Uma disputa judicial tem colocado duas gigantes indústrias farmacêuticas em campos opostos na busca por espaço no acesso à distribuição da nova geração de remédios de emagrecimento distribuídos pelo Sistema Único de Saúde (SUS). E as decisões mais recentes da atual gestão do Ministério da Saúde apontam para uma direção clara: favorecer a distribuição de uma versão genérica, ainda que mais antiga.
Surgidas para tratar diabetes tipo 2, as “canetas emagrecedoras” utilizam diferentes substâncias, com objetivos e efeitos variados. O primeiro componente, desenvolvido pela empresa norueguesa Novo Nordisk em 2010, é a liraglutida, princípio ativo do remédio Victoza, que tem como foco o tratamento de diabetes tipo 2. A aprovação para combate à obesidade veio quatro anos depois e o medicamento ganhou o nome comercial de Saxenda. Seu uso é diário, com aplicações por injeção via subcutânea no abdômen, na coxa ou na parte superior do braço.
A patente de formulação desta substância expirou no Brasil em novembro de 2024, o que levou a empresa brasileira EMS a desenvolver sua própria versão do medicamento, o Olire, aprovado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) em dezembro de 2024 e comercializado a partir dos primeiros dias de agosto desde ano. No início de setembro, a Novo Nordisk conseguiu, via limitar, a extinção da patente do componente, mas a decisão foi derrubada dois dias depois.
A Novo Nordisk produziu posteriormente a semaglutida, que está na base dos remédios mais recentes, o Ozempic, indicado para diabetes tipo 2 e obesidade, e o Wegovy, apontados especificamente para obesidade. São aplicados uma vez por semana, por via injetável, ou diariamente, mas por via oral. Suas patentes devem expirar em 2026.
Enquanto a disputa pela patente da liraglutida segue na Justiça, com potencial para se estender para a semaglutida, o Ministério da Saúde tem atuado ativamente na questão. Em meados de agosto, a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias (Conitec), responsável por decidir que medicamentos e tratamentos devem ser incorporados ao Sistema Único de Saúde (SUS), deu parecer contrário à incorporação dos medicamentos à base de liraglutida e semaglutida. O órgão é ligado ao ministério, que também em agosto solicitou que a Anvisa dê prioridade à avaliação de canetas de emagrecimento genéricas, da EMS.
Critérios questionados
Procurada pela reportagem, a Anvisa não se manifestou. Já o Ministério da Saúde confirma que realizou o pedido à agência: “O Ministério da Saúde tem priorizado medidas para ampliar a soberania e a autonomia do Brasil na produção de tecnologias em saúde, reduzir a dependência externa e fortalecer o Complexo Econômico-Industrial da Saúde. No caso dos tratamentos de pacientes com obesidade e diabetes mellitus tipo 2, o Ministério da Saúde solicitou que a Anvisa priorize o registro de medicamentos compostos pelos princípios ativos semaglutida e liraglutida”.
O ministério argumenta que a entrada de genéricos no mercado pode garantir preços 30% a 40% mais baixos, “além de estimular a concorrência, ampliar o acesso da população a tratamentos de qualidade e fortalecer as condições para a incorporação de novas tecnologias ao SUS”.
A respeito da recusa da Conitec sobre o pedido da Novo Nordisk, o ministério informa: “As decisões da Conitec sobre a incorporação de medicamentos no SUS consideram as melhores evidências científicas disponíveis, abrangendo eficácia, segurança e análises de custo-efetividade. No caso da liraglutida e da semaglutida, o impacto financeiro estimado é da ordem de R$ 8 bilhões anuais. Esse valor representa quase o dobro do orçamento do Farmácia Popular em 2025”.
“O ministro da Saúde Alexandre Padilha tem defendido publicamente os medicamentos da EMS. E não é a primeira vez que ele demonstra preferência por este laboratório”, diz Francisco Cardoso, conselheiro titular do Conselho Federal de Medicina pelo estado de São Paulo. Ele faz referência a um incidente de uma década atrás, quando da assinatura de um termo de parceria que envolvia o laboratório Labogen, acusado pela Polícia Federal de ter sido usado pelo doleiro Alberto Youssef em remessas ilegais de dinheiro para o exterior. Na época, em 2013, o Labogen se associou a um laboratório da Marinha e ao EMS para produzir um medicamento para hipertensão pulmonar.
“O mesmo ministério que não autoriza a distribuição no SUS da semaglutida é aquele que defende a aprovação da implementação de uma versão anterior do princípio ativo, que demanda aplicação diária. Parece uma medida parcial e eleitoreira”, diz Cardoso.
Os laboratórios se manifestam
Os dois laboratórios, o Novo Nordisk e a EMS, se manifestaram sobre o assunto em notas. “A Conitec reconhece que Wegovy é uma tecnologia inovadora, segura, eficaz e custo-efetiva – o custo do tratamento com este medicamento está dentro dos limites estabelecidos pelo regramento da própria comissão, considerando os resultados positivos que ele proporciona à saúde e à qualidade de vida da população elegível”, afirma o laboratório norueguês. “A Novo Nordisk segue empenhada em colaborar com as autoridades e com a sociedade para ampliar o acesso da população a tratamentos inovadores para o enfrentamento de doenças crônicas graves, propondo alternativas que viabilizem a incorporação e a oferta de medicamentos de alta qualidade, segurança e eficácia a quem mais precisa”.
O laboratório lembra que, em 2023, também submeteu a liraglutida à avaliação da Conitec para incorporação ao SUS para tratamento farmacológico da obesidade. “Na ocasião, a submissão não avançou, apesar do custo-efetividade do tratamento ter sido considerado viável pela própria comissão”. E aponta: “mesmo sem incorporação nacional, Saxenda já está disponível em programas estaduais no Distrito Federal, Goiás e Rio de Janeiro”.
Sobre o pedido de priorização do Ministério da Saúde em relação à Anvisa, a Novo Nordisk argumenta: “A empresa reitera que a proposta de ampla priorização não é aderente aos critérios técnicos estabelecidos pela norma vigente e impacta negativamente o tempo de análise de medicamentos de outras classes terapêuticas, como tratamentos para câncer, doenças autoimunes, Alzheimer e esclerose múltipla. Associações de pacientes já manifestaram preocupação com o possível atraso na chegada dessas tecnologias essenciais à população que delas necessita”.
Por sua vez, a EMS relata que firmou, em 6 de agosto, em evento em Brasília, dois acordos para a produção de liraglutida e semaglutina em parceria com a Fundação Oswaldo Cruz. “Os acordos estabelecem a transferência de tecnologia da síntese do Ingrediente Farmacêutico Ativo (IFA) e do medicamento final para Farmanguinhos, unidade técnico-científica da Fiocruz. Inicialmente, a produção será realizada na fábrica da EMS, em Hortolândia (SP), até que toda a tecnologia de produção seja transferida para o Complexo Tecnológico de Medicamentos de Farmanguinhos, no Rio de Janeiro”, informa a empresa.
A cerimônia de assinatura da parceria contou com a presença da vice-presidente de Produção e Inovação em Saúde da Fiocruz, Priscila Ferraz, da diretora de Farmanguinhos, Silvia Santos, do presidente da EMS, Carlos Sanchez, além do ministro da Saúde, Alexandre Padilha. A empresa informa ainda que investiu mais de R$ 1 bilhão para viabilizar a produção das canetas de produção nacional.
Fonte. Gazeta do Povo