O resultado do Censo sobre religião serviu para demonstrar como a estatística pode ser manipulada para confirmar o que cada grupo de interesse já pensa. Isso acontece porque os dados divulgados pelo IBGE não nos permitem saber, com precisão, qual é a força dos vários subgrupos dentro do campo religioso no país hoje.
O aspecto mais disputado é sobre a força dos evangélicos. De um lado, Silas Malafaia afirma que, mesmo crescendo menos do que o esperado, os evangélicos são mais engajados e frequentam mais os cultos. Está certo. A Rede Record, empresa ligada à Igreja Universal, noticiou que o grupo triplicou de tamanho em 30 anos. Correto também. Já os críticos dos evangélicos destacaram a desaceleração do crescimento —e não estão errados, mesmo que a queda tenha sido pequena: de 6,5 pontos percentuais no decênio anterior para 5,2 nos últimos 12 anos. Cada um vê o que quer —e o que interessa dizer.
Eles fazem isso por causa da polarização, que achata qualquer nuance em certo ou errado, sim ou não, esquerda ou direita. E podem fazer isso porque os dados —ou melhor, a ausência deles— permitem esse tipo de interpretação. Por isso, a principal conclusão deste Censo, no que diz respeito à religião, é que não temos o detalhamento necessário para analisar esse fenômeno com mais rigor.
Veja quanto ainda não sabemos sobre religião no Brasil nesta década:
1. O número de evangélicos é maior do que os 26,9% apontados pelo Censo? Do ponto de vista sociológico, sim. Existem denominações historicamente ligadas ao protestantismo que não se identificam como evangélicas, nem são reconhecidas como tal. Mas seus membros compartilham valores, hábitos e até padrões de engajamento político semelhantes aos evangélicos. É o caso dos Testemunhas de Jeová, que hoje somam cerca de 1,5 milhão de pessoas, se cresceram na mesma proporção apontada pelo Censo. O mesmo vale para os adventistas, outra denominação importante, com mais de 1,5 milhão de membros em 2010. Por causa dessas diferenças históricas, esses fiéis podem ter respondido ao recenseador que são ou que não são evangélicos. Mas não saberemos isso, porque o Censo não apresentou esse nível de detalhamento.
2. Qual é o tamanho das principais igrejas evangélicas? Sem essa informação, não sabemos a real capacidade de influência de cada liderança. A Igreja Universal, por exemplo, tinha cerca de 1,87 milhão de membros. Aumentou? Diminuiu? Estabilizou? A mesma dúvida vale para ministérios relevantes da Assembleia de Deus —como Belém, Madureira e outros— e para denominações grandes como a Congregação Cristã e os batistas. Nada disso está claro.
3. Qual é o peso das igrejas sem denominação conhecida? No início do século 20, havia meia dúzia de denominações evangélicas. Hoje, surgem novas igrejas aos montes, especialmente nas periferias —mas não só nelas. No bairro onde vivi e trabalhei como pesquisador, com cerca de 20 mil moradores, contei aproximadamente 80 templos evangélicos —a maioria deles “igrejas de garagem”. Essas congregações são importantes porque seus pastores não estão subordinados à influência direta dos grandes caciques do evangelicalismo, como Malafaia ou Edir Macedo. Estão mais abertos ao diálogo com lideranças políticas que não necessariamente são de direita.
4. Quem são os “sem religião”? Essa categoria é frequentemente interpretada como sinônimo de ateus ou agnósticos, mas isso é um erro. Os que não acreditam em Deus representam apenas uma fração desse grupo. A maioria continua acreditando ou mantendo práticas espirituais diversas; apenas não frequenta regularmente comunidades de fé. E o IBGE não divulgou essas subcategorias. Não saberemos quantos rejeitam a religião institucionalizada e o posicionamento de seus líderes e influenciadores e quantos continuam abertos à orientação de líderes religiosos.
5. Qual é a diversidade do catolicismo? Conforme o antropólogo Rodrigo Toniol me ensinou, o catolicismo é maior do que a Igreja Católica. Nas últimas décadas, o movimento da Renovação Carismática chacoalhou esse campo ao incorporar práticas originárias do pentecostalismo. Em vez da missa sonolenta, há música animada, testemunhos, padres midiáticos. Não saberemos a influência dessas subculturas dentro do mundo católico brasileiro.
6. Quantos católicos são praticantes? O Censo hoje não inclui uma pergunta sobre frequência religiosa, mas essa informação faz falta. Quantos frequentam a igreja ao menos uma vez por semana? Dependendo dessa resposta, já poderíamos afirmar que o Brasil é majoritariamente evangélico, considerando que a média de frequência dos evangélicos é de uma ou mais vezes por semana —o que os torna mais expostos à influência de seus pares e líderes do que os católicos. Será que já somos, mesmo sem admitir, um país majoritariamente evangélico?
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O IBGE agiu corretamente ao não divulgar dados que podem estar comprometidos. Mas é preciso alertar: a crise financeira do instituto nos impede de obter informações fundamentais —como dados confiáveis sobre religião. E isso é uma tragédia. Significa que estamos, para usar uma expressão da aeronáutica, navegando sem instrumentos em meio a um clima de mudanças rápidas e turbulências.
Não sabemos o suficiente sobre o terreno e o território religioso. E isso afeta a capacidade de decisão de governos, partidos políticos, empresas, organizações da sociedade civil e acadêmicos. O desconhecimento não é uma posição neutra —é uma condição indesejável porque produz incerteza. E, neste momento, também dá margem para que o tema seja explorado politicamente de maneira a gerar mais ruído do que sinal, mais fake do que news. É ruim para todo mundo.
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Fonte.:Folha de S.Paulo