turismo 4×4, certificando pacotes para aproximar a prova daqueles que queriam viajar, sem, necessariamente, competir.
Esse era o caso de 280 expedicionários de uma caravana de 2.500 pessoas que se deslocavam diariamente entre uma cidade e outra da competição: 120 carros e 60 motos acompanhando, em diferentes comboios, o trajeto delineado por 11 operadoras.
Apesar dos mais velhos comporem a maioria desses aventureiros, é singular a participação de famílias com suas crianças, todos um tanto ávidos para seguir o caminho que se avizinha —ainda que isso signifique enfrentar os perrengues inerentes à experiência, combinados às longas distâncias percorridas ao dia.
Saímos de Goiânia num domingo, rumo à região da Chapada Gaúcha, no norte de Minas Gerais. A ideia era montar acampamento próximo ao rio Acari onde, na manhã seguinte, os competidores passariam com seus veículos. Durante esse trajeto, fez sentido a razão de tocarem tanto “Poeira”, de Ivete Sangalo , na classificatória que antecedeu a competição. A terra era tão seca e arenosa que, quando levantada, mal dava para discernir o carro à frente.
O que salva é o rádio compartilhado entre todos os expedicionários de uma mesma operadora, meio de comunicação oficial para direcionamentos, alertas na pista e uma troca mais livre de ideias.
Para além de produzir imagens que encantam —como o pêndulo formado quando, numa curva, vários carros dão sequência a um mesmo movimento—, viajar em comboio acaba fortalecendo um senso de comunidade. Isso se faz importante numa experiência como a do Sertões, onde o cuidar do outro é indispensável para a segurança de cada um. Afinal, é preciso que alguém te salve no caso de algum atolamento.
Ao fim de cada etapa, a caravana que segue com a competição se reúne numa espécie de vila, que é montada e desmontada nas cidades-sede do evento.
Do dia para a noite, descampados se transformam em estacionamentos para caminhões e motorhomes, vielas se formam para o trânsito de UTVs, e uma estrutura se abre para receber a comunidade local. A Vila Sertões, como é chamada, funciona como um ponto de encontro onde serão dadas as instruções para o dia seguinte e um espaço de descanso para as equipes competidoras e os turistas que lá acampam.
Nem todas operadoras, contudo, escolhem ficar lá. Como cada agência tem a liberdade de montar um percurso tendo como base a rota da prova oficial, a grande maioria prefere trocar a barraca e o chuveiro itinerante pelo conforto de um quarto de hotel.
Muitos também aproveitam o trajeto para dar uma esticada em destinos turísticos próximos. Foi assim que, de Januária (MG), visitamos o Parque Nacional Cavernas do Peruaçu, há pouco reconhecido pela Unesco como Patrimônio Natural da Humanidade.
Se o percurso em Minas foi de estradas de terra, na Bahia imperaram imensas retas de asfalto. A zona de transição que permitia a plantação de extensos bananais no caminho para Bom Jesus da Lapa logo se converteu no próprio sertão que nomeia a prova, quando o percurso desviou do curso do rio São Francisco em direção ao interior do estado.
Enquanto os competidores seguiam rumo à Xique-Xique, os turistas pegaram a estrada para Lençóis, porta de entrada da Chapada Diamantina. As serras que dão volume ao extenso planalto são vistas de longe, e vão crescendo à medida em que a vegetação da caatinga dá lugar à exuberância da mata atlântica.
Lençóis se revela colorida em meio à floresta. É uma cidade colonial que soube preservar o seu centro histórico e conseguiu se abrir aos visitantes que, depois de um dia explorando trilhas, cavernas e cachoeiras, lotam suas ruas e restaurantes à noite. Essa vivacidade também parece ser encontrada em meio ao cotidiano dos que vivem ali, que podem aproveitar um pouco do tempo livre em piscinas naturais localizadas a 15 minutos de caminhada do centro.
A passagem pela cidade ajuda a exemplificar como a experiência do Sertões, que por si só já não é barata, se mostra diferente a depender da operadora escolhida para a viagem. Os pacotes variam de R$ 15 a R$ 30 mil, por casal, que ainda precisam prever gastos com gasolina e com a alimentação na estrada, e se antecipar frente a possíveis imprevistos.
Comodidades e atrações também mudam conforme o preço. Enquanto competidores faziam a rota entre Petrolina (PE) e Delmiro Gouveia (AL), por exemplo, alguns turistas puderam conhecer a produção de vinhos no vale do Rio São Francisco, na vinícola Rio Sol, em Lagoa Grande (PE).
Após uma semana de viagem sob sol, calor e poeira, a chuva decidiu agraciar o sertão alagoano, o que acabou levando ao cancelamento das duas últimas etapas do Rally. Por conta do clima, o avião que rebate o sinal de internet para competidores e equipes não consegue voar, e a falta de comunicação se torna um entrave para a segurança do esporte.
Uma forte ventania que vinha do litoral anunciava a linha de chegada, balançando os canaviais e, num segundo momento, os coqueiros que margeiam a estrada para a Barra de São Miguel. Mesmo sob chuva, a recepção na praia do Francês, no domingo da outra semana, aconteceu sob festa.
Os expedicionários seguiram, numa fila de carros que lotou a cidade de Marechal Deodoro, rumo a uma rampa instalada em frente ao mar. Lá, receberam a mesma medalha dos competidores, comemoraram a jornada e acompanharam o anúncio dos campeões. No para-brisas de um dos carros, estava o resumo da expedição: “volto sujo, mas de alma lavada”.
Fonte.:Folha de S.Paulo