
Crédito, Vitor Serrano/BBC News Brasil
- Author, Marina Rossi e Vitor Serrano
- Role, Enviados da BBC News Brasil a Salvador
- X, @marinarossi
“Era aqui que eu começava a corrida dos três faróis: de Humaitá, passava pelo Farol da Barra e ia até o Farol de Itapuã”, contou Ayrton dos Santos Pinheiro, contemplando o mar de Salvador que se abria diante da sua janela.
Era uma segunda-feira no início de junho, céu claro na capital da Bahia após dias seguidos de chuvas intensas, e Ayrton, de 90 anos, estava em uma das três camas espalhadas por um quarto amplo e bem iluminado no hospital Mont Serrat.
“Quando me disseram que eu viria para este hospital, eu não sabia que ele ficava aqui”, seguiu, falando das instalações na Ponta de Humaitá, no alto do bairro Monte Serrat, na Cidade Baixa.
As lembranças forçaram Ayrton a fazer pausas na fala. Tomando fôlego, com a voz embargada, falou com detalhes dos anos como corredor, da família e do nascimento de um dos filhos naquele bairro.
Nascido em Pojuca, um pequeno município na Região Metropolitana de Salvador, ele chegou à capital por volta dos 8 anos com a família e, até hoje, se encanta com a cidade de onde nunca mais saiu. “É linda”, disse.
Abriu uma agência de turismo, casou-se e tocou a vida entre o esporte, o trabalho e a família.
Ayrton ficou surpreso quando descobriu no hospital, por fim, que estava em um pedaço da cidade que trazia tantas lembranças boas. “Quando cheguei aqui, minhas forças se renovaram.”
Ele ocupava um dos 64 leitos do Mont Serrat, que funciona em um casarão do século 19, próximo a um dos pontos mais conhecidos de Salvador, a igreja do Senhor do Bonfim.
Os cuidados paliativos focam na melhora da qualidade de vida e dos sintomas dos pacientes com doenças graves ou que não têm cura. A abordagem, que também é centrada no cuidado dos familiares, não acelera nem abrevia o processo de morte do paciente, mas busca reduzir o sofrimento físico, psicológico e espiritual.
“Aqui, o foco da gente não é a morte. Aqui, o foco da gente é cuidado enquanto vida tiver”, diz a médica Karoline Apolônia, coordenadora do Núcleo de Cuidados Paliativos da Secretaria de Saúde da Bahia.
“Perguntaram se meu pai queria fazer a barba, para que time ele torce, o que gosta de comer, se gosta de música. Então, a gente relaxou, por saber que ele está sendo bem cuidado”, conta Ayrton Junior, filho do corredor Ayrton.
Junior diz que o pai tem câncer de próstata e tratou com radioterapia um câncer na pele do nariz e da cabeça.
“[Ele] correu várias maratonas, tenho vários troféus dele lá em casa inclusive”, lembra.
Mas agora a prioridade é o presente.
“A gente sente que o que é importante para meu pai é o conforto presente, no momento presente. Um dia depois do outro. Ele precisa ficar bem, é o nosso pensamento, é o pensamento da família dele.”

Crédito, Vitor Serrano/BBC News Brasil
Um hospital sem UTI
Caminhar pelos quatro pavilhões do Mont Serrat é perceber também que ali não funciona um hospital comum.
Karoline, que compara a internação em uma UTI com correr uma maratona, diz que isso seria incompatível com a condição dos pacientes que ingressam ali.
“Se eu coloco esse paciente para correr a maratona, eu só vou trazer a ele sofrimento”, afirma a médica. “Então, em vez disso, a gente sugere a ele sentar aqui e contemplar o pôr do sol. Aproveitar para dizer desculpa, obrigada, eu te amo e tchau.”
Para um paciente ter indicação de cuidados paliativos, ele deve ser encaminhado por uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA), atendendo a alguns critérios, como ter um diagnóstico de doença grave e tempo estimado de vida de seis meses.
A família e o paciente também já devem ter enfrentado o que Karoline chama de “conversas difíceis”, isto é, discutir um prognóstico irreversível e saber que UTI não estaria entre as opções para mantê-lo vivo.
Outra peculiaridade do Mont Serrat é que o necrotério fica no centro, entre os quatro pavilhões, e não em uma ala isolada. E, no mesmo ambiente, dividido por uma porta de correr, fica a Sala da Saudade.
É ali que muitas famílias se despedem, se abraçam e se acolhem, depois que um familiar faleceu, porque a premissa é que os parentes também sejam cuidados.
Na sala tem um sofá, uma televisão, água, café e um abajur com luz indireta. Na parede de entrada, uma frase de Ana Cláudia Quintana Arantes, uma das paliativistas pioneiras e mais célebres do país, está escrita de fora a fora: “Um minuto de silêncio. Preciso ouvir meu coração cantar.”

Crédito, Matheus Leite/BBC News Brasil
“Este hospital foi muito sonhado, por muitos anos”, contou a médica Karoline, pernambucana de 44 anos, há 11 em Salvador.
O sonho teve início em 2019, quando surgiu o Núcleo de Cuidados Paliativos da Secretaria de Saúde da Bahia, formando médicos especialistas nesta área em todo o Estado.
O núcleo foi pioneiro: foi somente em maio de 2024 que o Ministério da Saúde lançou Política Nacional de Cuidados Paliativos no âmbito do SUS. Na mesma esteira, desde 2023, os cuidados paliativos são disciplina obrigatória nas faculdades de medicina de todo o país.
Na Bahia, o projeto tomou corpo quando foi feita uma radiografia da rede.
“Percebemos que entre 20% e 30% dos pacientes de toda a rede pública da Bahia tinham indicação de ser transferidos para uma unidade especializada em cuidados paliativos”, contou Karoline.
“A gente não queria nem que os pacientes chegassem aqui e imediatamente morressem”, explicou Yanne Amorim, líder médica do hospital, “e nem que virasse um hospital de doenças crônicas.”
Por isso, o tempo estimado de vida dos pacientes que chegam ao Mont Serrat é de seis meses. Alguns vivem mais do que isso e chegam a ir para casa, para seguir com os cuidados com a família. Outros, vivem bem menos, de forma que o tempo médio de internação no hospital é de oito dias.
“O paciente recebe alta sabendo e conhecendo que ele continua tendo a sua doença”, explicou Yanne. “Mas ele volta para casa com a condição de estar conectado com o que muitas vezes é sagrado para ele, que é a sua família.”
Esses pacientes que recebem alta podem continuar o tratamento em casa, indo eventualmente ao ambulatório do Mont Serrat, ou acabam falecendo cercados de parentes e amigos.
A BBC News Brasil fez duas visitas à instituição, uma no início de abril, e outra exatamente dois meses depois. Nenhum paciente que estava na primeira visita continuava ali na segunda.

‘Meu marido chegou aqui morto’
No início de abril, o companheiro da pensionista Ângela Maria Barbosa Teixeira, de 48 anos, já estava há quase um mês internado.
Foi após sofrer um assalto e levar muitas pancadas na cabeça que Donizete Santana de Oliveira, de 33 anos, descobriu que o inchaço no crânio era devido a um câncer. A história foi narrada por Ângela, porque o marido já não conseguia mais falar ou se locomover.
Mesmo com cirurgia e quimioterapia, o tumor persistiu. “Depois de todas as tentativas, acabamos com a indicação de cuidados paliativos”, disse ela. “Ficamos tristes. Quem vai ficar feliz com uma notícia dessas?”
Naquele momento, Donizete estava internado em outro hospital, também público. “Ele sofria demais ali, passava muito mal, gritava”, conta ela, emocionada. Em uma palavra, ela resumiu o estado que Donizete se encontrava quando chegou ao Mont Serrat: “Morto”.
“Mas chegamos aqui e fomos tão bem tratados, que ele foi melhorando”, ela conta. “Todo mundo, desde as meninas da limpeza, até as psicólogas daqui, nos acolheram. Isso não existe em nenhum outro lugar, por isso eu digo que isso aqui é um pedacinho do céu”, diz ela, revelando na prática os contrastes dentro do próprio SUS.
A equipe inteira do hospital, composta por 430 pessoas, passa pelo mesmo treinamento. Seguranças, faxineiros, enfermeiros e médicos participam de dinâmicas que discutem empatia e questionamentos como: de que maneira você gostaria de ser tratado se chegasse aqui? O que você pediria nesse tempo?
E essa pergunta é repetida todos os dias, com os pacientes.

Crédito, Matheus Leite/BBC News Brasil
“Me perguntam o que eu quero, o que eu mais gosto, o que eu quero para me alimentar? Eu tô aqui como a grã fina”, disse, às gargalhadas, a dona de casa Helita Maria da Silva, de 86 anos, uma animada senhora que recebeu a reportagem, assim como Ayrton, na segunda visita ao hospital, feita no início de junho. “E onde é que eu vou achar isso?”
Ao lado do filho, o auxiliar de produção João Raimundo da Silva Vitória, de 54 anos, ela descansa em uma cama, enquanto assiste à televisão.
“Ela está aqui sendo bem tratada, depois que decidimos que não iríamos operá-la devido à idade avançada dela”, contou João, resumindo com as próprias palavras os cuidados paliativos da mãe, que tem um câncer no fígado.
“Sou tratada como um bebê”, finalizou Helita, que receberia alta dois dias depois.

Crédito, Vitor Serrano/BBC News Brasil
Ângela, companheira de Donizete, também descreveu o cuidado. “Eu estou feliz, porque a hora que Deus recolher ele, eu sei que esse hospital aqui propôs um fim feliz, um fim sem dor, sem grito, sem choro”, disse. “E isso aí me alegra muito.”
Donizete partiu aos 33 anos, 20 dias após a primeira visita da BBC News Brasil ao hospital, depois de ficar por dois meses sob cuidados no Mont Serrat.

Crédito, Vitor Serrano/BBC News Brasil
O hospital, até hoje o único do SUS totalmente voltado para cuidados paliativos — entre os privados, há algumas iniciativas —, surgiu inspirado no exemplo de três sistemas-modelo: o inglês, o canadense e o argentino, explica a médica Karoline Apolônia.
Foi na Inglaterra que surgiu o primeiro serviço voltado para os cuidados paliativos no mundo. Situado em Londres, o St. Christopher’s foi fundado em 1967 por Cicely Saunders, pioneira nos cuidados paliativos.
Karoline ressalta que os cuidados paliativos não têm relação com a eutanásia, uma associação um tanto comum, mas equivocada. “São dois conceitos diferentes”, diz.
O paliativismo prega, segundo ela, a ortotanásia: os cuidados com controle dos sintomas para o processo de fim de vida natural. Já a eutanásia é a prática de provocar, sem dor, por meio de uma injeção que para o coração, a morte de alguém que esteja padecendo de alguma enfermidade.
Embora a discussão sobre a eutanásia e a morte assistida — quando um médico prescreve uma substância letal para que o próprio paciente se suicide — esteja avançando em alguns países, como no Canadá e em alguns Estados dos EUA, no Brasil ambas as formas são proibidas por lei.
Karoline explica, no entanto, que há recursos, dentro da ortotanásia, para reduzir o sofrimento do paciente, sem que o processo de morte seja acelerado. A sedação paliativa, segundo explica a médica, é um analgésico sedativo capaz de rebaixar a consciência.
“Assim, o próprio corpo entra em finitude”, diz. “E isso não é eutanásia ativa, que é quando um profissional de saúde, movido por compaixão, executa um ato cujo objetivo final é fazer com que a pessoa morra.”
“Sempre conseguimos reduzir o sofrimento controlando os sintomas e oferecendo a sedação paliativa, que é algo legalizado.”
‘Se a gente não se organizar, não vamos conseguir cuidar de quem está envelhecendo’

Crédito, Matheus Leite/BBC News Brasil
O técnico de telecomunicação Marcos Roberto Alencar da Silva, de 48 anos, estava no Mont Serrat no começo de junho para acompanhar a mãe, Marina Alencar, de 79, que sofria de demência, após ser diagnosticada com Alzheimer.
“Sei que ela está no estágio final, porém com o conforto”, ele disse, dois dias antes do falecimento de Marina.
Para ele, o Mont Serrat é um lugar que proporcionou os cuidados finais que ele e a família não teriam condições de bancar em uma instituição privada.
“Eu ficava pensando ‘será que um dia uma porta vai se abrir aqui em Salvador?’, não só pela minha mãe, mas pelas outras famílias que também precisam”, diz. “E aí essa porta se abriu.”
A mesma porta se abriu para a aposentada Antonia Carvalho de Ribeiro, de 60 anos, que estava acompanhando o marido, Everaldo Ferreira, de 74 anos, que sofria com as sequelas de um AVC.
“Quando se fala em hospital de cuidados paliativos a gente já fica meio que assustada”, disse. “Mas quando chegamos e encontramos uma coisa dessas, em que todos tratam você com carinho, com respeito, com um bom dia, entendeu? Isso é muito importante.”
O desejo dela era somente um: “Que eu possa levar ele para casa, e a gente [possa] terminar os dias juntos em casa”, afirmou, entre lágrimas.
Everaldo partiu três dias após a segunda visita da BBC News Brasil, no hospital.

Crédito, Vitor Serrano/BBC News Brasil
“Uma das preocupações do nosso gestor era que, se depois que o hospital abrisse, a gente iria ter ocupação máxima”, diz Karoline. “E hoje podemos dizer que a gente vive próximo à ocupação máxima todos os dias.”
A experiência com o Mont Serrat mostra, defende a médica, que a demanda por esse tipo de serviço será cada vez maior.
Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), entre os anos 2000 e 2023, a proporção de idosos (pessoas com 60 anos ou mais) na população brasileira quase duplicou, subindo de 8,7% para 15,6%.
E as projeções do próprio IBGE indicam que, em 2070, quase 40% dos brasileiros serão idosos.
Por isso, para a médica, novas portas como essa do Mont Serrat deveriam, cada vez mais, se abrir.
“Se a gente não se organizar como um sistema enorme que nós somos, não vamos conseguir cuidar dessas pessoas que estão envelhecendo”, diz ela.

Crédito, Vitor Serrano/BBC News Brasil
‘O mar é o nosso maior altar’
O Mont Serrat, com seu casarão de 1853 e os quatro pavilhões mais recentes, fica num terreno em declive, que leva para um píer com vista para o mar.
No fim das tardes, uma movimentação de macas é sempre notada ali, onde o sol cai sobre as águas, um local de contemplação de pacientes e familiares.
Quando encontrou a reportagem, Ayrton Pinheiro, o paciente que gostava de correr, mas não foi para a “maratona da UTI”, comemorava a existência do local.
“Mais tarde, vão me botar na cadeira de rodas e eu vou ver o pôr do sol”, disse, tomando fôlego para completar: “Que é uma maravilha.”
Agora, Ayrton não está mais desfrutando da vista, mas por um bom motivo. Foi para casa seguir com o tratamento paliativo junto aos familiares.
“Tem um acompanhante que veio para cá com um paciente e que nunca tinha visto o mar na vida”, conta a médica Karoline.
Ela explica que o píer foi construído no lugar de uma capela, já que, embora o hospital seja mantido hoje pelas Obras Sociais Irmã Dulce, uma entidade filantrópica católica que atua como mantenedora de instituições de ensino e hospitais na Bahia, a instituição é laica.
“Não tem correlação com nenhum tipo de religião. Aqui, o mar é o nosso maior altar.”

Crédito, Matheus Leite/BBC News Brasil
Foi bem ali, no píer de frente para o mar, que dona Maria de Carvalho fez um pedido de aniversário. Nem bolo, nem salgadinho. Queria somente tomar água.
“Ela está fazendo 78 anos hoje”, disse a filha, a manicure Bárbara dos Santos Mota, 46, chorando. Depois do AVC, Maria perdeu a visão e ficou com o lado esquerdo paralisado. “Meu desejo, neste aniversário, é que ela melhore.”
Sentada em uma cadeira de rodas, com dificuldade para se comunicar, ela estava rodeada de médicas e enfermeiras que auxiliavam a aniversariante a tomar, gole por gole, um copo de água.
Bárbara estava sorrindo.
“Estou feliz de estar aqui com ela hoje.”
Quinze dias depois, Bárbara se despediu da mãe.
Fonte.:BBC NEWS BRASIL