Montenegro (RS), janeiro de 2024. O fisiculturista Alexsandro Gunsch, de 48 anos, assassinou a ex-companheira Débora Michels Rodrigues por asfixia mecânica.
O homem deixou o corpo da mulher morta na frente da casa dos pais dela. Ele foi condenado a 28 anos e 8 meses de prisão, pelo crime de homicídio qualificado por feminicídio (em contexto de violência doméstica), com motivo torpe, meio cruel e recurso que impossibilitou a defesa da vítima.
Aparecida de Goiânia (GO), maio de 2024. O também fisiculturista Igor Porto Galvão, de 30 anos, agrediu brutalmente a namorada Marcela Luise, que teve traumatismo craniano, oito costelas quebradas e diversas escoriações pelo corpo.
Após o ato, Galvão deu banho na mulher e a levou a um hospital, alegando que ela teria sofrido um acidente doméstico. Ela morreu alguns dias depois, e ele foi condenado a 20 anos de prisão.
São Paulo, capital, julho de 2025. O fisiculturista e lutador de jiu-jitsu Pedro Camilo Garcia Castro, de 24 anos, espancou tão violentamente a namorada que chegou a quebrar a própria mão.
Era o aniversário de Samira Khouri, e ela foi encontrada pela polícia inconsciente, caída no chão com rosto desfigurado, com múltiplas fraturas no crânio e na face.
Ela foi socorrida em estado grave e precisou ser entubada. Pedro está preso e é acusado de tentativa de feminicídio.
Natal (RN), julho de 2025. O ex-jogador de basquete Igor Eduardo Pereira Cabral, de 29 anos, deu 61 socos na namorada dentro de um elevador.
Juliana Garcia dos Santos também ficou desfigurada e encharcada de sangue após ter quatro ossos do rosto quebrados. A moça precisou de uma cirurgia de reconstituição facial. Igor foi preso preventivamente e responde por tentativa de feminicídio.
Além da clara violência contra mulher, esses exemplos recentes tem algo em comum: todos os agressores eram possivelmente usuários de anabolizantes.
E essas substâncias, a ciência mostra, estão muito ligadas a rompantes de violência. Entenda, a seguir, a ligação entre uma coisa e outra.
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Esteroides anabolizantes: o que são e quais os riscos
Esteroides anabolizantes e similares (EAS) são substâncias derivadas principalmente do hormônio testosterona, utilizados para estimular a o desenvolvimento e a hipertrofia de tecidos do corpo, como o muscular. Eles podem ser consumidos de forma oral ou injetável.
Cada vez mais se fala sobre os perigos da utilização de EAS, entre eles um risco maior de hepatite medicamentosa, tumores benignos e malignos do fígado, infarto do miocárdio, AVC e tromboses ou embolias. No geral, há um risco quase três vezes maior de morte prematura.
Mas pouco se fala dos riscos psíquicos do uso de esteroides, que envolve não apenas o usuário, que pode sofrer com dependência e abstinência, mas também as pessoas ao redor dele.
E o uso indiscriminado silencioso dessas substâncias pode ocasionar uma verdadeiro questão de saúde pública, principalmente para as mulheres.
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Risco oculto: aumento de agressividade por anabolizantes
No exterior, existe até um termo específico para isso: roid range, que, ao pé da letra, significa fúria por esteroides.
Na verdade, a relação da testosterona com a agressividade não é algo novo. “A literatura científica já sabe e investiga isso desde o século XIX, quando se observou que, ao retirar testículos de camundongos, eles não tinham mais agressividade, ficavam bem calminhos”, conta a médica Maria Edna de Melo, membro da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM).
Além da agressividade, também é recorrente uma maior irritabilidade e alterações de humor em usuários dessas substâncias. “Eles tem um impacto direto na saúde mental, pois atuam no próprio sistema nervoso central, modificando a modulação de neurotransmissores”, afirma o médico psiquiatra Bruno Branquinho, sócio fundador da NuMa (Núcleo de Medicina Afetiva), em São Paulo.
“Enquanto se está sob o uso, pode haver um aumento de energia e até uma euforia que gera comportamentos de risco, agressividade, ansiedade e dependência”, explica o psiquiatra.
O que diz a ciência?
Uma grande revisão sistemática de estudos, que uniu dados de 1980 a 2019, confirma tudo isso, apontando que o consumo prolongado de esteroides resulta em alterações neuropsiquiátricas e cognitivas patológicas, assim como nas disfunções emocionais e comportamentais.
Ela também destaca que há um menor controle dos impulsos agressivos, maior ansiedade e oscilações extremas de humor, da depressão à mania. Ao tentar parar, o usuário pode enfrentar depressão com ideação suicida e disfunção sexual.
O estudo justifica que o abuso de testosterona parece estar relacionado à menor conectividade entre algumas áreas do cérebro, além dessas substâncias retirarem os efeitos positivos do exercício físico, que naturalmente têm um controle ansiolítico.
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O uso de anabolizantes pode ter levado aos crimes?
“O humor instável gera aumento de impaciência e de impulsividade. Então, a pessoa pode tomar atitudes impulsivas por conta do uso. E isso pode levar o usuário a cometer atos como os citados. Há, sim, a possibilidade de ter contribuído”, afirma Branquinho.
Mas o psiquiatra pondera: “Claro, a gente não pode pôr tudo na conta dos anabolizantes. Tem a personalidade e até outros transtornos que essas pessoas podem ter. Não é todo mundo que vai usar anabolizante vai cometer esse tipo de crime. Mas pessoas em uso de anabolizantes têm mais chance de cometer um ato de violência e impulsividade”.
A endocrinologista Maria Edna de Melo ratifica com a ponderação. “Se a pessoa, naturalmente, possui uma tendência maior a agressividade e faz uso de testosterona, com certeza o uso pode ser um deflagrador para esses acontecimentos. Mas a gente não pode falar que isso aconteceu em todos os casos pois não conhecemos bem os indivíduos”, afirma a médica.
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Abuso de esteroides, um risco de saúde pública
A epidemia de anabolizantes cresce silenciosa no Brasil, e não há dados oficiais sobre o tema.
Segundo a Folha de São Paulo, que analisou dados da Anvisa, três dos principais EAS vendidos no mercado brasileiro (testosterona, cipionato de testosterona e undecilato de testosterona) tiveram crescimento de 45% em volume de vendas na comparação entre 2021 e 2019.
Já um levantamento do Valor Econômico fala em aumento de 670% na venda geral de esteroides nos últimos 5 anos, saltando de 1 milhão de produtos comercializados para 7 milhões.
“Se a gente tem um aumento estrondoso nas vendas de anabolizantes, é muito provável que teremos uma repercussão social disso, porque as pessoas vão conviver mais com quem está fazendo abuso dessas substâncias”, opina Maria Edna. “Como a agressividade e a diminuição do autocontrole tendem a aumentar, mais episódios de agressão podem surgir”, completa.
O Conselho Federal de Medicina (CFM) já proibiu a prescrição de anabolizantes para fins estéticos. Mas a médica acredita que, para que o abuso se resolva, é preciso normas rígidas de venda e de fiscalização em diversas frentes.
“Hoje há uma venda muito grande de anabolizantes nas farmácias de manipulação, inclusive na forma de implantes hormonais. Tanto a Anvisa quanto o Conselho Federal de Medicina precisam fiscalizar isso. Porque o médico pode muito, mas não pode tudo. Não é aceitável prescrições abusivas e que possam colocar a vida do paciente, dos seus familiares, amigos e até de outras pessoas em risco”, afirma.
Fonte.:Saúde Abril