Enquanto o Brasil promove o conceito indígena de mutirão, um esforço coletivo pelo bem comum para alavancar a COP30, o país abre, ao mesmo tempo, caminho para a destruição em nossos territórios. Apesar de celebrar a cultura indígena em discursos, o Senado aprovou recentemente o PL da Devastação, uma legislação que autoriza as empresas a emitir suas próprias licenças ambientais, reduz a fiscalização e coloca ecossistemas e comunidades inteiras em risco.
Exemplos controversos não faltam. Um dos mais alarmantes é a proposta de reconstrução da BR-319, uma rodovia que corta o coração da Amazônia e ameaça abrir vastas áreas de floresta intacta ao desmatamento ilegal, à grilagem de terras e à violência contra os Povos Indígenas, numa região onde muitos deles vivem em isolamento voluntário. Outro exemplo é a possível construção da Ferrogrão, que chamamos de Trem da Morte, planejada para impulsionar o escoamento da soja por dentro de nossas florestas, incentivando ainda mais queimadas e a transformação de nossos territórios.
Apresentada a negociadores de todo o mundo na primeira carta da presidência da COP30, a palavra mutirão — ou motirõ — tem raízes indígenas. Sua origem é tupi e remete à ideia de comunidades que se unem para trabalhar em tarefas compartilhadas, da colheita à cura. O conceito ganha visibilidade global, mas as ameaças contra nossos povos só aumentam. Em 2024, os incêndios atingiram mais de 67 mil quilômetros quadrados de Floresta Amazônica, área dez vezes maior que a taxa de desmatamento oficial medida pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais para o período.
Para fazer um mutirão de verdade, é preciso começar pela base, com quem dá sentido e força a essa palavra. Esse esforço coletivo só será transformador se os Povos Indígenas forem incluídos de forma significativa nos acordos finais e em políticas nacionais vinculantes, e não apenas consultados ou exaltados em discursos.
Por isso, clamamos ao governo brasileiro, mais uma vez, que inclua em sua Contribuição Nacionalmente Determinada (NDC, na sigla em inglês) a demarcação de Terras Indígenas como uma solução climática comprovadamente eficiente. O país deve adicionar um anexo ao documento com as metas que apresentou no ano passado, ressaltando o impacto benéfico para o clima da proteção das florestas feita em territórios indígenas, o que é passível de ser medido pela ciência. Como anfitrião desta COP na Amazônia, o Brasil tem a oportunidade de estabelecer esse marco e ser pioneiro entre outras nações com populações originárias.
A terra demarcada e sob nossa posse é resposta concreta à crise climática. Nossas práticas e conhecimentos tradicionais são o caminho para o Brasil alcançar os compromissos que assumiu na luta climática global. A resposta somos nós, aqueles que vivem em profunda conexão com a terra. Nossas ações diárias já incorporam os princípios necessários para um futuro sustentável. Nosso trabalho é pôr fim à dependência dos combustíveis fósseis, impulsionar uma transição energética justa e defender com coragem nossas florestas, águas e comunidades para o bem de toda a humanidade.
Mutirão não é apenas uma filosofia, é uma prática enraizada na ação, na reciprocidade e no cuidado coletivo. Não se constrói um mutirão com discursos, mas com solidariedade. O Brasil não pode carregar a bandeira do mutirão para o mundo enquanto queima suas raízes. Se o país quer caminhar ao lado dos Povos Indígenas, é preciso alinhar palavras e ações.
Tem mais de 35 anos de atuação em conjunto com as organizações indígenas e de envolvimento em políticas públicas a nível internacional e nacional. É representante titular do Comitê Orientador do Fundo Amazônia (COFA) e representante titular da Comissão Nacional para REDD+ (CONARRED), presidente do Conselho Deliberativo do Fundo Indígena da Amazônia Brasileira (PODAALI).
Toya Manchineri Toya Manchineri, Coordenador-geral da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab).
Fonte.:Folha de S.Paulo