A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 27/2024, que cria o Fundo Nacional de Reparação Econômica e de Promoção da Igualdade Racial, entrou de vez no centro da disputa política entre esquerda e direita no Congresso Nacional. Já aprovada na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados, a proposta prevê a destinação de R$ 20 bilhões para financiar projetos sociais, culturais e econômicos voltados exclusivamente à população negra.
Para os críticos, trata-se de um fundo bilionário que corre o risco de alimentar ONGs e movimentos sociais alinhados à esquerda, abrindo espaço para privilégios raciais em um país miscigenado e perpetuando o que chamam de “indústria do racismo”.
A proposta estabelece que a União deve destinar, no mínimo, R$ 20 bilhões ao fundo, sendo R$ 1 bilhão aportado por ano até atingir o montante total. A expectativa é que os recursos sejam obtidos a partir de indenizações de empresas que comprovadamente lucraram com a escravidão da população negra brasileira, doações internacionais, dotações orçamentárias da União e outras fontes previstas em lei.
De acordo com a PEC, esses repasses não estariam sujeitos a limites orçamentários já existentes, o que abre espaço para um fluxo contínuo de bilhões de reais às ONGs e movimentos sociais beneficiados. O texto também prevê a criação de um Conselho Consultivo e de Acompanhamento, formado por representantes do poder público e da sociedade civil, responsável por fiscalizar a aplicação dos recursos, que serão definidos pelo Executivo, mas podem ter representantes de ONGs.
Já os defensores da medida sustentam que se trata de uma política de Estado, com caráter permanente, capaz de garantir reparação histórica e proteção contra retrocessos futuros.
Antes de ser votada no plenário em duas sessões, a PEC precisa ser aprovada em uma comissão especial, instalada no dia 16 de setembro. A instalação do colegiado teve intensa mobilização de movimentos negros, que lotaram os corredores das comissões com faixas e palavras de ordem.
A deputada Benedita da Silva (PT-RJ), eleita presidente da comissão, destacou que a aprovação da PEC representa um avanço institucional de caráter permanente. “Não é programa de governo, é política de Estado. Temos o entendimento de que esse governo é sensível, mas não sabemos quem virá ou quem poderá vir. Então é preciso que a gente preserve todos esses avanços”, declarou.
Na audiência de instalação da comissão, Benedita ainda destacou o caráter simbólico e político do debate sobre igualdade racial, sublinhando que o objetivo maior é o fortalecimento da população negra para a disputa de ideias e de poder no país.
A instalação da comissão ocorreu na mesma semana da 5ª Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial, a Conapir, que, segundo a deputada, reuniu representantes dos movimentos de esquerda e direita. “O objetivo maior é que essa negrada esteja fortalecida e que ela esteja qualificada e capacitada para que a gente possa fazer o nosso embate intelectual, ideológico, de formação de um sistema do qual não se pode excluir negros e negras”, disse Benedita.
O relator da PEC, deputado Orlando Silva (PCdoB-SP), reforçou que a aprovação da PEC na CCJ é uma “conquista histórica”. Segundo ele, trata-se de uma “luta dos movimentos sociais” e da “ancestralidade”, além de ser uma “conquista do movimento negro brasileiro”.
Parlamentares de oposição apontam que, na prática, o fundo pode se transformar em um instrumento de aparelhamento político e de repasse bilionário a ONGs alinhadas à esquerda, sem resolver as desigualdades reais do país. Eles questionam ainda o critério racial adotado: em um Brasil miscigenado, a definição de quem seria beneficiado dependeria de bancas de heteroidentificação, vistas como “tribunais raciais”. Ou seja, órgãos terão que definir quem é negro e pode se beneficiar das ações.
Além disso, opositores alertam para o impacto fiscal da medida — R$ 20 bilhões em novas despesas — e lembram que políticas sociais poderiam ser integradas ao Fundo de Combate à Pobreza, com foco universal na vulnerabilidade socioeconômica, e não apenas na cor da pele.
Críticas da direita: fundo bilionário para ONGs e risco de privilégios
O deputado Hélio Lopes (PL-RJ), que concorreu à presidência da comissão e se consolidou como voz crítica da proposta, detalhou em entrevista à Gazeta do Povo os principais pontos de discordância. Para ele, a PEC “apenas reforça divisões raciais em vez de promover políticas verdadeiramente inclusivas que atendam a todos os brasileiros de forma igualitária”.
Lopes ainda reforçou que, caso o fundo seja aprovado, “deveria ser integrado ao Fundo de Combate à Pobreza, criado pela Emenda Constitucional nº 31/2000, que já possui caráter universal”.
“A pobreza no Brasil não tem cor. Dados do IBGE indicam que entre os brancos, 17,7% são pobres; entre os pardos, 35,5%; e entre os pretos, 30,8%. […] Por isso, defendo que as políticas públicas sejam baseadas nos critérios de pobreza, independente da cor da pele”, declarou.
Outra crítica do deputado é em relação ao “risco de uso eleitoral” do fundo de R$ 20 bilhões, por representar “os interesses de movimentos sociais organizados”. “Esses grupos podem retribuir esse apoio em campanhas políticas, seja mobilizando bases, influenciando redes sociais ou oferecendo espaço na mídia. Isso pode acabar funcionando como uma forma indireta de financiar grupos de apoio em eleições”, afirmou.
A tramitação da Proposta de Emenda à Constituição segue a todo vapor. Nesta semana, houve nova reunião da comissão especial na Câmara.
Riscos e desafios: lições do Fundo Amazônia
Especialistas apontam, entretanto, que a criação de um fundo dessa magnitude exigirá forte atenção quanto à transparência e à fiscalização do uso dos recursos. A comparação mais imediata é com o Fundo Amazônia, que possui relevância crucial na conservação ambiental, mas que vem enfrentando críticas e investigações no cenário político e jurídico brasileiro.
Entre os principais problemas já identificados no caso amazônico estão:
- Falta de transparência: a CPI das ONGs investigou denúncias de que os recursos não estariam chegando às comunidades indígenas e locais beneficiárias, além de falhas na divulgação sobre o real impacto dos projetos.
- Má aplicação de verbas: foram levantadas suspeitas de gastos excessivos em rubricas como consultorias, viagens e folha de pagamento, o que levanta dúvidas sobre a eficiência dos investimentos.
- Uso político/partidário: em casos pontuais, fora do escopo direto do Fundo Amazônia, ONGs foram investigadas por supostos desvios de recursos públicos destinados à região para fins eleitorais.
- “ONGs de fachada”: também surgiram acusações de entidades que, sob a bandeira da causa ambiental e indígena, buscavam captar recursos sem executar projetos efetivos.
O alerta é de que, para evitar repetir essas distorções, o novo fundo de igualdade racial precisará ser acompanhado de mecanismos robustos de prestação de contas, auditoria independente e fiscalização social, garantindo que os recursos realmente cheguem às comunidades negras e gerem os resultados prometidos.
A PEC ainda precisa passar pela comissão especial, depois seguir para votação em dois turnos no plenário da Câmara e, posteriormente, no Senado. Serão necessários 308 votos favoráveis na Câmara e 49 no Senado para a aprovação definitiva.
A disputa promete ser acirrada — e a votação será também um termômetro da força política da agenda identitária no Congresso Nacional.
Fonte. Gazeta do Povo