Abaixo da Constituição Federal, nenhuma lei afeta tanto a vida das pessoas quanto o Código Civil. É de esperar, portanto, que uma proposta de modificar esse conjunto de normas seja conduzida com o máximo cuidado —algo que, infelizmente, parece faltar aos envolvidos nesse ambicioso projeto.
De saída, procura-se apresentar a iniciativa como simples reforma do Código Civil de 2002, uma adaptação de seu conteúdo à luz da realidade contemporânea. A vingar essa compreensão, é possível que o Congresso Nacional conduza o trabalho em ritmo acelerado, sem realizar as discussões que a matéria demanda.
Seria um equívoco perigoso. Está em jogo a potencial mudança de nada menos que 1.122 artigos em um diploma legal que termina no número 2.046. Dessa perspectiva, soa mais preciso falar em novo código do que em reforma do velho —o que deveria, portanto, ensejar uma tramitação mais demorada e cuidadosa.
Diante de um projeto dessa magnitude, o debate é mais que necessário. Não se questiona a pertinência de atualizar certos dispositivos normativos. Quando foi aprovado, no início do século, o atual Código Civil nasceu ultrapassado em vários aspectos, e outros tantos se tornaram obsoletos pouco tempo depois.
Para ficar em poucos exemplos, tome-se o direito de família. A lei de 2002 trata do casamento como uma relação entre um homem e uma mulher, desconsiderando a união entre pessoas do mesmo sexo (reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal em 2011).
Também ignora outras modalidades de família, como as monoparentais (só mãe ou só pai com filhos) e as não conjugais (irmãos e primos que moram juntos).
O problema é que, na esteira de alterações bem-vindas em relação a esses e outros pontos, o projeto de novo Código Civil traz propostas que, longe da mera modernização de regras, representam uma modificação conceitual profunda e controversa.
Um dos casos mais patentes diz respeito aos contratos. Se o novo código for aprovado sem mudança nessa parte, tais acordos poderão ser anulados com base em critérios como confiança e função social, sem que se saiba ao certo o que essas ideias significam.
Pode-se imaginar o grau de insegurança jurídica decorrente de uma única inovação dessa natureza. E o mais grave é que, assim como nesse exemplo, há previsão de outras situações em que aumenta sobremaneira o poder da Justiça de arbitrar a relação privada entre os cidadãos —tudo com base em critérios vagos.
Com isso não se pretende sugerir que se congele a iniciativa de reformar o Código Civil. É evidente que todo texto legal deve ser permeável a revisões, mas daí não decorre que qualquer mudança seja positiva, nem que alterações no atacado sejam melhores do que no varejo.
O Congresso precisa encontrar um caminho que de fato modernize a lei, mas sem prejudicar sua necessária estabilidade.
Fonte.:Folha de S.Paulo