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- Author, Julia Braun
- Role, BBC News Brasil
Essa é a visão de Michael Miklaucic, ex-pesquisador da Universidade de Defesa Nacional, ligada ao Departamento de Estado dos Estados Unidos, que hoje coordena a Cátedra Oswaldo Aranha de Segurança e Defesa, um núcleo de estudos da Universidade Federal de São Paulo (USP) dedicado à análise sobre segurança pública.
“O Estado está ameaçado e em risco”, diz Miklaucic sobre o combate ao crime organizado no Brasil.
“Contanto que se consiga equilibrar os direitos dos cidadãos com a luta contra o crime organizado transnacional, todos os elementos da força nacional devem ser aplicados.”
Para Miklaucic, uma das maiores vantagens de equiparar as facções e milícias a grupos terroristas é proporcionar maior liberdade às forças de segurança para agirem contra os criminosos. “Mas há também aspectos negativos, e esse é um equilíbrio muito delicado”, pondera.
Críticos, porém, argumentam que ampliar o conceito de terrorismo no Brasil pode abrir as portas para intervenções estrangeiras e até sanções econômicas.
Miklaucic afirma que a medida poderia, de fato, aumentar as chances de envolvimentos dos Estados Unidos na luta brasileira contra o crime organizado, como ocorre neste momento na América Latina, onde o presidente Donald Trump vem expandindo a presença militar americana em águas internacionais e prometendo o início de operações em terra em breve.
Mas, segundo o professor, que no passado serviu como subsecretário do Departamento de Estado para Assuntos de Crimes de Guerra, qualquer ingerência americana, seja por meio de sanções ou forças de segurança, seria um erro.
“Não devemos permitir que a redesignação de organizações criminosas transnacionais como organizações terroristas se torne um pomo da discórdia entre nós”, diz Miklaucic.
“Ou seja, existem riscos envolvidos, mas o país está ameaçado e, para mitigar a situação, é preciso arriscar.”

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Em entrevista à BBC News Brasil, Miklaucic também comentou o PL Antifacção atualmente em discussão no Senado. O projeto propõe, entre outras coisas, a ampliação das penas para crimes cometidos por facções classificadas como “ultraviolentas”.
“O ataque à soberania e o custo humano são graves, portanto as penalidades correspondentes têm que ser graves. Mas elas têm que ser administradas de forma equitativa em todo o espectro da criminalidade, não apenas aos criminosos de baixo nível nas ruas, mas também aos chefões.”
“É possível, mas eu não acho provável – acredito que ainda há muita encenação e posicionamento em curso.”
BBC News Brasil – A segurança pública e o combate às facções criminosas estão no centro do debate público no Brasil atualmente. Na sua opinião, quais são as lacunas mais significativas na estratégia brasileira?
Michael Miklaucic – O Brasil é um país continental com uma diversidade dramática, seja ela tipográfica, étnica, linguística, cultural, etc. Assim, à sua maneira, a luta do Brasil contra o crime organizado transnacional é diferente de qualquer outra que o mundo já tenha visto. Suas lacunas existem porque não há precedentes a partir dos quais se possa trabalhar.
No caso do Brasil, acho que a maior lacuna não é exclusivamente brasileira. É a lacuna entre vários países diferentes, ligada à necessidade de cooperação transnacional e assistência jurídica além das fronteiras, que está atrasada em relação à capacidade das organizações criminosas transnacionais de operar dessa forma.
Além disso, sendo um país tão grande com tantas jurisdições diferentes — municipais, provinciais e federais —, existem lacunas entre as diversas unidades de inteligência e as unidades de aplicação da lei. Essas lacunas estão sendo preenchidas de forma gradual e lenta, mas é por elas que o crime organizado transnacional consegue se infiltrar.

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BBC News Brasil – Como o Brasil pode proteger mais suas fronteiras e combater de forma mais eficaz os braços internacionais de suas facções criminosas e suas conexões com organizações criminosas estrangeiras?
Miklaucic – A primeira coisa é entrar em contato com esses outros países e estabelecer o diálogo mais honesto possível. Isso já está acontecendo, ainda que de forma limitada. Mas é preciso encontrar maneiras de colaborar, apesar as estruturas legais diferentes. As leis variam de país para país, e essas diferenças são os túneis pelos quais os criminosos transnacionais organizados se infiltram para operar impunemente além das fronteiras.
BBC News Brasil – Na semana passada, a Câmara aprovou um novo projeto de lei sobre segurança pública que agora será analisado pelo Senado. Um debate levantado pelo projeto diz respeito a um ponto que o senhor mencionou: a atuação policial contra facções criminosas e como as responsabilidades devem ser divididas entre as forças estaduais e federais. Em sua opinião, é melhor investir em um trabalho mais localizado, em nível estadual, ou garantir que a Polícia Federal tenha amplo acesso às investigações?
Miklaucic – Essa é uma escolha desnecessária. É fundamental que o investimento seja feito em ambas as pontas do espectro, e a chave é a comunicação entre essas duas pontas.
Mas é um erro decidir trabalhar no âmbito local em detrimento do federal. É preciso colaboração central entre os vários segmentos, caso contrário, os agentes criminosos simplesmente se deslocam. Você resolve o problema no Rio de Janeiro, mas eles se mudam para São Paulo. Se você resolve o problema em São Paulo, eles simplesmente se mudam para a Amazônia. Isso não vai funcionar, só vai empurrar o problema pelo país.
É preciso haver investimento em ambos os níveis, e isso exige que a liderança nacional, reconheça que esta é uma prioridade de segurança nacional. Já existem territórios dentro do Brasil que estão sob controle do crime, e isso é um ataque à soberania nacional.
BBC News Brasil – O projeto de lei em discussão no Congresso também propõe implementar penas mais severas para os envolvidos no crime organizado. É uma solução eficaz?
Miklaucic – Tem que ser assim. O ataque à soberania e o custo humano são graves, portanto as penalidades correspondentes têm que ser graves. Mas elas têm que ser administradas de forma equitativa em todo o espectro da criminalidade, não apenas aos criminosos de baixo nível nas ruas, mas também aos chefões. E, para ser bem honesto, também àqueles no governo que facilitam e permitem, por meio da corrupção, o sucesso do crime organizado transnacional.
Também devem ser impostas penalidades aos profissionais na zona cinzenta, como advogados, contadores e especialistas em informática e tecnologia da informação que são empregados e facilitam o crime organizado transnacional. Lembre-se de que os lucros ilícitos do crime organizado transnacional têm que ser lavados de alguma forma.
Em muitos países, existe uma regra, por exemplo, para banqueiros, de que eles têm que conhecer seus clientes. Isso também deveria valer para advogados, contadores e todas as pessoas que trabalham a serviço de organizações criminosas transnacionais, que, em última análise, são grandes empresas.

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BBC News Brasil – E há algo mais que, na sua opinião, o Brasil possa fazer para melhorar o rastreamento e barrar os fluxos financeiros ilícitos que financiam essas organizações?
Miklaucic – O Brasil já faz bastante, na verdade. É um dos países que reconheceu a gravidade do desafio e está fazendo muito para combatê-lo. Mas o campo da educação pública, tanto para o público em geral quanto para funcionários públicos, é uma área realmente crucial em que o Brasil poderia fazer mais.
A educação no setor público deve envolver funcionários do governo municipal, do governo estadual e também de toda a força federal. E não se trata apenas de fazer um curso uma vez na vida — em alguns países os funcionários são obrigados a fazer cursos anuais de atualização sobre padrões éticos, requisitos legais e requisitos de relatórios.
E do outro lado está a conscientização pública: exposição do crime, do dano que está sendo causado, do dano social, do dano à soberania. A educação pública é sempre um elemento crítico na resolução ou abordagem de qualquer tipo de problema de segurança – ou, aliás, qualquer tipo de problema nacional.
BBC News Brasil – Outro tema em discussão no Brasil é a possibilidade de classificar facções criminosas brasileiras como organizações narcoterroristas. Em sua opinião, qual seria o impacto de tal medida?
Miklaucic – Essa é uma questão bastante controversa nesse momento, também para os Estados Unidos. A vantagem é que proporciona maior liberdade às forças policiais e outros serviços de segurança para agirem contra essas organizações. Mas há também aspectos negativos, e esse é um equilíbrio muito delicado.
Não tenho certeza se já encontramos esse equilíbrio nos Estados Unidos. E o Brasil e outros países do Hemisfério tentaram usar as Forças Armadas como ferramenta para combater o crime organizado transnacional ou o tráfico de drogas em favelas e outros territórios, e também não obtiveram sucesso em alguns casos. Portanto, acho que é preciso ter cuidado. As lições do passado precisam ser incorporadas.
Mas, em última análise, acho que o Estado está ameaçado e em risco. Contanto que se consiga equilibrar os direitos dos cidadãos com a luta contra o crime organizado transnacional, todos os elementos da força nacional devem ser aplicados. Ou seja, existem riscos envolvidos, mas o país está ameaçado e, para mitigar a situação, é preciso arriscar.
BBC News Brasil – Alguns temem que possa abrir caminho para intervenções estrangeiras, dos Estados Unidos, por exemplo, no Brasil, ou até mesmo aumentar o risco de sanções econômicas. Esse é um dos riscos?
Miklaucic – Vamos separar as sanções econômicas da intervenção das forças americanas. Acredito que as forças americanas não deveriam se envolver na luta do Brasil contra o crime organizado transnacional, a menos que sejam convidadas pelas autoridades brasileiras.
Sobre as sanções econômicas, diria novamente: não devemos nos envolver em uma guerra econômica com o Brasil. Se as ferramentas financeiras puderem ser usadas em conjunto para combater o crime organizado transnacional, esse é o caminho a seguir. Mas não devemos usar a economia como arma contra autoridades estatais que já estão profundamente comprometidas com a luta contra o crime organizado transnacional.

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BBC Brasil – Mas, na prática, estaríamos mais sujeitos a ambos os cenários se passássemos a tratar essas organizações como terroristas?
Miklaucic – Existe um risco, mas acredito que seja um risco calculado. Não devemos permitir que a redesignação de organizações criminosas transnacionais como organizações terroristas se torne um pomo da discórdia entre nós. Este é um desafio compartilhado. Ambos estamos em guerra. O Brasil faz parte do núcleo de Estados democráticos liberais, estados de direito, assim como os Estados Unidos. E devemos lutar juntos nesta guerra.
BBC Brasil – O controle territorial exercido por facções criminosas em áreas urbanas é um fenômeno extremamente complexo no Brasil. Como isso deve moldar ou alterar a resposta do Estado?
Miklaucic – Geralmente, os grupos criminosos conseguem exercer controle territorial porque as autoridades estatais não fazem isso de forma eficaz. Em outras palavras, as organizações criminosas prosperam no vácuo. Portanto, a única solução para esse problema é o controle territorial efetivo por parte do Estado. Essa é a única maneira de manter os criminosos afastados.
BBC Brasil – Operações policiais como a realizada no final de outubro contra o CV no Rio de Janeiro são a melhor abordagem para isso?
Miklaucic – Eu não estava no Brasil quando tudo aconteceu e não acompanhei de perto. Mas eu diria que aprendemos que o encarceramento em massa não é uma solução eficaz porque simplesmente superlota as prisões e as transforma em universidades criminosas. E aprendemos que a pena capital em massa, a decapitação das lideranças, não é a solução, porque simplesmente abre caminho para que oficiais subalternos subam na hierarquia dessas organizações criminosas.
Temos que aprender a não cometer os mesmos erros que foram cometidos em outros lugares ou mesmo no Brasil e seguir em frente rumo a algo diferente. Na ciência, dizem que continuar fazendo o mesmo esperando um resultado diferente é um sinal de irracionalidade. E o mesmo se aplica à governança: tentar as mesmas coisas esperando um resultado diferente não é uma abordagem racional para governar.
BBC Brasil – Estamos também testemunhando um momento de tensão no Caribe, com o aumento da presença militar dos EUA ao redor da Venezuela e das ameaças de Donald Trump. Em sua opinião, essa tensão poderia escalar para um conflito direto?
Miklaucic – Se aprendemos alguma coisa sobre o presidente Trump é que ele é imprevisível e toma decisões de uma maneira muito peculiar. Mesmo quando eu estava no governo, durante o primeiro mandato de Trump, não sabíamos, dia após dia, quais decisões ele tomaria. Mas ele definitivamente indicou que está disposto a usar a força. Então, sim, é possível.
Mas eu não acho provável. Acredito que ainda há muita encenação e posicionamento em curso. É uma situação um tanto performática no momento: estamos deixando bem claro que temos a capacidade de infligir danos e sofrimento significativos ao governo da Venezuela, na esperança de que o comportamento venezuelano mude sem que cheguemos ao ponto de um conflito armado. Não conheço ninguém nas Forças Armadas dos EUA que queira se envolver em um conflito armado em terra na Venezuela.
BBC Brasil – Donald Trump afirma que seu objetivo é combater o tráfico de drogas, mas alguns acreditam que essas ações são ilegais e argumentam que sua verdadeira intenção é uma mudança de regime. Qual a sua visão?
Miklaucic – Há uma ambiguidade legal muito, muito significativa no que está acontecendo agora. E muitas pessoas lamentavelmente foram colocadas em uma posição difícil nesse território ambíguo. Deve ser muito desconfortável para os comandantes e para os militares envolvidos.
Quais são as reais intenções? Bem, não tenho como ler a mente de Donald Trump. Mas acho que a mudança de regime não tem sido uma estratégia particularmente bem-sucedida para os Estados Unidos neste século. No século passado, a mudança de regime na área do Pacto de Varsóvia, no Leste Europeu, foi uma estratégia bem-sucedida. Na União Soviética, menos. Neste século, Iraque, Afeganistão, Líbia e Iêmen não foram estratégias bem-sucedidas de mudança de regime.
E não acho que alguém nos Estados Unidos gostaria de ter essa experiência tão perto em nosso hemisfério. Certamente sei que outros países da América Latina não querem esse tipo de experiência em suas fronteiras. E para nós, não vejo como isso poderia ser uma transição absolutamente confortável.
Fonte.:BBC NEWS BRASIL


