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30 de dezembro de 2025

Disney está cada vez mais distante da classe média – 30/12/2025 – Economia

Disney está cada vez mais distante da classe média – 30/12/2025 – Economia

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Na quarta-feira, 23 de julho, exatamente às 6h55 da manhã, Scarlett Cressel, uma motorista de ônibus escolar de 60 anos, abre o aplicativo da Disney no celular com uma ansiedade contida. Ela vai viajar na semana seguinte para a Disney World com um grupo que inclui a filha, os netos e a mãe. Em cinco minutos, ela terá acesso ao sistema de reservas de atrações da Disney — e espera conseguir três agendamentos para a visita.

Esse momento levou anos para chegar. Cressel pediu cartões-presente da Disney em vários aniversários e Natais, caçou descontos e parcelou a compra dos ingressos. A mãe conseguiu um espaço em um imóvel nas proximidades, e um amigo levará a bagagem do grupo da Virgínia até a Flórida no Auto Train da Amtrak, para evitar as taxas de despacho cobradas pelas companhias aéreas.

Apesar de todo esse planejamento, Cressel entra no sistema de reservas em clara desvantagem. O sistema distribui os lugares “fura-fila” priorizando quem contrata guias, compra passes caros ou se hospeda em hotéis da Disney. Como visitante com orçamento limitado, ela fica perto do fim de uma hierarquia na qual, em muitos dias, milhares de vagas nas principais atrações são reservadas para quem pode gastar mais.

A recém-renovada suíte King Kamehameha, com 173 metros quadrados, no Polynesian Village Resort —com sala de estar em dois níveis, vista para o Castelo da Cinderela e banheira de imersão— pode custar US$ 3.000 por noite (cerca de R$ 16.700).

O sofisticado Geo-82 Bar and Lounge, no Epcot, oferece um pacote com petiscos, champanhe ou coquetéis e mesa com vista para os fogos por US$ 179 por pessoa (R$ 1.000), sem incluir o ingresso ao parque —que é obrigatório.

Um jantar com menu degustação harmonizado no restaurante Victoria & Albert’s, com estrela Michelin, no Grand Floridian, começa em mais de US$ 1.200 para duas pessoas (R$ 6.700). E por aí vai.

Durante a maior parte de sua história, a Disney foi precificada para receber pessoas de todas as faixas de renda, sob o lema “Todo mundo é VIP”. Ao fazer isso, ajudou a criar uma cultura americana compartilhada, oferecendo a mesma experiência a todos os visitantes. A família que chegava em um Cadillac novo enfrentava as mesmas filas, comia a mesma comida e andava nos mesmos brinquedos que a família que vinha em um Chevrolet usado. Naquela época, a grande e próspera classe média americana era o foco das empresas —e estava firmemente no banco do motorista.

Essa classe média encolheu tanto em tamanho quanto em poder de compra —enquanto a riqueza dos mais ricos explodiu— que hoje o mercado mais importante dos Estados Unidos é o dos abastados.

À medida que mais empresas moldam seus produtos para o topo da pirâmide, as experiências que antes compartilhávamos passam a ser cada vez mais diferenciadas pelo quanto podemos pagar.

Os dados ajudam a explicar essa mudança. A ascensão da internet, dos algoritmos, dos smartphones e agora da inteligência artificial deu às empresas ferramentas cada vez mais sofisticadas para atingir a crescente massa de americanos de alta renda.

Como consultor de gestão, trabalhei com dezenas de empresas fazendo exatamente essa transição. Muitas das maiores instituições privadas hoje se concentram em oferecer experiências visivelmente melhores aos privilegiados, deixando o restante da população com duas opções: desistir ou tentar acompanhar.

O ethos da Disney começou a mudar nos anos 1990, quando a empresa ampliou sua oferta de luxo. Mas foi apenas após o choque econômico da pandemia que a companhia parece ter abandonado de vez qualquer pretensão de ser uma instituição voltada à classe média.

Hoje, uma viagem à Disney é “para os 20% mais ricos das famílias americanas —sendo honesto, talvez para os 10% ou até os 5% do topo”, diz Len Testa, cientista da computação e autor do Unofficial Guide, além de criador do site Touring Plans. “A Disney se posiciona como as férias tipicamente americanas. A ironia é que a maioria dos americanos não pode pagar por isso.”

Em nota, a Disney afirmou que seu objetivo é tornar suas experiências acessíveis “ao maior número possível de famílias”. “Nenhuma experiência é igual à outra, e por isso oferecemos uma ampla variedade de opções de ingressos, alimentação e hospedagem, complementadas ao longo do ano por promoções”, disse a empresa.

Cressel cresceu assistindo a The Wonderful World of Disney e às reprises de The Mickey Mouse Club. Sua primeira visita à Disney World foi em 1993, com a avó. “Você passa por baixo daquele letreiro da Walt Disney World, e todas as preocupações desaparecem”, conta.

Em viagens anteriores, já adulta, ela podia usar o FastPass gratuito, criado em 1999, que permitia furar filas se o visitante aceitasse voltar à atração em um horário determinado. Com esses passes, ela conseguia aproveitar quase tudo sem esperas intermináveis. Isso acabou. “Sinto muita falta disso”, diz.

Às 7h da manhã, Cressel entra no aplicativo. Ela e a filha, auxiliar de sala em educação especial, ganham juntas quase US$ 80 mil por ano —cerca de R$ 446 mil, praticamente a renda mediana das famílias americanas.

Para essa viagem, já gastaram mais de US$ 2.300 em ingressos (R$ 12.800) —mais do que uma família média gasta em viagens ao longo de um ano inteiro, segundo análise de Testa com dados do Bureau of Labor Statistics. Por isso, Cressel decide reservar apenas uma atração de “Categoria 1”: Tiana’s Bayou Adventure. Essa atração, somada a duas menores, custará mais US$ 160 (R$ 890).

Adicionar um novo cartão de crédito leva sete minutos preciosos. Ela consegue acesso rápido à atração apenas para as 15h40. Conclui que o grupo provavelmente enfrentará filas muito longas nas principais atrações pelo resto do dia.

Ainda assim, ela mal pode esperar para levar os netos à Disney World pela primeira vez e “ver tudo pelos olhos deles”.

A Disney nunca foi barata. Um dia na Disneyland original, na Califórnia, com ingressos, algumas atrações e comida para quatro pessoas, custava cerca de US$ 30 em 1955 —quando a renda familiar mediana era de US$ 4.400. Era muito dinheiro. Mas US$ 30 —algo como o custo de uma semana de supermercado— ainda era alcançável para boa parte da classe média em rápida expansão.

Nos primeiros anos, os preços subiram tão lentamente que, em alguns períodos, ficaram mais baratos em termos reais. Um manual interno dos anos 1950 cita Walt Disney dizendo: “Estendemos o tapete vermelho para a família Jones, de Joliet, da mesma forma que faríamos (com alguns retoques) para os Eisenhower, de Palm Springs.”

Versões do lema “todo mundo é VIP” permaneceram nos treinamentos internos por décadas após sua morte, em 1966. E fazia sentido econômico: agradar a todos dava lucro. Isso começou a mudar nos anos 1990.

Michael Eisner, então CEO, criou uma série de produtos voltados aos mais ricos —hotéis mais sofisticados, cruzeiros, restaurantes refinados. Mas rejeitou a ideia de cobrar para furar filas, segundo o historiador da Disney Aaron Goldberg. Quando a Universal introduziu o modelo pago, no início dos anos 2000, a Disney resistiu, talvez temendo reação de seus fãs.

Mas, em meados dos anos 2000, o crescimento do número de ricos tornou-se impossível de ignorar. Em 1992, havia 88 mil lares com patrimônio superior a US$ 20 milhões (em valores de 2022). Em 2022, eram 644 mil. Aqueles dispostos a pagar quase qualquer preço por férias tornaram-se um mercado de massa próprio.

Ao mesmo tempo, aplicativos transformaram a relação das empresas com seus clientes. Lançado em 2012, o app My Disney Experience facilitou o acesso a tempos de espera, shows, restaurantes. Em troca, a Disney passou a saber exatamente onde os visitantes iam, o que compravam e quanto gastavam. Hoje, boa parte de um dia no parque é passada olhando o aplicativo —visitantes experientes levam bateria externa.

Mais do que nunca, empresas como a Disney sabem exatamente quem paga o quê por qual experiência. “A Disney é uma empresa de análise de dados que, por acaso, faz filmes e parques”, diz Testa.

Ao longo de três décadas como consultor, vi setor após setor concluir que seus clientes mais ricos não gastam apenas mais —gastam múltiplos a mais.

Muitas empresas perceberam que, sem focar nesse grupo, não conseguiriam pagar bons salários, remunerar acionistas e atrair capital. Nos anos 1970 e antes, o motor do lucro era a classe média. Nos anos 1990, ficou claro que o dinheiro estava no topo.

A pandemia foi o golpe final. Fechamentos e a guerra do streaming causaram perdas bilionárias. Em outubro de 2021, a Disney acabou com o FastPass gratuito e passou a cobrar US$ 15 por reserva (R$ 84). Em três anos, os preços e opções se multiplicaram. Hospedar-se em hotéis da Disney passou a garantir vantagens adicionais.

O resultado é um sistema complexo, em múltiplos níveis, que entrega grande parte dos melhores horários a quem paga caro —seja por guias privados, passes premium ou hotéis da própria empresa.

Segundo dados vazados em um ataque hacker, a Disney faturou US$ 724 milhões (R$ 4 bilhões) com produtos “fura-fila” entre o fim de 2021 e junho de 2024. Desde então, lançou o Lightning Lane Premier Pass, que pode facilmente ultrapassar US$ 400 por dia (R$ 2.200).

Voltei à Disney World em abril para ver o sistema em ação. Muito ali ainda parece classe média —shorts, camisetas, informalidade. Mas a canção “When You Wish Upon a Star”, com o verso “não importa quem você seja”, hoje soa como nostalgia encenada. O verdadeiro parque é aquele em que se paga para subir de nível.

Apesar de tudo, Cressel diz que se divertiu. Alguns vestígios do velho ideal permanecem —como encontrar personagens sem cobrança extra. Quando um dos netos quis tirar foto sozinho com a Elsa, “me deu vontade de chorar”.

Ela estima que a semana em Orlando custou US$ 8.000 (R$ 44.500) —cerca de 15% da renda anual líquida da família. Ainda assim, já pensa em voltar. Da próxima vez, promete gastar mais.

“Toda magia tem um preço”, diz.



Fonte.:Folha de S.Paulo

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