Há uma técnica específica para servir Guinness. Quando começa a servir, a cerveja, com razão, está animada por ser libertada da garrafa, e espuma no copo. Enquanto o primeiro copo assenta e se acostuma à situação, você começa a servir o próximo e espera que a cerveja se acalme. “Eu chamo de ‘minuto Guinness’”, diz o jovem Edward Guinness, que completa: “Para encher o copo, é importante que faça devagar, com cuidado, uniformemente. Você só terá sucesso se manter a calma”.
Edward usa a metáfora do serviço da Guinness para explicar a uma líder rebelde irlandesa a situação do país, em ebulição nos idos da segunda metade do século 19. A cena do terceiro episódio é também o grande momento da Guinness, ela própria, a cerveja, na série “House of Guinness”, da Netflix.
A cervejaria é um belo pano de fundo —mas não deixa de ficar em segundo plano— para a história de um período turbulento da Irlanda (em 1876) e de incertezas na sucessão da cervejaria, já consolidada à época.
Não ser tão cervejeira está longe de ser um problema. Estava na hora de o querido líquido à base de lúpulo e malte ganhar um produto audiovisual que não causasse vergonha. O vinho tem “Sideways – Entre umas e Outras” (e uma penca de bons filmes), o uísque tem “A Parte dos Anjos”, de Ken Loach, e a cerveja? (Quem pensou em “Os Irmãos Cervejeiros” pode parar de ler agora.)
Voltando, existem dois avisos importantes em cada um dos oito episódios de “House of Guinness”: no começo diz “ficção inspirada em fatos reais” (é importante ter a palavra ficção em mente); e apenas no fim, enquanto o streaming já tenta fazê-lo pular para a próxima dose, aparece o “baseada em uma ideia de Ivana Lowell“.
Reza a lenda que Ivana, descendente do clã Guinness, estava vendo um episódio da britânica “Downton Abbey” quando pensou que seus antepassados tinham histórias mais interessantes e escreveu 20 páginas reunindo causos de parentes. E esse material foi a principal inspiração para o produtor e roteirista Steven Knight desenvolver a série da Netflix. Apesar de ser inglês, Knight fez sucesso com outra produção de sotaque irlandês, “Peaky Blinders”, disponível no mesmo streaming.
Outra série mais moderna também tem sido associada com a nova empreitada: “Succession”, da HBO. A semelhança é óbvia, mas também só dura até a página 2. Lá como cá, uma família muito rica controla um negócio e os filhos são apontados como legítimos herdeiros. E para por aí.
Ao contrário de “Succession”, em “House of Guinness”, o magnata já aparece morto na primeira sequência, Benjamin Guinness. A leitura de seu testamento dá margem para dramas, não para disputas.
A filha mais velha e casada é prontamente deixada de lado. O terceiro filho, um jovem alcoólatra, também é defenestrado. Cabe a Arthur, o primeiro homem, e Edward, o caçula, a administração da cervejaria. O problema é que Arthur (Anthony Boyle) é um bon-vivant, não liga para a cerveja, tem aspirações políticas e é gay —algo perigoso na Irlanda do século 19; enquanto isso, o jovem Edward (Louis Partridge, um Cillian Murphy bonito), sob a desconfiança dos funcionários, tem ambiciosos planos de expansão.
O final deixa margem para uma segunda bem-vinda temporada, ainda não confirmada. No entanto, é mais fácil produzirem mais oito episódios do que encontrar uma Guinness na torneira de um pub brasileiro —cumprimentos a importadora Diageo.
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Fonte.:Folha de São Paulo