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25 de outubro de 2025

Entidades civis começam a criticar excessos do STF

Entidades civis começam a criticar excessos do STF

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Apesar de uma forma ainda tímida, movimentos da sociedade civil organizada têm se manifestado sobre os excessos de poderes do Supremo Tribunal Federal (STF) e das decisões monocráticas de magistrados, denominando-as, inclusive, de “ministrocracia”, que afetam a política, a economia e a democracia no Brasil.

Nas últimas semanas, juristas ligados à Fundação Fernando Henrique Cardoso e a Ordem dos Advogados do Brasil – Seção Paraná (OAB-PR) passaram a se manifestar publicamente contra o que classificam como excessos e desequilíbrios na atuação do Supremo.

O Instituto Sivis, a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), a Federação das Indústrias do Estado do Rio Grande do Sul (Fierg), além de entidades empresariais e comerciais engrossaram as fileiras da sociedade civil organizada que cobra contenção do STF.

Entre as demandas estão o reestabelecimento da chamada colegialidade, ou seja, que as decisões sejam tomadas por um grupo de ministros e não por apenas um magistrado. Isso impede abusos e funciona como dissuasão para cometimento de eventuais irregularidades. As entidades pedem ainda transparência e o respeito ao devido processo legal.

A Gazeta do Povo procurou o Supremo para um posicionamento sobre as cartas e manifestações públicas de entidades e instituições, mas não obteve retorno até a publicação desta reportagem.

Em documento divulgado no início de outubro, os juristas da Fundação FHC propuseram a adoção de um código de conduta para os ministros do STF, com regras sobre imparcialidade, conflitos de interesse, manifestações públicas e quarentena após o cargo.

Em junho do ano passado, durante o Fórum Jurídico de Lisboa, organizado por uma instituição fundada pelo ministro Gilmar Mendes, o ministro Alexandre de Moraes afirmou que não vê “a mínima necessidade” de criação de um código de conduta para os magistrados do STF e, em entrevista à Folha, argumentou que os integrantes da Corte já se orientam pela ética estabelecida na Constituição e que, portanto, um instrumento adicional seria desnecessário.

Para o constitucionalista André Marsiglia, mesmo que o STF acate a sugestão para um código de conduta, o que ele avalia como pouco provável, haveria o risco, em teoria, de a própria Corte determinar sua autorregulação com o estabelecimento interno de possíveis exceções. “Se o STF define suas próprias regras de conduta, pode criar critérios ou exceções que beneficiem determinados casos, minimizando a aplicação plena de tais normas”, reforça.

A doutora em Direito Público Clarisse Andrade alerta para o risco de baixo grau de fiscalização externa e a necessidade de a medida vir acompanhada de mecanismos claros de fiscalização. “Sem instrumentos externos fortes de controle ou transparência, como participação de órgãos independentes ou supervisão legislativa, o impacto prático do código de conduta do STF ficaria aquém das expectativas públicas. A grande questão é: quem fiscaliza os que fiscalizam?”.

O texto assinado pelos juristas da Fundação FHC vai além: também defende a restrição de decisões monocráticas e o fim de julgamentos complexos em ambiente virtual, em nome da previsibilidade e da legitimidade institucional do tribunal.

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Excessos nos julgamentos dos condenados pelo 8 de janeiro

A OAB do Paraná lançou no fim de agosto um manifesto resultante de um congresso sobre o respeito ao processo legal no STF, em que critica a condução dos julgamentos dos réus pelos atos de 8 de janeiro de 2023. A entidade questiona as penas consideradas desproporcionais, o uso ampliado de conexões processuais e a interpretação, na análise de caso a caso, de competências, apontando risco de violação ao princípio da individualização da pena.

O constitucionalista Alessandro Chiarottino avalia que é pouco provável que o STF se submeta a pressões externas relacionadas à regulação de sua própria conduta. Para ele, no entanto, a tendência é de que a insatisfação da sociedade civil diante das decisões monocráticas da Corte continue crescendo, ampliando o descontentamento popular em relação ao tribunal, mesmo que isso ocorra em um processo lento e gradativo.

A carta publicada pela OAB-PR reconhece a importância do Supremo para a defesa da democracia, mas alerta que sua legitimidade depende do cumprimento rigoroso das normas legais e constitucionais. O documento ainda pede regras claras para a participação de magistrados em eventos patrocinados, além de maior vigilância quanto a benefícios e potenciais conflitos de interesse envolvendo familiares de juízes.

Para a Ordem, “defender a democracia não é endossar todas as práticas do Supremo, mas exercer a crítica responsável e vigilante, para que ele atue dentro dos limites constitucionais”.

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Marco Civil da Internet e a afronta do STF a padrões internacionais de liberdade de expressão

Em manifestação publicada em junho deste ano, outro a criticar decisões do STF foi o Instituto Sivis. A entidade alertou que a decisão de rever a interpretação do artigo 19 do Marco Civil da Internet — que condiciona a responsabilização das plataformas digitais à existência de ordem judicial prévia para remoção de conteúdos ilegais — contraria parâmetros internacionais sobre restrições à liberdade de expressão. Ou seja, o STF determinou que redes socias podem ser responsabilizadas por publicações de terceiros, o que pode levar a uma derrubada automatizada e em massa de mensagens legítimas pelas empresas para evitar multas.

O Instituto destacou que o Brasil é signatário de tratados como o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, os quais determinam que qualquer limitação à liberdade de expressão deve estar claramente prevista em lei, ser necessária para proteger fins legítimos e ser proporcional ao objetivo.

Segundo o Sivis, ao afastar a literalidade do artigo 19 sem aprovação de nova legislação pelo Congresso Nacional, o STF cria uma regra de responsabilização sem base legal, o que fere o princípio da legalidade tanto no plano interno quanto internacional.

A nota também relembra precedentes da Corte Interamericana de Direitos Humanos, os quais reforçam a necessidade de clareza e previsibilidade das normas limitantes à liberdade de expressão. Para o Instituto, embora as plataformas digitais tenham papel relevante na mediação de conteúdos, a criação de restrições sem respaldo legal claro pode gerar o chamado chilling effect — isto é, a remoção excessiva de conteúdos legítimos por medo de punições —, enfraquecendo o pluralismo e o debate democrático.

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Entidades empresariais reagem e defendem a liberdade de expressão

Outros exemplos de contestação de ações do STF vieram de entidades empresariais e líderes do setor produtivo. Nos últimos meses, os grupos têm manifestado preocupação com decisões da Corte, sobretudo as monocráticas.

No fim de agosto, alguns desses grupos saíram em defesa da liberdade de expressão e criticaram uma decisão do ministro Alexandre de Moraes que autorizou uma operação da Polícia Federal, em 2022, contra empresários após a divulgação de mensagens privadas. Nelas, segundo o STF, eles discutiam uma suposta organização de golpe de Estado.

O caso foi tornado público por Eduardo Tagliaferro, ex-assessor de Moraes quando ele presidia o Tribunal Superior Eleitoral (TSE). O perito divulgou documentos alertando que uma operação da PF determinada por Moraes se baseou unicamente em uma reportagem jornalística, sem outras provas, e que materiais que embasaram a operação foram produzidos com datas retroativas para justificar a ação.

O doutor em Direito pela USP e comentarista político Luiz Augusto Módolo lembra do episódio com receio e diz que empresários foram investigados por mensagens trocadas em grupos de apoio ao ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) em que reforçaram o medo de perseguição do Supremo e “paralisaram ainda mais” o setor. “Desde então, quase não se viam iniciativas vindas da direita organizada, que praticamente não existe como movimento estruturado”, opina.

Mas ele reconhece que a notas públicas de entidades têm ressaltado o que classifica como “medidas desproporcionais e incompatíveis com o Estado Democrático de Direito”.

Foi o exemplo da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp). A entidade destacou que a defesa do Estado de Direito inclui, necessariamente, a liberdade de opinião, de expressão e de imprensa, valores que considera “inegociáveis”.

Já a Federação das Indústrias do Estado do Rio Grande do Sul (Fiergs) expressou “grave preocupação” com a decisão do ministro sobre a operação de 2022 e afirmou que os empresários investigados “antes de tudo são cidadãos e eleitores”, avaliando a operação como “incompatível com o princípio da razoabilidade”.

A Federação de Entidades Empresariais do Rio Grande do Sul (Federasul) pediu que os fundamentos da decisão do STF sejam tornados públicos, reforçando sua defesa da livre manifestação do pensamento e do regular funcionamento das instituições democráticas.

Somente no Sul do país, cerca de 120 entidades e líderes empresariais, entre elas a Câmara de Dirigentes Lojistas (CDL) de Florianópolis e o Instituto de Estudos Empresariais (IEE), divulgaram um manifesto em defesa do direito à livre opinião.

O texto criticou a operação determinada pelo ministro do STF, que incluiu buscas, apreensões e quebras de sigilo, e afirmou que o empresariado vem sendo “demonizado por narrativas ideológicas” que desconsideram seu papel no desenvolvimento econômico.

O IEE ressaltou que a decisão de Moraes representa “violação ao sigilo bancário e telefônico de cidadãos” e que medidas dessa natureza “ferem princípios constitucionais básicos”.

Na Bahia, o Fórum Empresarial do Estado, que reúne federações da indústria, do comércio, da agricultura e do transporte, classificou a medida como preocupante e alertou para o risco de acirramento institucional em pleno período pré-eleitoral. As entidades sustentaram que críticas ao sistema eleitoral ou ao próprio STF, quando feitas em conversas privadas, não configuram crime, mas o exercício legítimo da liberdade de expressão.

A instituição também questionou o fato de a decisão atingir pessoas sem foro privilegiado e apontou desproporcionalidade nas medidas de bloqueio de bens e de acesso a redes sociais.

A Confederação das Associações Comerciais e Empresariais do Brasil (CACB) afirmou que o sistema vê com perplexidade o uso de medidas coercitivas, como bloqueios de contas bancárias, sem demonstração de ameaça real à democracia.

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O desmonte da Lava Jato, desconfiança da sociedade e insegurança jurídica

Ao longo do ano, manifestações contra medidas da Corte vêm ganhando corpo. No início de 2025, a Organização dos Estados Americanos (OEA) alertou que a anulação das provas da Odebrecht e a renegociação de acordos de leniência no Brasil, relacionados à Operação Lava Jato, podem comprometer a confiança pública e gerar insegurança jurídica.

O alerta constou em relatório divulgado pela Comissão de Peritos do Mecanismo de Acompanhamento da Implementação da Convenção Interamericana contra a Corrupção, que faz críticas a decisões do STF, especialmente, na ocasião, às do ministro Dias Toffoli, responsável por invalidar provas do acordo da Odebrecht — hoje Novonor — e suspender multas impostas à empresa.

Segundo o documento, tais medidas criam incerteza quanto ao cumprimento dos acordos e enfraquecem o combate à corrupção.

O diretor da Transparência Internacional, Bruno Brandão, afirmou que as anulações podem enterrar provas cruciais sobre subornos confessados em diversos países, transformando o Brasil em um “cemitério de provas sobre corrupção transnacional”.

O relatório recomenda que o país revisite os acordos de leniência, amplie a transparência e tipifique o enriquecimento ilícito como crime, reforçando críticas anteriores da Transparência Internacional sobre o retrocesso nas políticas anticorrupção e o impacto das decisões judiciais na credibilidade do STF.

“As manifestações, que se espalharam por diferentes estados e setores, refletem um movimento crescente de juristas e empresários, do setor produtivo, em defesa da liberdade de expressão e de limites à atuação do Supremo, em meio à tensão institucional que marca o cenário político brasileiro”, alerta o cientista político Gustavo Alves.

Luiz Augusto Módolo afirma que são positivas as manifestações de entidades que defendem a colegialidade nas decisões do Supremo, mas considera que elas ainda são tímidas. Para ele, a Corte se transformou em “11 ilhas dispersas”, nas quais cada ministro decide isoladamente, sem levar os casos ao plenário, o que compromete a previsibilidade e a coerência institucional.

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Manifestações poderiam ser mais intensas, mas sociedade civil e organizações têm receio do STF

O constitucionalista André Marsiglia avalia que o movimento ainda poderia ser ampliado, mas reflete um receio generalizado de retaliações e uma crise de segurança jurídica no país.

Segundo Marsiglia, esse temor não se restringe às organizações, que, aos poucos, começam a se manifestar publicamente, mas atinge também advogados, empresários, magistrados e membros do Ministério Público. “Há hoje um medo real de que críticas ao STF possam gerar algum tipo de retaliação”, afirma o jurista.

Para ele, o problema central não está apenas no conteúdo das decisões, mas na forma como o Supremo tem atuado, com a proliferação de decisões individuais que, em sua visão, contrariam o princípio constitucional da colegialidade. “A Constituição determinou que 11 ministros decidam juntos as questões de constitucionalidade. Quando um só fala pelo Tribunal, há uma perversão desse princípio”, argumenta.

Marsiglia também demonstra ceticismo quanto à proposta de criação de um código de conduta para ministros, medida defendida por parte das entidades como forma de conter abusos. “Um código de conduta não resolverá o problema, porque o que vemos é o próprio descumprimento da lei. Se não há respeito à Constituição, dificilmente haverá a um instrumento moral, que nem sequer tem poder punitivo”, observa.

Para o constitucionalista, antes de qualquer mudança normativa ou reforma institucional, o país precisa promover um debate público amplo sobre o papel do STF e os limites de sua atuação.

“Somente um convencimento moral e político, nascido do debate democrático, pode levar a Corte a reconhecer a necessidade de recuo. Nenhuma medida legal ou código de conduta surtirá efeito sem essa transformação cultural”, avalia.

Módolo avalia que o movimento precisa ganhar corpo e esse pode ser um trabalho de longo prazo. Ele alerta que o STF se consolidou como uma instituição “que decide todos os aspectos da vida nacional de forma final e irrevogável”, o que gera um clima de temor e autocensura entre empresários e entidades civis.

Segundo ele, o empresariado brasileiro “sempre teve receio de se contrapor ao STF” e teme ser rotulado pela imprensa como “extrema direita”, o que contribui para a ausência de movimentos mais firmes de contestação.

Chiarottino observa ainda que, embora a classe jurídica tivesse condições de exercer uma pressão efetiva por mudanças internas, há pouca disposição nesse sentido. “Quem poderia exercer uma pressão eficaz contra esses problemas do tribunal seria a classe jurídica, mas tudo indica que ela não tenha nenhuma vontade de fazê-lo”, afirmou.

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Fonte. Gazeta do Povo

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