9:55 PM
7 de julho de 2025

Decisão do STF sobre Marco Civil deixa lojas virtuais vulneráveis

Decisão do STF sobre Marco Civil deixa lojas virtuais vulneráveis

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A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que declarou parcialmente inconstitucional o artigo 19 do Marco Civil da Internet pode ter consequências graves para além da liberdade de expressão, prejudicando também quem vive do comércio digital no Brasil.

Pequenos lojistas virtuais que operam em plataformas como Mercado Livre, Amazon, Shopee ou mesmo redes sociais passam agora a enfrentar um ambiente de maior risco, com chance de perder suas lojas ou anúncios de forma repentina, a partir de simples notificações extrajudiciais.

O STF decidiu que os chamados marketplaces – provedores de aplicação que intermediam a venda de produtos de terceiros – passam a ser regulados diretamente pelo Código de Defesa do Consumidor (CDC). Além disso, é provável que deixe de valer a proteção que exigia uma ordem judicial para que a plataforma fosse obrigada a remover conteúdos.

Esse segundo aspecto não é dado como certo de forma unânime entre juristas consultados pela Gazeta do Povo. Há quem acredite que a derrubada do artigo 19 do Marco Civil – aquele que garantia a necessidade de ordem judicial para a remoção de conteúdo – pode não valer para martketplaces. O que é um ponto pacífico entre os juristas é que a tese do STF está pouco clara nesse ponto e, portanto, abre brecha para surpresas negativas.

Ainda é cedo, segundo os juristas, para afirmar com segurança qual será o alcance prático da decisão. Mas, justamente pela falta de clareza, o cenário atual já é de insegurança para quem depende de marketplaces para vender, porque há dúvidas relevantes sobre os efeitos da tese.

Se a derrubada do artigo 19 também se aplicar aos marketplaces, isso favorece a remoção preventiva de conteúdos das lojas virtuais, o que tenderá a deixar o ambiente digital menos previsível e mais hostil aos pequenos negócios.

Na prática, haveria uma brecha para que lojas fossem removidas com base em notificações privadas, mesmo sem prova de irregularidade. Bastaria que um concorrente, cliente insatisfeito ou qualquer ator malicioso alegasse que determinado anúncio viola uma lei, ou que o produto é falsificado ou fraudulento. O marketplace, temendo ser responsabilizado, tenderia a retirar o conteúdo antes mesmo de investigar.

Para o advogado Daniel Becker, diretor de novas tecnologias do Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem, a decisão do STF é um típico caso de efeito rebote: uma mudança regulatória motivada por uma área acaba gerando impactos relevantes em outro setor não diretamente envolvido no julgamento.

Uma das consequências a se temer, segundo ele, é a das notificações extrajudiciais feitas de forma maliciosa por concorrentes. Os marketplaces, neste caso, precisarão criar estratégias para lidar com isso, criando “fluxos para mediar e solucionar disputas entre notificantes e os detentores dos anúncios que são denunciados”.

“Certamente isso pode ser utilizado para subterfúgios. E isso vai criar uma discussão sobre concorrência desleal. Vai ser um elemento para um seller [vendedor de marketplace] alegar que o outro seller praticou concorrência desleal baseada em notificações frívolas”, comenta.

A nova realidade pode gerar um aumento expressivo no número de notificações, exigindo das grandes plataformas uma estrutura mais robusta para lidar com esse fluxo. O custo operacional tende a subir, e o tratamento automático de denúncias pode se tornar a regra.

“O impacto é grande para todo mundo. Grande proporcionalmente para cada um, dentro da sua própria proporção. Para as grandes plataformas, vai ter um custo mais alto com o manejo dessas notificações, desse fluxo de respostas”, afirma Becker.

Tese do STF não deixa claro se marketplaces serão corresponsáveis por ilícitos de terceiros

Becker observa que o Código de Defesa do Consumidor, por ser uma norma dos anos 1990, não foi desenhado para o ambiente digital e não contempla de forma adequada a complexidade das operações em marketplaces. O CDC surgiu em uma época em que as compras à distância eram feitas por catálogo, e sua lógica não acompanha as transformações do comércio online atual.

Muitos dispositivos do CDC, como o direito de arrependimento, foram concebidos para proteger o consumidor que recebia um produto em casa sem vê-lo antes, mas não consideram a dinâmica e a complexidade dos marketplaces digitais. Plataformas como Amazon e Mercado Livre, que apenas intermediam vendas entre terceiros, operam em um ambiente muito diferente daquele para o qual o CDC foi originalmente estruturado.

Antes da decisão do STF, a jurisprudência era ambígua sobre qual lei deveria ser aplicada para marketplaces. Maria Gabriela Grings, doutora em Direito Processual pela USP e advogada especialista em Direito Digital, ressalta que os tribunais alternavam entre aplicar o Marco Civil ou o CDC dependendo do tipo de atuação da plataforma.

“Nos últimos anos, como se desenvolveram várias espécies de marketplaces, alguns julgados já começavam a diferenciar, dizendo que, por exemplo, se não houvesse intermediação efetiva da plataforma, se ela atuasse apenas como uma plataforma de anúncios, ela não poderia ser responsabilizada, por não ter realizado uma fiscalização prévia sobre a origem dos produtos. Mas também já temos julgados condenando marketplaces quando eles atuam na intermediação do negócio, e não apenas como um portal de classificados, quando, por exemplo, eles interferem na negociação, quando recebem comissão. Eles poderiam ser responsabilizados conforme o grau de atuação”, explica.

Para ela, ainda não está claro se a decisão realmente tira a proteção que o artigo 19 poderia dar aos marketplaces em grande parte dos casos. A tese não esclarece, por exemplo, se eles estão sujeitos também a outras disposições da decisão, como os deveres de notificação, retirada de conteúdo e a responsabilização automática. Isso, para a especialista, pode gerar um cenário de insegurança jurídica, ao menos até que o STF esclareça os pormenores da decisão.

Becker avalia que, com a nova tese que vincula os marketplaces ao CDC de forma mais direta, poderá haver uma ampliação da responsabilidade das plataformas, inclusive com possibilidade de responsabilização solidária.

“O que o CDC pode alterar é justamente trazer a plataforma para a relação de consumo. Porque, anteriormente, o marketplace era responsável e respondia pelo CDC apenas no que tangia à funcionalidade da plataforma. Se, por exemplo, eu usava a Amazon e havia uma questão relacionada aos meios de pagamento da Amazon, alguma falha da plataforma, ela vai ser responsável. Agora, em relação ao defeito do produto, eu só poderia responsabilizar o vendedor. Porque o marketplace não teria nada a ver com aquele produto. A gente vai ver agora como os tribunais vão se comportar com a responsabilidade solidária do CDC”, explica ele.

Se a linha de interpretação for pelo caminho da responsabilidade solidária entre o marketplace e o vendedor, a lógica que antes exigia a intervenção do Judiciário para proteger a liberdade de comércio se inverte: em vez de aguardar a confirmação da irregularidade, a plataforma deverá agir preventivamente para remover o conteúdo.

A tese do STF diz, no ponto 2: “Enquanto não sobrevier nova legislação, o art. 19 do MCI deve ser interpretado de forma que os provedores de aplicação de internet estão sujeitos à responsabilização civil, ressalvada a aplicação das disposições específicas da legislação eleitoral e os atos normativos expedidos pelo TSE.”

Depois, no ponto 7, afirma especificamente sobre os marketplaces: “Os provedores de aplicações de internet que funcionarem como marketplaces respondem civilmente de acordo com o Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90)”.

Venceslau Tavares Costa Filho, professor de Direito Civil da Universidade de Pernambuco, interpreta que a tese da Corte está rejeitando a proposta que tornaria os marketplaces solidariamente responsáveis por qualquer problema nos produtos vendidos em suas plataformas, algo que havia sido cogitado no voto do relator, o ministro Dias Toffoli. Ainda assim, ele reconhece que a forma como o STF mencionou os marketplaces na decisão gera dúvida.

“Não existe uma clareza sobre essa ideia de marketplace e rede social, porque o Marco Civil fala em ‘provedor de aplicação’. Realmente não existe essa clareza na própria lei, no próprio Marco Civil da Internet. E o julgamento do Supremo também não ajudou a esclarecer isso”, afirma.



Fonte. Gazeta do Povo

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