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- Author, Ione Wells
- Role, Correspondente na América do Sul da BBC News
Buenos Aires, setembro de 2023. Centenas de pessoas se aglomeravam para balançar bandeiras e filmar com seus celulares.
No centro da multidão, um homem de cabelos desgranhados e costeletas, vestido com uma jaqueta de couro preta, erguia uma motossera barulhenta acima da cabeça.
Era um comício eleitoral que acontecia na região de San Martín, na capital da Argentina, um mês antes da eleição presidencial — e a metáfora era explícita.
O candidato Javier Milei acreditava que o estado estava muito inchado, com dívidas anuais maiores do que toda a produção econômica do país.

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Milei já era conhecido por suas encenações.
Em 2019, ele vestiu uma fantasia de “super-herói libertário”, supostamente vindo de Liberland, uma terra onde não se pagam impostos.
Em 2018, quebrou uma piñata que representava o Banco Central ao vivo em um programa de televisão.
Anos de altos gastos públicos e a dependência de imprimir mais dinheiro e contrair empréstimos para cobrir déficits deixaram o país em um ciclo de dívidas e inflação.
No entanto, quase dois anos depois, os números principais são muito diferentes: a Argentina registrou seu primeiro superávit fiscal em 14 anos, e a inflação, que atingia três dígitos anualmente, caiu para cerca de 36%.
A líder do partido Conservador do Reino Unido, Kemi Badenoch, chamou as medidas tomadas por Milei como um “modelo” para um futuro governo conservador.
O presidente argentino, por sua vez, disse que estava “honrado” em visitar a Casa Branca e elogiou os esforços de Trump em busca da paz no Oriente Médio.

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A decisão de Washington de trocar US$ 20 bilhões (R$ 109 bilhões) de dólares por pesos — efetivamente sustentando a moeda argentina com apoio do Fundo Monetário Internacional (FMI) — é um sinal de que a terapia de choque fiscal de Milei tem agradado aos credores internacionais.
Mas Trump deixou claro que a ajuda tem cunho eleitoral e visa impulsionar a popularidade de Milei nas pesquisas antes das eleições de meio de mandato, em 26 de outubro.
“Se ele perder, não seremos tão generosos com a Argentina. Nossos acordos estão sujeitos a quem vencer a eleição”, disse Trump.
Apesar de todo o elogio internacional, esse é apenas um lado da história.
“Ele disse em sua campanha que esse ajuste seria pago pela “casta” — os ricos, os políticos e os empresários malvados”, afirma Mercerdes D’Alessandro, economista de esquerda e candidata ao Senado.
Mas, segundo ela, o resultado foi menos dinheiro para os aposentados e hospitais.
“No fim, o ajuste acabou sendo direcionado às classes trabalhadoras, não à casta.”

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E agora, alguns economistas afirmam que o país pode estar prestes a entrar em uma recessão.
No papel, sua “motosserra” alcançou parte dos sucessos macroeconômicos que ele prometeu. Mas ele perdeu apoio político, o que assustou os mercados e, por consequência, desestabilizou seu projeto econômico.
Com as eleições de meio de mandato se aproximando, em 26 de outubro, a Argentina está prestes a dar seu veredito: Milei será punido por ter feito o que se propôs a fazer? E a perda de apoio político pode destruir completamente seus ganhos econômicos?
Argentinos pagam preço pelas reformas
Cerca de 1.120 quilômetros da capital, na província de Misiones, o agricultor de chá Ygor Sobol parece apreensivo. “Estamos todos regredindo economicamente”, diz.
“Tive que fechar a folha de pagamento. Agora estou completamente sem funcionários.”
Há três gerações, sua família cultiva erva-mate, uma bebida popular entre os argentinos, mas desde que Milei desregulamentou o setor, eliminando os preços mínimos, Sobol afirma que suas colheitas passaram a valer menos do que o custo de produção.
Agora, ele diz não ter condições de arcar com tarefas básicas, como limpar e adubar a plantação.
E com o negócio dando prejuízo, ele está decidindo sobre o que sua família terá que abrir mão.

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A indústria têxtil multibilionária da Argentina também está sendo afetada.
Luciano Galfione, presidente da organização sem fins lucrativos Fundacion Pro Tejer, relata fechamentos e demissões “diárias”.
Ao contrário da abordagem de Trump de aumentar tarifas para promover o lema “America First”, Milei cortou tarifas e outros critérios para importações.
“Tenho controles ambientais, controles trabalhistas, nós não pagamos US$ 80 por mês, nem temos jornadas de 16 horas, como é permitido em locais como Bangladesh e Vietnã. Isso cria um campo de competição desigual”, argumenta Galfione.
Ele acredita que o aumento das importações prejudicou os produtores nacionais:
“Nosso setor perdeu mais de 10 mil empregos diretos. Se somarmos os indiretos, o número é muito maior.”
Galfione também culpa o aumento dos custos de serviços públicos, saúde e escolas pela redução da renda disponível da população média, tornando as pessoas menos propensas a comprarem roupas.
E, apesar de tudo isso, Milei está convencido de que suas medidas melhorarão a vida dos argentinos comuns.
‘Uma grande bagunça’
Na reta final da eleição, Milei dizia que não havia alternativa aos grandes cortes.
Além da inflação crescente, os vastos subsídios do governo mantinham os preços da energia e do transporte baixos.
Os gastos públicos eram altos, mesmo antes da pandemia de Covid-19. O controle de preços fixou valores para certos produtos. E a Argentina, ainda assim, deve cerca de R$ 226 bilhões para o FMI.
“A demanda por gasto público era brutal”, argumenta Ramiro Castiñeira, economista da consultoria Econométrica, que apoia Milei.
“A sociedade parecia disposta a conviver com tanta inflação, ou não percebia que a inflação era resultado de tanto gasto público.”

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A inflação consumia o poder de compra do peso.
Muitos argentinos comuns entregavam quantias desproporcionais de pesos a cambistas ilegais para comprar dólares, com medo que seu dinheiro perdesse valor da noite para o dia.
“Tudo era uma grande bagunça”, explica Martin Rapetti, professor de economia na Universidade de Buenos Aires e diretor-executivo do think thank Equilibria.
“As pessoas sentiam o dinheiro escorrer pelos dedos como se fosse água.”
Para muitos economistas, uma mudança drástica era essencial para restaurar a credibilidade. E Milei prometeu uma mudança radical.
Ele viralizou ao arrancar nomes de ministérios do governo, como o da Cultura e o da Mulher, de um quadro branco enquanto gritava: “Fora!”.
Entre outras medidas de austeridade, Mileu reduziu pela metade os ministérios do governo, cortou dezenas de milhares de empregos públicos, cortou orçamentos, incluindo os de educação, saúde, previdência e infraestrutura, e removeu subsídios, elevando o preço de energia e transporte.
Sua desvalorização inicial do peso em 50% fez a inflação disparar, mas depois ela caiu, à medida que as pessoas passaram a gastar menos e a demanda diminuiu.

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‘Ecos de Thatcherismo’
Quando o conheci em abril de 2024, havia esculturas dele empunhando uma motossera em exposição e porta-copos com o rosto de Margaret Thacther em seu escritório.
Thatcher é odiada por muitos na Argentina devido à Guerra das Malvinas, mas Milei me disse que a admirava e que ela era “brilhante”.
No mês passado, um jornal britânico descreveu a abordagem de Milei na Argentina como tendo “ecos do Thatcherismo”.
O economista Miguel Boggiano, membro do conselho econômico consultivo de Milei, elogia o presidente por ter conseguido reduzir a inflação e o déficit.
“Levando em conta o ponto de partida, isso é uma conquista enorme”, afirma.
Ele acredita que isso ajudará a reduzir a pobreza a longo prazo e permitirá diminuir os impostos, além de facilitar o planejamento das pessoas com seus gastos, já que a inflação está oscilando menos atualmente.
Mas Alan Cibils, economista independente e ex-professor, adverte que a queda da inflação só é um sucesso se for sustentada ao longo do tempo, o que ele acredita que não acontecerá.
A vantagem do outsider
Javier Milei não é um político de carreira. Antes de se tornar presidente, ele teve dois anos de experiência como deputado no Congresso argentino.
“Estar tão afastado, de certa forma, o protege”, observa o professor Rapetti, citando a falta de “sinais de empatia na vida pública”.
Os mercados entraram em pânico: investidores estrangeiros venderam pesos e títulos da dívida pública argentina.

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Os mercados financeiros vinham, em geral, apoiando o programa econômico de Milei. Mas as eleições de meio mandato estão se aproximando, assim como o pagamento de dívidas previsto para para o próximo ano.
O socorro financeiro oferecido por Trump trouxe alguma estabilidade: após o anúncio, os títulos argentinos e o peso aumentaram o valor.
Mas, segundo D’Alessandro, embora a intervenção dos EUA possa resolver um problema mais amplo, nada muda na “vida real das pessoas”.
“Vamos continuar sem investimento em hospitais, educação, programas sociais. Esse dinheiro dos EUA não vai melhorar a infraestrutura da Argentina.”
Modelo para outros países?
Alguns dos apoiadores de Milei — como Boggiano — acreditam que há algo a mais por trás das críticas generalizadas ao presidente.
Para ele, grande parte das críticas vem da oposição, que tenta “desfazer” o que Milei tem feito, com objetivo de retornar ao poder.
“Quando todos começarem a acreditar que a estabilidade veio para ficar, os investidores voltarão”, afirma Boggiano.
“Acho que Milei se tornará um modelo para outros países.”
Outros não têm tanta certeza assim.
“Há uma certa estabilidade que ajuda as coisas a não explodirem”, afirma Cibils.
“Mas eu acho que a estabilidade é também uma miragem.”
Milei também manteve a inflação sob controle gastando as reservas do país para sustentar o peso e evitar seu colapso. Com isso, a Argentina deve US$ 20 bilhões em dívidas para o próximo ano.
Um ex-economista do Banco Central, que preferiu falar de forma anônima, alerta que a estratégia de Milei de manter a inflação baixa pode desmoronar se a Argentina não conseguir pagar suas dívidas.
“Se no fim das contas tivermos uma crise financeira que desfaça parcialmente todo o esforço, então será um fracasso. Se isso terminar em agitação social, qualquer progresso será revertido”, afirmou o economista.
O governador de esquerda de Buenos Aires, Axel Kicillof, tem sido apontado como um futuro candidato presidencial para as eleições de 2027.
Ele se posiciona a favor do estado de bem-estar social. Alguns investidores calculam que isso poderia significar um retorno para os tempos de grandes gastos.

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Quanto à questão se Milei tem sido bem-sucedido no cargo, a resposta depende em grande parte da definição de “sucesso” e para quem ele é.
Muitos trabalhadores veem fábricas fechadas, contas disparando e uma rede de proteção social que desaparece.
Enquanto isso, investidores enxergam uma história de sucesso em disciplina fiscal, inflação controlada, alinhamento com Washington e, simplesmente, uma “normalização”.
Mas mesmo que líderes estrangeiros observem o experimento de Milei com fascínio, a política pode explicar por que poucos provavelmente o imitarão.
Se as pessoas comuns perderem a fé no que ele está fazendo, o mercado também perderá confiança de que seu programa é sustentável — e isso poderia apagar até mesmo seus sucessos “macro”.
“Ele não tem expertise política, e eu acho que é necessário”, argumenta Rapetti.
Ainda assim, ele acredita que é muito cedo para julgar: “Nós estamos na metade do mandato… a história ainda não acabou.”
Fonte.:BBC NEWS BRASIL