O Rio de Janeiro registrou, pela primeira vez desde o início da série histórica em 1991, mais moradores saindo do que entrando no estado. Dados do Censo Demográfico divulgados em junho pelo IBGE revelaram um saldo migratório negativo de -165.360 pessoas entre 2017 e 2022.
Segundo especialistas em segurança pública ouvidos pela Gazeta do Povo, o Supremo Tribunal Federal (STF) teve um papel decisivo nessa debandada. Por meio da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635, conhecida como “ADPF das Favelas” – a Corte impôs uma série de restrições às operações policiais nas comunidades do Rio de Janeiro entre junho de 2020 a abril deste ano, o que gerou um impacto significativo na segurança pública do estado.
Embora o relator da ação, ministro Edson Fachin, tenha alegado que a ação da Corte visava proteger direitos fundamentais, especialistas e dados apontam para um fortalecimento sem precedentes do crime organizado enquanto o estado assiste a um fluxo migratório negativo inédito em sua história recente.
Para o coronel da Polícia Militar do Rio de Janeiro (PMERJ) Fábio Cajueiro, ex-comandante de operações, a consequência prática da ADPF 635 é que “os criminosos experimentaram uma espécie de local ideal para criar seu enclave, e a população ordeira ficou à mercê deles”.
Avanço das facções
Durante o julgamento da “ADPF das Favelas”, um grupo de trabalho do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) elaborou um relatório, com base em dados da Polícia Civil, que escancarou o cenário de avanço das facções e milícias.
O documento detalhou como organizações criminosas como o Comando Vermelho (CV), Terceiro Comando Puro (TCP) e Amigos dos Amigos (ADA), além de milícias, aproveitaram as restrições às forças de segurança para expandir seu domínio territorial e modernizar seus arsenais nos últimos anos.
“Dificultar a ida das polícias a quaisquer locais os entrega para o crime, o caos, a desordem, a discriminação, o abandono e o medo”, diz o coronel sobre as restrições impostas pelo STF.
Para o advogado Fabrício Rebelo, coordenador do Centro de Pesquisa em Direito e Segurança (Cepedes), a ADPF 635 foi “um dos maiores golpes na segurança do Rio de Janeiro de que se tem notícia nas últimas décadas, somente comparável à política pública brizolista de que ‘a polícia não sobe o morro’”.
“Seu efeito foi o de enfraquecer diretamente as ações policiais para a repressão das facções e, com isso, elas se fortaleceram, gerando muito mais insegurança”, explica o advogado.
Aumento significativo de confrontos nas comunidades
Segundo o relatório do CNJ, após as restrições impostas pelo STF houve um aumento significativo nos confrontos dentro das comunidades. O Comando Vermelho tem demonstrado uma política expansionista, invadindo domínios de outras facções em várias regiões, como a Grande Jacarepaguá, Grande Penha, Centro do Rio e Grande Bangu, transformando bairros inteiros em zonas de guerra.
A Polícia Civil também detectou que desde 2020 as facções passaram a investir fortemente na construção de barricadas sofisticadas – chegando a criar o cargo de “Gerente de Barricada” – que dificultam o acesso de viaturas policiais, ambulâncias e caminhões de bombeiros.
Além disso, o crime organizado fortaleceu-se com mais armamentos pesados, como fuzis de assalto e metralhadoras, incluindo variantes antiaéreas. A frequência e os locais das sessões de treinamentos com táticas de guerrilha feitos pelos traficantes também aumentaram. Com criminosos mais preparados para o combate, os confrontos entre criminosos e forças policiais tornaram-se mais violentos, resultando em maior risco para os moradores.
Rio de Janeiro tornou-se “resort do crime” e refúgio para criminosos de outros estados
O relatório apontou também a migração de lideranças criminosas de outros estados para o Rio de Janeiro, que passaram a utilizar as comunidades fluminenses como “locais seguros para permanecerem impunes enquanto comandam o crime em seus estados de origem”. A Polícia Civil do Rio de Janeiro identificou que, até o início de 2024, pelo menos 99 criminosos de outros estados foram presos ou morreram em confronto no Rio desde 2021.
Outro levantamento da Polícia Civil, com respostas de 18 estados, apontou que 113 criminosos faccionados de outras unidades da federação, incluindo 12 dos 13 “conselheiros finais” do Comando Vermelho do Pará, estavam escondidos no Rio de Janeiro.
Para Fabrício Rebelo, o enfraquecimento da repressão policial por ordem do STF representa um estímulo para criminosos. “A repressão policial é um dos principais fatores inibitórios ao crime. Quando ele é retirado da equação, os estímulos se tornam maiores e, com isso, a insegurança se multiplica”, diz o especialista.
Em janeiro deste ano, o prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes (PSD), afirmou que as imposições do STF na ADPF 635 criaram uma sensação de “resort do crime”. “Ela se tornou um inibidor da ação policial. Minha impressão é que desde que essa ADPF foi implantada você teve um aumento da ocupação territorial, do domínio territorial. Isso não é impressão, aliás, eu tenho certeza e convicção disso”, declarou Paes.
Ex-moradores do Rio de Janeiro migraram para estados menos violentos
De acordo com o Censo, os moradores que deixaram o Rio de Janeiro tiveram como principais destinos São Paulo (21,4%); Minas Gerais (17,7%); e Espírito Santo (7,3%). Fabrício Rebelo pondera que, apesar da dificuldade de identificar as causas específicas da migração entre os estados, não há dúvida de que a preocupação com segurança se destaca como uma das principais razões.
“Um bom termômetro disso está na outra ponta desse movimento, onde mais têm aportado novos habitantes, que são exatamente os locais mais seguros. Portanto, dá para inferir com grande margem de acerto que a segurança hoje passou, sim, a pesar muito na definição do lugar de residência do brasileiro”, apontou o advogado.
Dados do Atlas da Violência 2025, divulgados em maio deste ano pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), mostram que os três estados apresentaram reduções sistemáticas de homicídios no período de 2013 a 2023.
Fonte. Gazeta do Povo