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- Author, Alessandra Corrêa
- Role, De Washington para a BBC News Brasil
Neste sábado (25/10), o cardeal americano Raymond Burke vai celebrar uma Missa Tradicional em Latim, também chamada de Missa Tridentina, na Basílica de São Pedro, no Vaticano, em uma cerimônia que deverá ser acompanhada de perto por setores tradicionalistas da Igreja Católica.
A celebração conduzida por Burke não é simplesmente uma missa em latim, mas sim um ritual codificado pelo Concílio de Trento, no século 16, e realizado segundo os livros litúrgicos anteriores ao Concílio Vaticano 2º (os encontros de cúpula nos anos 1960 para modernizar a Igreja).
Nos últimos anos, especialmente nos Estados Unidos, o rito tridentino se transformou em motivo de divisão entre católicos, aprofundada depois que o papa Francisco (2013-2025), morto em abril deste ano, impôs restrições a esse tipo de cerimônia.
O país abriga uma pequena mas influente ala conservadora da Igreja Católica, que foi um dos principais focos de resistência e oposição a Francisco durante seus 12 anos de pontificado e do qual Burke, ex-arcebispo de St. Louis, é um dos principais expoentes.
Agora, esses setores tradicionalistas, que defendem os antigos ensinamentos, rituais e costumes, de antes do Concílio Vaticano 2º, vêm pressionando o sucessor de Francisco, Leão 14, a reverter essas restrições e permitir o uso mais amplo da Missa Tridentina.
Após audiência privada com Burke em agosto, Leão 14 autorizou a celebração da missa deste sábado, o que foi interpretado por alguns como sinal de maior tolerância à liturgia tradicional. Mas o papa não fez promessas nem deu indícios de que pretenda reverter as restrições impostas por Francisco.
Em um momento em que tradicionalistas e progressistas ainda buscam mais clareza sobre as posições do novo papa em vários temas, o tema ganha relevância.
Nascido em Chicago, Robert Francis Prevost foi eleito em maio como papa Leão 14 e é o primeiro americano a comandar a Igreja Católica. Enquanto setores progressistas da Igreja esperam que ele dê continuidade à visão reformista de seu antecessor, tradicionalistas têm esperança de que adote uma linha mais conservadora.
“Podemos dizer que (a questão da Missa Tradicional em Latim) é um tipo de teste para o papa Leão 14”, diz à BBC News Brasil o especialista em teologia histórica Massimo Faggioli, professor de Eclesiologia na universidade Trinity College, em Dublin, na Irlanda.
“No início de seu pontificado, muitos conservadores tentaram se convencer de que Leão 14 seria a vingança contra o papa Francisco. Acho que agora estão percebendo que ele não é o anti-Francisco (que esperavam)”, observa Faggioli.
“Por isso, agora estão esperando para ver o que fará a esse respeito (da Missa Tridentina).”
‘Teologia polarizada’
Além do uso do latim, o rito tridentino tem várias outras características específicas da liturgia como era celebrada antes do Concílio Vaticano 2º, entre elas os cantos gregorianos, o padre voltado para o altar e de costas para os fiéis e a Comunhão recebida de joelhos.
A cerimônia comandada por Burke neste sábado é uma Missa Pontifical Solene, que é celebrada por um bispo e representa a forma mais elaborada da Missa Tradicional em Latim, com rituais e ornamentos especiais.
A missa faz parte da programação do Summorum Pontificum, uma peregrinação anual a Roma realizada desde 2012 e que reúne fiéis, sacerdotes e religiosos católicos do mundo inteiro devotos da missa em latim e da liturgia tradicional, anterior à reforma do Concílio Vaticano 2º.
No entanto, nos últimos dois anos, os participantes não obtiveram autorização para celebrar a missa, em meio às restrições ao rito romano tradicional impostas pelo papa Francisco.

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Em 2021, Francisco publicou o “motu proprio” (documento papal) “Traditionis custodes”, que impôs uma série de limitações à Missa Tridentina, entre elas a exigência de autorização explícita de um bispo, após consulta com o Vaticano.
Durante séculos, o latim foi a língua oficial das missas católicas ao redor do mundo. No entanto, nos anos 1960, o Concílio Vaticano 2º, que tinha entre os objetivos aproximar os fiéis da liturgia, trouxe uma série de mudanças, incluindo a permissão do uso de línguas locais na celebração da missa.
A partir de então, a missa em latim quase desapareceu. Na década de 1980, uma ordem do papa João Paulo 2º (1978-2005) permitiu algumas exceções, mas foi Bento 16 (2005-2013) que, em uma carta apostólica de 2007, relaxou as restrições, ampliando as situações em que a Missa Tridentina poderia ser celebrada.
A decisão de Francisco de endurecer novamente as restrições ao rito romano tradicional foi recebida como um golpe por setores conservadores na Igreja.
É nesse cenário que seu sucessor enfrenta uma campanha de tradicionalistas e cardeais conservadores, não apenas dos Estados Unidos, mas também de outros países, para relaxar as limitações, como já havia feito Bento 16.
Quando anunciou sua decisão, o papa Francisco disse que a Missa Tradicional em Latim estava sendo usada de maneira “ideológica” e explorada por aqueles que se opunham às reformas mais amplas na Igreja. Francisco descreveu a resistência à sua decisão como retrocesso.
Muitos dos defensores do rito tridentino também rejeitam outras mudanças do Concílio Vaticano 2º, que envolveram não apenas a liturgia, mas também aspectos como o papel da Igreja na sociedade e as relações com outras religiões.
“Especialmente nos Estados Unidos e no Reino Unido, ou seja, no mundo anglo-americano, a teologia católica se tornou muito polarizada”, observa Faggioli.
“Não apenas entre diferentes visões da Igreja, mas também entre diferentes visões sobre qual poderia ser o papel da Igreja na sociedade, na política, na cultura e assim por diante.”
Motivação ideológica x Experiência espiritual
Nem todos os adeptos da missa tradicional têm motivação ideológica. É comum que ressaltem a beleza e solenidade da cerimônia, que tem entre seus seguidores muitos jovens conservadores.
“Acho que, para muitas pessoas, na verdade isso não é politizado. Suspeito que seja uma questão política para uma minoria”, diz à BBC News Brasil o pesquisador de estudos católicos Michael Sean Winters, colunista do jornal National Catholic Reporter.
Winters lembra que muitos dos que frequentam essas celebrações são atraídos pela música e pela experiência estética e espiritual.
No entanto, o analista ressalta que outros veem na Missa Tridentina um ato político.
“Nos Estados Unidos, o problema é que (o rito tridentino) foi sequestrado por pessoas com uma agenda política. E essa agenda é uma resistência mais ampla ao Vaticano 2º. não apenas à nova missa”, afirma Winters.
Segundo Winters, isso também se tornou um catalisador para a oposição ao papa Francisco.
Os Estados Unidos se tornaram o principal foco de rejeição às tentativas de reforma de Francisco e à sua visão liberal de uma Igreja mais inclusiva e em sintonia com atitudes modernas.
Essa visão pregava maior tolerância em relação a católicos divorciados, LGBTQ e outros grupos que se afastaram da doutrina. Também dava destaque para questões sociais, como a compaixão com imigrantes, refugiados e marginalizados e o combate à pobreza e às mudanças climáticas.
Críticos acusavam Francisco de “semear confusão” nas doutrinas fundamentais da Igreja, em temas como homossexualidade, aborto e indissolubilidade do matrimônio, e temiam que a abertura ao engajamento secular pudesse enfraquecer a religião.
“Especialmente nos Estados Unidos, nestes últimos anos, vimos um número significativo de católicos eleitos no Partido Republicano, que fazem parte do governo de Donald Trump”, salienta Faggioli.
Segundo Faggioli, nesses círculos há “uma certa visão da Igreja, que não é a do Vaticano 2º, que não é adaptável à modernidade”.

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Entre os católicos no governo está o vice-presidente americano, J.D. Vance, que se converteu ao catolicismo em 2019 e é admirado pelos tradicionalistas americanos.
“O tradicionalismo litúrgico está conectado a agendas políticas”, diz Faggioli. “Nos Estados Unidos, este é um problema para a Igreja e para a política nacional ao mesmo tempo.”
Estilo x Visão
Leão 14 iniciou seu pontificado ressaltando a importância de construir pontes e de esforços para promover a unidade da Igreja.
Seus meses iniciais foram discretos. Assim, sem grandes declarações ou atos concretos, qualquer gesto era interpretado como um sinal dos rumos que poderia tomar.
Conservadores ficaram satisfeitos quando o novo papa, que pertence à Ordem Agostiniana, optou por vestimentas mais tradicionais do que as usadas por seu antecessor, que era Jesuíta.
Leão 14 também se mudou para o Palácio Apostólico, retomando uma tradição quebrada por Francisco, que escolheu morar na Casa de Hóspedes Santa Marta.
O papa é considerado mais reservado do que seu antecessor e, nesse período inicial, tem evitado provocações e feito gestos conciliatórios com críticos de Francisco, como Burke.
No entanto, manifestações recentes têm sugerido que as diferenças entre os dois papas são mais de estilo do que de visão.
Nas últimas semanas, em diferentes declarações, Leão 14 fez críticas ao tratamento “desumano” de imigrantes nos Estados Unidos, à desigualdade e ao uso da fome como arma de guerra. Também ressaltou a defesa dos pobres e o foco nos riscos das mudanças climáticas.
Faggioli salienta que ainda é cedo para saber o que a permissão concedida ao cardeal Burke para a missa deste sábado significa.
“Não sabemos se este é o início de uma revisão da política do papa Francisco sobre o tema”, ressalta Faggioli.
“Por enquanto, acho que significa que o papa Leão 14 quer tentar lidar com eles (os setores conservadores) de maneira mais diplomática do que o papa Francisco”, observa.
Winters observa que, especialmente à medida que ficou mais velho, o papa Francisco ficou menos tolerante com aqueles que resistiam a ele.
Para o analista, Leão 14 pode tentar trazer “todos de volta a bordo”, estendendo a mão aos críticos de seu antecessor em um gesto de reconciliação.
“Mas eles (os críticos) terão de embarcar em um barco que está sendo guiado pelo novo papa, que foi eleito precisamente como alguém que continuaria as reformas iniciadas por Francisco”, afirma.
“Acredito que, sobre a questão geral da Missa Tradicional em Latim, não é inconcebível que Leão 14 pense que Francisco puxou o Band-Aid muito rápido, e talvez relaxe algumas das restrições”, diz Winters.
“Não ficaria surpreso com isso, mas também não ficaria surpreso se ele não mudar nada.”
Fonte.:BBC NEWS BRASIL


