Quando uma pessoa começa a gostar muito de um assunto e pesquisar bastante sobre ele, ou fala todos os dias sobre um livro/série que acompanhou, muita gente costuma brincar: “nossa, está com hiperfoco nisso!”
Hiperfoco na internet virou sinônimo de amar muito algo ou focar bastante em uma tarefa, mas o termo não designa exatamente isso. E é bem importante entender para não banalizar.
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O que é hiperfoco
É um estado de concentração profunda, involuntária e sustentada de uma pessoa por uma tarefa ou um conjunto de estímulos específicos.
“Uma das características principais do hiperfoco é a negligencia de necessidades básicas, como a sede, a fome ou o sono, a pessoa é capturada por aquele estado”, explica o psiquiatra Alexandre Valverde.
O hiperfoco é bem comum em condições de neurodivergência, como autismo, TDAH e superdotação.
Ainda é preciso aprofundar os estudos sobre como exatamente isso ocorre, mas acredita-se hoje que há uma comunicação errada entre redes neurais que definem a cognição.
De modo simples, nosso cérebro possui três redes neurais:
- Rede de modo padrão (default mode network, DMN) – ativa quando o cérebro está em “repouso” ou num “modo stand-by”. Mesmo quando a pessoa está parada, o cérebro continua ativo, cuidando das funções básicas e processando estímulos internos e externos, mas sem focar em nada específico. Quando o indivíduo está em devaneios, lembranças ou pensamento abstrato, também é essa rede que domina a cachola.
- Rede de controle executivo (central executive network, CEN) – é ativada quando começamos a fazer alguma tarefa direcionada. Atenção dirigida, controle cognitivo, tarefas que exigem foco ou tomada de decisões ligam essa rede.
- Rede de saliência (salience network, SN) – nos ajuda a perceber estímulos importantes (“salientes”) e a dar prioridade a certas situações. É ela que decide quando o cérebro deve sair do modo padrão e entrar no modo executivo.
“Quando há hiperfoco, sua rede de saliência vai desligar a sua rede de modo padrão e ligar a de controle executivo de uma maneira muito intensa, o que justamente pode acontecer em situações de neurodivergência”, explica Valverde.
Por isso, a execução da tarefa acaba acontecendo num tempo estendido, bastante longo, e sem muito controle, completa o especialista.
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Hiperfoco é o mesmo que concentração intensa ou estado de flow?
Não. A principal diferença é que o hiperfoco geralmente ocorre de uma maneira involuntária e até descontrolada, enquanto o estado de concentração intensa ocorre de forma voluntária.
“Geralmente a pessoa típica que se concentra bastante tem alguma demanda, trabalho, atividade, ou mesmo porque gosta de algo e quer focar, mas ela tem controle daquela atividade, não negligencia nada fisiológico em função daquilo”, explica o psiquiatra.
Cabe lembrar que, muitas vezes, entrar num estado de hiperfoco é uma forma de autoregulação para pessoas com autismo. Ou seja, eles acabam acalmando e organizando a si mesmos quando se concentram naquela atividade de interesse. Já no TDAH, o hiperfoco se relaciona mais a uma recompensa imediata.
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O estado de hiperfoco pode gerar problemas?
Sim, físicos e sociais.
Físicos porque quando a pessoa entra nesse estado ela pode ficar na mesma posição por horas, sem perceber que está com dor nas costas, com a perna formigando ou numa postura ruim no geral.
O indivíduo tende perder a noção do tempo, não sabendo se ficou ali por 15 minutos ou 3 horas.
“E, no caso do autismo, há uma irritação da pessoa quando é interrompida, porque ela está num fluxo tão intenso de pensamento, de concentração, que se esse fluxo é cessado, ela não necessariamente consegue voltar para ele tão rápido”, explica Valverde.
Nesse contexto, entram os problemas sociais. Quando a pessoa fica múltiplos dias capturada pelo hiperfoco, ela se relaciona menos, interage menos com familiares, amigos e até cônjuge, o que pode gerar desgaste nas relações.
“Muita gente pode se sentir menosprezada, negligenciada, e isso acaba corroendo as relações sociais dessa pessoa”, completa o psiquiatra.
Em questões cotidianas e de trabalho, também pode dar ruim: não preparar comida, deixar coisas estragarem em casa, esquecer de pagar contas, não entregar alguma demanda do emprego, etc.
“Se não for manejado, o hiperfoco pode levar a demissão e divórcio. É difícil para o neurodivergente, mas, com acompanhamento, é possível trabalhar isso para que não prejudique tanto o cotidiano”, destaca o especialista.
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Qual a importância de não banalizar o termo na internet
Muitos termos psiquiátricos tem sido banalizados nas redes sociais.
Ninguém fica mais triste, todo mundo está deprimido; não há mais alterações de humor, as pessoas estão bipolares; assim como toda falta de foco já vira TDAH. Nesse sentido, o termo hiperfoco também vem sendo usado de forma errônea.
“A banalização do termo pode ser um desrespeito as pessoas neurodivergentes, pois invalida necessidades e problemas reais ligados a quem passa por estados como do hiperfoco”, explica Valverde.
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Fonte.:Saúde Abril