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28 de dezembro de 2025

Em 2026, o que ainda poderemos saber, duvidar, desejar? – 28/12/2025 – Marcelo Leite

Em 2026, o que ainda poderemos saber, duvidar, desejar? – 28/12/2025 – Marcelo Leite

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“O passado, poderoso, golpeia com força o presente, assim como oceanos, vento e chuva contra falésias de calcário.” A frase de Ian McEwan no romance “What We Can Know” (o que podemos saber) pode se aplicar com perfeição a um de seus livros menos memoráveis –para não dizer irritante–, “Solar”, a incursão de 2010 no gênero cli-fi, sobre mudanças climáticas.

A nova obra, sendo honesto, não se encaixa bem na subclasse de ficção científica para tempos de aquecimento global, em que brilham “Liberdade”, de Jonathan Franzen, ou “Flight Behavior” (comportamento de fuga, ou voo), de Barbara Kingsolver. Mas o desastre climático comparece em “What…” como elemento dramático central do enredo que se passa nos anos 2119-22.

O professor de literatura Thomas Metcalfe, no século 22, tem obsessão pelo poema desaparecido “Uma Corona para Vivien”, de Francis Blundy. Só persiste no futuro registro de que a poesia fora lida por ele em 2014, no aniversário da esposa. Uma composição ambiciosa que combina 14 sonetos com um 15º a reunir as primeiras linhas dos anteriores para formar a derradeira sequência de 14 versos.

Na primeira parte da história, Metcalfe cisma de encontrar a corona desaparecida, que Blundy havia escrito à mão num extravagante pergaminho. Pesquisa muito dificultada por viagens custosas num Reino Unido dividido ao meio pela inundação ocorrida no período da década de 2030 que ficaria conhecido como Desarranjo.

“O termo sugeria não apenas loucura, mas também a fúria vingativa dos sistemas climáticos”, escreve McEwan (tradução minha com mãozinha de IA). “Havia ainda uma alusão à responsabilidade coletiva pela nossa tendência cognitiva inata a priorizar o conforto imediato em detrimento dos benefícios de longo prazo.”

“A própria humanidade estava desvairada. O termo não abrangia o Desamparo Metafísico relacionado –o colapso da crença no futuro ou, mais especificamente, o declínio da fé no progresso.”


Palavras duras para nós, cúmplices de 30 COPs atoladas na impotência. McEwan extravasa crueldade na caracterização de Blundy, gênio da poesia que constrange convidados de Vivien deblaterando contra a noção de aquecimento global, repetindo falácias que no ano 2014 da festa já careciam de base científica.

Não se tratará aqui da segunda parte do romance, centrada numa reviravolta magistral da qual não darei spoiler (e também porque não guarda relação com mudanças climáticas). A primeira metade interessa mais porque soa como mea-culpa de McEwan, ou tentativa de reparação, por ter ridicularizado pesquisadores do clima, em “Solar”, na figura do detestável físico e nobelista Michael Beard.

De minha parte, está perdoado. “What…” é um dos melhores livros que li em 2025, ao lado de “A Trama das Árvores”, de Richard Powers, “Oração para Desaparecer”, de Socorro Acioli, “Songlines”, de Bruce Chatwin, e “Batida Só”, de Giovana Madalosso.

McEwan faz grande literatura. Com um enredo envolvente, nos obriga a refletir sobre a precariedade de narrativas para tornar menos inaceitável o absurdo do presente que ajudamos a construir –aquele em que marés após marés de convicções e debates equivocados solapam o penhasco desde o qual contemplamos o horizonte.


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Fonte.:Folha de S.Paulo

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