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- Author, Luiz Fernando Toledo
 - Role, Da BBC News Brasil, em Londres
 
Lula disse que “toda vez que a gente fala do combate às drogas, possivelmente fosse mais fácil a gente combater os nossos viciados internamente. Os usuários são responsáveis pelos traficantes, que são vítimas dos usuários também”.
Embora sem relação específica com a operação, que sequer tinha acontecido ainda, a frase seria resgatada por adversários políticos dos petistas.
Tarcísio é visto como potencial candidato de oposição a Lula nas eleições de 2026.
O presidente se retratou pela fala e disse, em sua conta no X que “fez uma frase mal colocada”. Mas o estrago já estava feito.
Ao refletir sobre a operação no Rio e a declaração do presidente, o professor de Ética e Filosofia Política da Universidade de São Paulo (USP) e ex-ministro da educação do governo de Dilma Rousseff (PT), Renato Janine Ribeiro, faz uma crítica: falta à esquerda, em sua visão, um programa sério de segurança pública, que implicaria em respeito aos direitos humanos, mas também uma repressão eficaz ao crime.
E diz que a frase usada por Lula certamente será explorada pelos seus adversários nas próximas eleições.
BBC News Brasil – O senhor diz que hoje o discurso de direitos humanos só chega aos convertidos. Por quê?
Renato Janine Ribeiro – A gente tem uma situação que data de uns 40 anos. Desde a democratização da América Latina, que é mais ou menos simultânea à democratização da Europa Oriental, embora na América Latina tenha começado um pouco antes, a direita se refugiou no tema da segurança, acusando os direitos humanos de serem coisas “para proteger bandidos”. E essa imagem emplacou.
Vejo isso até de forma pessoal. Quando converso com amigos, e alguém pergunta onde determinada pessoa mora, a primeira pergunta costuma ser: “É seguro?”. A primeira pergunta não é se há rede de apoio, boa educação para os filhos, saúde para os mais velhos. Não: a primeira pergunta é sobre segurança.
O clima da insegurança ficou muito forte. E aí ficou essa oposição muito radical: a esquerda defendendo direitos humanos, e a direita clamando por uma repressão absolutamente desumana, em que o suspeito automaticamente é visto como bandido, como criminoso. Sobretudo, quem é preto, pobre ou prostituta, os chamados “3 Ps”, é visto como alguém que pode levar tiro, ser torturado. Há uma indiferença grande e talvez até um certo regozijo com isso. Criaram-se duas bolhas que não se falam. Você não tem uma conversa entre elas.
Quando falamos em direitos humanos e defendemos operações mais respeitosas, com presunção de inocência e mais baseadas em inteligência, a gente é acusado de “proteger bandidos”. E pior: a gente só prega para convertidos. Em uma democracia, é fundamental convencer a maioria da população, senão o que teremos?
Teremos, talvez, no ano que vem, a recondução do Lula, parece o mais provável, e, provavelmente, todos os governadores de extrema-direita (eu não chamo de direita) sendo reconduzidos, com uma Câmara e um Congresso tão ou mais reacionários quanto o atual.
BBC News Brasil – Nas últimas décadas, nada evoluiu nesta discussão à esquerda? Por que esse discurso sobre segurança pública nunca saiu da mão da direita?
Janine Ribeiro – Nós temos um grande diferencial, que é o professor Luiz Eduardo Soares, antropólogo que fez doutorado sobre Thomas Hobbes, o mesmo autor que eu estudei. Desde os anos 1990, ele vem dizendo que a esquerda precisa assumir essa pauta, que não pode ficar só nas mãos da direita. E que deve usar inteligência.
O problema é que parte da esquerda tem um certo alento em “ter razão”, mesmo sem ter apoio da maioria. É preciso entender a mensagem que se quer passar, não se confortar com a ideia de “nós temos razão e o outro está errado”. Esse caminho, numa democracia, leva a resultados péssimos. Se não formos capazes de emplacar, no nível dos estados e da política, discursos que respeitem não só os direitos humanos, mas também o conhecimento científico, vamos continuar perdendo o debate. Hoje, enfrentar o crime é uma questão científica. É preciso ter informação, capacidade de cruzar informações.
Dou um exemplo: quando eu estava na CAPES [Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, fundação vinculada ao Ministério da Educação], antes de ir para o MEC [Ministério da Educação], vi um estudo interessante do Tribunal de Contas da União sobre o FIES [Fundo de Financiamento Estudantil] ou ProUni [Programa Universidade para Todos] em que, cruzando dados por CPF, descobriram mais de mil pessoas com acesso a um desses programas que eram também proprietárias de carros importados. Isso há vinte anos, quando o carro importado representava algo muito mais caro.
O Bolsa Família, baseado no Cadastro Único, evita a besteira que eram as cestas básicas distribuídas por prefeitos e deputados por puro interesse político. Um governo que não cruzou esses dados, o de Bolsonaro, acabou pagando auxílio emergencial a pessoas que já estavam na folha de pagamento do governo federal. Militares, por exemplo. Esse tipo de cruzamento é básico para qualquer política pública. A operação Carbono Oculto, em São Paulo, foi um exemplo, feita em cooperação com a Receita Federal.
E é isso que agora o governo Lula pretende fazer no Rio. Mas a situação lá é bem diferente. O crime em São Paulo é mais hierárquico; no Rio, é mais territorial. O controle dos morros é vital, e isso envolve coisas pequenas, como a venda de botijões de gás, instalação de cabos de internet, telefonia. Uma série de crimes de pequena escala que, no conjunto, representam um grande controle.
É uma pena que as UPPs [Unidade de Polícia Pacificadora] tenham fracassado, porque a estrutura era boa: levar o Estado, o “Estado do bem-estar social”, para esses territórios. O problema é que o morador da favela fica nas mãos ou da igreja evangélica ou das quadrilhas.
BBC News Brasil – O senhor mencionou que o Estado precisa de mais dinheiro e que os ricos não querem pagar. Como isso se conecta à segurança pública?
Janine Ribeiro – O problema sério que temos no Brasil, e em escala mundial, é que o Estado, para cumprir seu papel, precisa de mais dinheiro. E os ricos não querem pagar. É simples. Então, é mais fácil, para a extrema-direita e para os ricos, promover uma “segurança pública” baseada na chacina, mesmo que, no dia seguinte, os chacinados sejam substituídos por outros pés-de-chinelo, porque é o baixo escalão do crime que é morto, em geral.
É mais fácil fazer isso do que realmente levar educação, saúde e infraestrutura para as favelas. Tudo isso custa dinheiro. E custa ainda mais no Brasil do que, por exemplo, na França. Lá, a integração de imigrantes exige investimentos em escola, saúde, cultura. Garantir que façam parte da sociedade a que se integraram e não se sintam um corpo estranho. No Reino Unido, idem. No Brasil, as carências são muito maiores.
Então, isso nos deixa numa sinuca: é muito difícil sair dessa situação quando você tem uma extrema-direita que não quer ser tributada. O Estado hoje é mais caro, em grande parte devido ao avanço científico e econômico desde o advento da internet.
O Estado requer mais recursos, é mais caro do que no passado. E ele pode oferecer mais coisa. Por exemplo, a expectativa de vida dobrou em um século. Isso é maravilhoso, mas, para ser mantido e melhorado, requer investimentos em saúde pública, cultura, lazer, esporte. E tudo isso custa dinheiro, não tem como negar. E tem que ser pago por quem tem dinheiro.
Essa discussão está bem avançada na França. Embora o governo perca votações no Parlamento, a ideia é majoritária na sociedade. No Brasil, essa discussão ainda é incipiente, porque o peso da ideologia e da pobreza é muito maior.

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BBC News Brasil – Sobre a fala de Lula sobre traficantes, foi um momento de sinceridade que não cabia na política ou uma gafe?
Janine Ribeiro – Nos anos 1970, eu vivi na França e li um livro, não lembro o título, que tratava do tráfico de drogas. No final, havia um ministro de algum país latino-americano que dizia o seguinte: “Não cabe a nós resolver a crise de civilização dos Estados Unidos”.
Em outras palavras, ele queria dizer que os Estados Unidos viviam uma crise civilizacional, porque uma parte da população se refugiava nas drogas para fugir de uma realidade horrorosa. São eles que demandam as drogas, das naturais, como maconha, às pesadas, como cocaína e heroína, que eram os flagelos da época. A ideia dele era que eliminar plantações na Colômbia não adianta muito se existe uma demanda forte nos EUA. A demanda cria oferta. Se há demanda, vai haver oferta.
Então, acho que o Lula quis expressar algo parecido, mas de forma infeliz e inoportuna. Ele quis dizer que há uma demanda muito grande. E que essa demanda cria a oferta que, sendo ilegal, cria o tráfico. Mas a forma foi ruim, ainda mais nas vésperas dessas operações.
Isso levantou outra questão. O governo Lula estava navegando em mar absolutamente calmo: tudo ia bem, ele tinha conseguido fazer o Trump recuar um pouco, embora ainda não houvesse resultados concretos. O fato é que Trump aparentemente largou os Bolsonaro com a brocha na mão e seguiu adiante.
Mesmo que Trump não suspenda as tarifas, o Brasil conseguiu exportar mais para outros mercados. Então, em um momento muito feliz para o Lula, ele solta essa frase. E aí surge outra discussão: há quem diga que essa operação já foi planejada para criar uma narrativa poderosa para a direita nas eleições do ano que vem.
Isso se soma a um problema muito sério: quando você tem duas linhas políticas em conflito, mas ambas compartilham certos valores democráticos — o primeiro deles, o respeito aos resultados das eleições; o segundo, o respeito aos direitos humanos e ao Estado de Direito —, ainda é possível conviver. Mas hoje, nos EUA e no Brasil, há uma oposição que não respeita nem os resultados das eleições.
Acho que a possibilidade dessa operação ter sido utilizada eleitoralmente é muito alta. Em si, governar pensando em eleição não é errado, é até natural em uma democracia. O problema é quando o cálculo eleitoral implica abrir mão de valores básicos. Promover o sacrifício humano de mais de cem pessoas por interesse político é algo macabro.
BBC News Brasil – Pesquisas recentes mostram alta popularidade do Cláudio Castro após a operação. O senhor acha que a sociedade brasileira naturalizou a violência estatal?
Janine Ribeiro – O que chocou no caso do Cláudio Castro foi o número, não o tipo de ação. O que ele fez é o que se faz o tempo todo. Já aconteceu no Guarujá, em São Paulo. O que diferencia é a escala: quando passa de cem mortos, isso choca.
Houve muita comparação com o Carandiru, que teve 111 mortos. E o comandante daquela operação depois concorreu a deputado federal com o número “111”. Isso foi um acinte: ele assumiu o massacre como façanha, não como problema.
Então, no Brasil isso está naturalizado. A gente tem dificuldade de sair disso. Talvez, por isso, ainda dure um pouco o efeito positivo na popularidade do Castro. Mas eu acho que ele, pessoalmente, não tem cacife para navegar em cima disso. Talvez outro candidato da extrema-direita consiga.
Vale lembrar que o Bolsonaro perdeu muita projeção. Está condenado, deve ir para a prisão em algum momento. Mas o quadro é preocupante: há risco de intervenção externa, até uma escalada americana na Venezuela, o que também seria desastroso para nós, por ser nosso vizinho. Tudo isso compõe um cenário político muito perigoso.
BBC News Brasil – O que mudou da época da Dilma, quando o senhor ocupava cargo de ministro, para hoje?
Janine Ribeiro – Durante o impeachment da Dilma, a principal preocupação nas pesquisas era corrupção, o que foi muito usado pela extrema-direita. Depois, muda: às vezes, é saúde; agora, é segurança pública.
Segurança e corrupção são dois temas frequentemente usados pela direita e, hoje, pela extrema-direita. O problema é que a esquerda tem dificuldade de emplacar um tema desses. Está praticamente toda dependente da pessoa do Lula.
Quando o Lula ganhou em 2002, havia um vídeo de campanha que mostrava dois casais jovens saindo de uma festa e cruzando com um morador de rua. Eles ficavam chocados. Então, aparecia a frase: “Se isso mexeu com você, talvez você não saiba, mas em alguma medida você já é petista”. Era uma propaganda que mostrava que o PT estava falando ao coração dos brasileiros, com pautas como combate à miséria e à fome.
Hoje, a esquerda não tem mais essa capacidade de falar ao coração. Além disso, a direita foi quase toda tragada pela extrema-direita. A esquerda ficou, infelizmente, como única defensora da democracia. Não é que tenha o “monopólio da virtude”, mas os valores democráticos e de esquerda se fundiram, enquanto a direita aceitou muito bem a extrema-direita.
BBC News Brasil – O avanço da pauta da militarização e do armamento civil no governo Bolsonaro trouxe algum aprendizado ou mudança de percepção na esquerda sobre segurança pública?
Renato Janine Ribeiro – O ministro Fernando Haddad tem falado muito da operação Carbono Oculto, que há cerca de um mês desmantelou quadrilhas e apontou vínculos da alta finança com o crime organizado, especialmente com o PCC. Ele defende fazer o mesmo no Rio. O problema é que isso soa como um “demorou”, sabe? Era algo que já devia estar sendo feito há muito tempo.
Estão agindo tardiamente, meio na defensiva, no momento de uma ameaça grande. Quando houve a manifestação de 7 de setembro com a bandeira americana, aquilo simbolizou uma série de tiros no pé da extrema-direita, inclusive o apelo do Eduardo Bolsonaro a uma intervenção estrangeira.
Tudo isso construiu uma narrativa favorável ao Lula, e a imprensa reconhecia que o governo estava se consolidando. Mas aí veio esse “golpe”. E foi um golpe sério, grave. A frase do Lula foi infeliz e será usada até o dia da eleição, e talvez até depois. Hoje temos uma situação vulnerável no campo democrático.
BBC News Brasil – Logo após a operação, houve rápida mobilização de governadores à direita, que lançaram o que chamaram de Consórcio da Paz, em busca de cooperação contra o crime organizado. Falta esse tipo de articulação na pauta da segurança para a esquerda?
Janine Ribeiro – A esquerda, na verdade, está bem unificada. É difícil dizer que falta união. O PT continua a principal força; o PSOL está muito próximo, com dois ministros no governo Lula. O Boulos é apresentado constantemente como possível sucessor do Lula em algum momento. O Marcelo Freixo já foi do PSOL para o PT.
O problema não é de unidade, mas de formulação de um projeto de segurança pública. Desde Luiz Eduardo Soares, há 30 anos, não surgiu um projeto consistente de segurança pública. Ele tentou isso no Rio e depois como secretário nacional, mas até hoje a gente não viu isso nascer. Hoje temos a PEC da Segurança Pública, que é importante, mas não suficiente.
Abro parênteses: desde que o Brasil criou o SUS [Sistema Único de Saúde], temos o modelo britânico do NHS como inspiração. E o SUS funciona, como sistema federativo. Agora, foi sancionado o Sistema Nacional de Educação.
Nós, da SBPC [Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência] — falo “nós” porque fui presidente até três meses atrás — defendemos um Sistema Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação.
A ideia é: em uma federação, é preciso cooperação entre as três instâncias de governo. No caso da segurança, isso passa por coisas elementares, como compartilhar dados: um criminoso cometer um crime no Nordeste e ser identificado no Sul, e vice-versa. Mas falta um apelo. A PEC é hostilizada e é vista como burocrática.
Outro desafio da esquerda é conquistar o centro. Há 10 ou 15 anos, quando eu era colunista do Valor Econômico, eu falava dos “três terços”: um terço de esquerda, um terço de direita e um terço indeciso. Esse terço indeciso é o decisivo — o que vai para um lado ou outro conforme o tema do momento. Na reeleição da Dilma, por exemplo, o terço petista estava “gordo”, com mais de 40%. O tucano, magro. Mas a chave é o terceiro, o indeciso.
Hoje, depois da pauta da defesa nacional (que foi boa para o governo Lula), a pauta da segurança é forte para a extrema-direita. Esse é o problema.
E sobre o “Consórcio da Paz”: isso é puro Orwell. Em 1984, há uma placa dizendo “Paz é Guerra”. Isso mostra a capacidade de manipulação das mentes.
Fonte.:BBC NEWS BRASIL 
				

								
								
								
								
								