
Crédito, Vitor Alvarenga/Divulgação
- Author, Vitor TavaresVitor Tavares
- Role, Da BBC News Brasil em Belém (PA)
Saboroso e menor que a unha de um polegar, o aviú, um microcamarão amazônico, aparece em águas rasas de igarapés apenas na época da cheia na região do rio Tapajós, no Pará. É quando o chef paraense Saulo Jennings o coloca temporariamente à mesa em pratos de seus concorridos restaurantes em cidades como Santarém e Belém.
“A gente tem que valorizar tudo que a floresta nos dá na sua hora e na sua quantidade”, explica Jennings.
Foi com essa filosofia em mente que o paraense bateu o pé e virou notícia no mundo inteiro ao se recusar a cozinhar um menu vegano para 700 convidados no jantar oferecido pelo príncipe William no próximo dia 5 de novembro, no Rio de Janeiro, para o prêmio Earthshot.
O prêmio ambiental global, fundado pelo príncipe, concede 1 milhão de libras (R$ 7,16 milhões) a cinco vencedores que oferecerem a melhor solução para alguns dos maiores desafios climáticos do mundo.
Neste ano, pela primeira vez, o evento será realizado no Brasil, poucos dias antes do início da cúpula do clima das Nações Unidas, a COP30, em Belém, onde o príncipe britânico irá representar seu pai, o rei Charles 3º.
Os jantares oferecidos pelo príncipe no Earthshot têm sempre comida vegetariana no menu, mas, ao ser convidado, Jennings esperava apresentar sua especialidade ao mundo: os peixes amazônicos.
Não foi o que aconteceu. Ele diz que foi solicitado um menu vegano e enviou em resposta uma proposta de menu 80% sem produtos de origem animal e 20% com opções incluindo peixes.
Diante da negativa em fazer a comida sem produtos de origem animal, diz o chef, o contrato não foi para frente.
Fonte com conhecimento da organização do evento explicou à BBC que os jantares do Earthshot sempre oferecem comida vegetariana — ou seja, que exclui carne de animais, enquanto um menu vegano não teria qualquer alimento de origem animal, como laticínios, ovos e mel.
O príncipe não teria tido envolvimento na discussão sobre os pratos do menu.
O chef Saulo Jennings confirma que as tratativas e exigências não foram feitas diretamente com o príncipe, mas com a organização do jantar no Rio.

Crédito, Vitor Serrano/BBC
“A gente trabalha com vegano, mas eu não pensava que era excluindo a nossa matéria-prima, os peixes. A cultura alimentar do meu povo é tudo que vem da floresta e dos rios”, disse Jennings em entrevista à BBC News Brasil em um dos seus restaurantes em Belém.
O chef refuta a ideia de que uma culinária sem carne seria mais ecologicamente correta, ao menos na Amazônia. E, se os estrangeiros estão promovendo eventos para conhecer a realidade da floresta, eles precisam entender a cultura alimentar local.
“Não ser vegano não significa que é não ser sustentável ou naturalista na Amazônia. Ser sustentável na Amazônia e ser naturalista é respeitar o que a Amazônia nos dá no seu tempo”, diz Jennings.
“Tem uma frase que digo: salada é do europeu. Não é pejorativo, é porque é característico do europeu. O nosso é farinha, peixe, açaí, tucupi.”
Natural de Santarém, no oeste do Pará, Jennings é um dos principais nomes da culinária amazônica no Brasil, tornando-se o primeiro embaixador gastronômico da ONU Turismo — a agência especializada das Nações Unidas que promove turismo sustentável.
Ele começou sua empreitada gastronômica há 15 anos com um pequeno restaurante focado na culinária da região do rio Tapajós, onde fica Santarém.
Hoje, além do restaurante Casa do Saulo em sua cidade natal, o chef comanda filiais disputadas em Belém, em São Paulo e no Museu do Amanhã, no Rio de Janeiro, onde será realizado o evento do príncipe William.
O carro-chefe de seus restaurantes é o pirarucu, peixe que já foi considerado ameaçado de extinção e tem hoje sua pesca e comércio controlados.

Crédito, Vitor Serrano/BBC
A pesca dessa espécie, antes proibida devido à exploração predatória, hoje é considerada um exemplo de manejo sustentável.
O modelo prevê a contagem dos animais e permite a captura de apenas uma parte deles, assegurando tanto a conservação das populações quanto a geração de renda para comunidades indígenas e ribeirinhas.
Jennings participa de um projeto de manejo do pirarucu na região de Santarém — segundo ele, mais de mil famílias vivem hoje só do peixe que seus restaurantes compram.
“Você tirar o peixe da natureza na sua hora certa, no tamanho certo e com respeito e com essa técnica com certeza é sustentável”, diz ele.
“E, para ser sustentável, eu tenho que comprar esse peixe.”
COP sem açaí e maniçoba?
O episódio do jantar vegano oferecido pelo príncipe no Rio lembrou outra discussão que Saulo Jennings teve que enfrentar para participar dos banquetes a serem servidos na COP, em Belém, em novembro.
O primeiro documento com abertura de licitações para os fornecedores de bebidas e comidas excluía alimentos essenciais da culinária paraense e amazônica, como açaí, tucupi, maniçoba (um ensopado com carnes à base a folha da mandioca triturada) e sucos de fruta in natura.
A organização do evento os classificava como de “alto risco de contaminação”.

Crédito, Vitor Serrano/BBC
Após a repercussão negativa e o pronunciamento de chefs como Jennings, o governo federal interviu, e uma errata foi publicada autorizando a inclusão desses pratos.
“Tudo na Amazônia é in natura. Mas nós temos nossos órgãos fiscalizadores, então foi aberto diálogo, todo mundo se juntou e resolveu conversar com o órgão que faz a licitação”, lembra o chef.
Essa primeira situação, diz Jennings, o deixou “sensível” a respeito de pedidos dos estrangeiros para não incluir alimentos amazônicos nos cardápios.
“Quando chega um pedido desses [o jantar do Earthshot], a gente fica preocupado, porque, poxa, já estamos excluindo mais uma vez as nossas coisas. Então, pode ter sido sim uma forma de proteção minha”, explica sobre sua recusa.
Envolvido nas polêmicas, o chef diz levar como “missão” abrir a discussão sobre o respeito à cultura alimentar local, valorizando ingredientes locais.
Jennings prevê que Belém vai conquistar o mundo durante a COP “pela barriga”, assim como ele já fez com os britânicos em 2023.
Na cerimônia em homenagem à coroação do rei Charles 3º na Embaixada do Reino Unido em Brasília, Jennings foi convidado para oferecer canapés aos convidados.
Entre os pratos, fez um fish and chips, tradicional prato inglês que consiste em batata frita com tiras de peixe empanado. Na sua versão, o peixe, claro, foi o pirarucu.
O chef agora espera encontrar o príncipe William no Rio e na capital paraense, para poder “contar como é a sustentabilidade do povo da Amazônia”.
“Acho que o diálogo é a melhor forma de a gente ter a paz no mundo. Inclusive, a comida, a boa mesa, eu acho que é onde tudo começa.”
Procurado pela BBC, o Palácio de Kensington, residência oficial do príncipe William, não se manifestou oficialmente sobre o menu do jantar do Earthshot e a recusa do chef paraense.
Fonte.:BBC NEWS BRASIL


