Em 1990, Ijeoma Uchegbu desembarcou em Londres vinda da Nigéria com três filhas pequenas —uma delas bebê—, uma mala e quase nenhum dinheiro para começar uma nova vida. Estava de volta ao lugar onde nascera 30 anos antes.
Em poucas semanas, estaria em um abrigo para pessoas em situação de rua, lutando para manter a família alimentada e segura.
Como passou daí para se tornar uma das maiores especialistas em nanopartículas?
É uma história de coragem e pura determinação, com algumas surpresas no caminho.
Tudo começou quando seus pais chegaram ao Reino Unido vindos da Nigéria, em 1960.
Segundo ela conta, eles tiveram que fazer vários sacrifícios para terem a chance de estudar no Reino Unido. Quando nasceu, ela ganhou um nome com um significado especial.
“Eles me chamaram de Ijeoma, que significa ‘tenha uma boa viagem’, na esperança de que tudo desse certo para eles no novo país”, relata.
A mãe estudou na London School of Economics, e o pai iniciou um curso de engenharia elétrica. Para que ambos pudessem estudar, deixaram a filha em um lar temporário, com uma família em Kent.
Embora fosse apenas um bebê quando isso aconteceu, a prática era comum entre estudantes da África Ocidental que tinham filhos.
Ijeoma passou quatro anos felizes com essa família, que acreditava ser a sua, até o dia em quer o pai biológico apareceu para buscá-la.
“Eu não fazia ideia do que estava acontecendo. Só me lembro de que minha tia Pat, como eu chamava minha mãe adotiva, desapareceu e, de repente, lá estava meu pai.”
Para aumentar a confusão, o pai já não vivia com a mãe, mas com outra mulher. Ijeoma só descobriu que ela era sua madrasta, e não sua verdadeira mãe, quando tinha cerca de dez anos.
“Foi a primeira vez que percebi que havia outra mãe por aí.”
A outra mãe
Ijeoma conheceu essa “outra mãe”, a biológica, quando tinha 13 anos.
Ela lembra que “ela estava muito, muito feliz em me conhecer e também muito nervosa, tremia quando nos abraçamos. Para mim, era tecnicamente uma estranha, mas passamos um fim de semana adorável”.
Estar com a mãe biológica, que vivia apenas com uma irmã mais nova, foi uma grande mudança, porque na casa em que morava com o pai e a madrasta havia seis crianças.
“Era só eu, com dois adultos e toda a atenção. Fomos às compras, e voltei com uma mala cheia de presentes. Bastava eu olhar para algo e ela dizia: ‘Quer isso?’.”
O que elas nunca conversaram foi por que a mãe não havia estado mais presente em sua vida.
“Senti que, se fizesse a pergunta, a resposta seria difícil para ela e talvez para mim. Então não perguntei, apenas aproveitei o momento.”
Nunca mais teve chance de fazer a pergunta, porque um ano após o reencontro a mãe biológica se mudou para os Estados Unidos e morreu pouco depois, aos 33 anos.
“Eu gritei de dor. Nunca imaginei que não a veria de novo.”
Ela acabou perdendo a mãe adotiva, a madrasta e a mãe biológica, mas ainda contava com o pai.
“Meu pai era realmente uma pessoa incrível. No fim da vida, tinha muitos filhos, 11 ao todo, mas sempre foi muito atencioso comigo. Nunca esquecia meu aniversário, brincava conosco, lia histórias, nos levava ao zoológico”, relata.
Ele sempre quis voltar para a Nigéria, mas isso não foi possível por anos, por causa da guerra civil no país. Assim, tentava compensar mantendo uma vida doméstica ao estilo nigeriano, e repetindo sempre o mesmo refrão: “Vou voltar no ano que vem. Nós vamos voltar.”
Enquanto isso…
Ijeoma cresceu no Reino Unido nas décadas de 1960 e 1970, um período em que o racismo raramente era condenado e em que havia poucos modelos de referência.
Embora tivesse uma excelente professora que acreditava nela e costumava dizer “você pode fazer o que quiser”, naquele contexto, tudo o que ela desejava era trabalhar em uma loja.
“Eu não conseguia me ver como uma profissional, porque não via ninguém como eu nessas profissões”, diz.
Mas isso mudou quando o pai realizou o desejo de voltar à Nigéria.
Mas, embora essa mudança acabasse sendo feliz, no começo, ela causou tristezas e dificuldades.
“Estava deixando todos os meus amigos para ir a um lugar distante que eu não conhecia. Fiz-me de corajosa, mas me lembro de que, quando entrei na sala da diretora da escola para avisar que iria embora, comecei a chorar. Estava inconsolável, e, para me animar, ela disse: ‘Você vai ter um Natal com sol’. E chorei ainda mais”, conta.
Na verdade, nem o sol seria seu amigo.
Pouco depois de chegar à Nigéria, Ijeoma teve queimaduras na pele e precisou ficar de cama por meses. Os médicos descobriram que ela tinha alergia à luz solar intensa.
Mudança de perspectiva
Quando finalmente pôde ir à escola, a situação não melhorou muito.
“Foi muito difícil ser aceita. Parecia uma vítima de queimaduras, falava de um jeito estranho e não havia vivido a guerra, o que era visto de forma negativa, diziam que eu só tinha voltado quando as coisas estavam bem”, explica.
Era um choque cultural em muitos níveis.
Em um país que há pouco havia saído de uma guerra civil, o que ela via ao redor era devastação. E vinha de um lugar onde era comum ter eletricidade e água encanada.
Tudo era muito diferente, até a educação.
No Reino Unido, ela ia bem na escola, era uma das melhores alunas da turma e muito popular. Na Nigéria, precisou se acostumar a não estudar história nem geografia europeias.
“A única coisa que era igual eram as ciências e a matemática, então me refugiei nelas, porque podia entendê-las.”
Nessa época, já havia mudado de ideia sobre o que queria ser quando crescesse.
“Desisti da ambição de trabalhar em uma loja dois dias depois de chegar à Nigéria. Um tio me perguntou: ‘Que bobagem é essa de não querer ir para a universidade?’.”
Embora o começo tenha sido difícil, hoje ela vê a mudança com outros olhos: “Foi a melhor coisa que me aconteceu, porque redefiniu completamente minhas aspirações.”
Do abrigo ao amor
Aos 16 anos, Ijeoma Uchegbu entrou na universidade para estudar farmácia. Mais tarde, fez mestrado, casou-se e teve três filhas. Mas o casamento não ia bem.
Então decidiu que deveria voltar ao Reino Unido.
“Queria ser cientista, e com a infraestrutura da Nigéria isso era difícil”, explica.
As pessoas, porém, não acreditaram em sua decisão. “Riam da minha cara, diziam que eu não teria dinheiro suficiente e que a pobreza me faria voltar.”
Sem um plano, com poucos recursos e as três filhas, chegou a Londres, e pouco depois, a um abrigo para pessoas em situação de rua.
Tudo era muito precário.
“Em certo momento, 11 famílias compartilhavam um único banheiro; às vezes, fechavam a cozinha, e não podíamos preparar comida. E quem administrava o lugar nos tratava com total desprezo. Fiquei lá por sete meses e, quando saí, foi como sair da prisão.”
Apesar das dificuldades, ela conta que não houve um único dia em que tenha pensado em voltar à Nigéria por causa das lembranças deixadas pelo casamento horrível.
Enquanto lidava com tudo isso, procurava vagas de pesquisa para fazer o doutorado. Entre duas opções, escolheu uma que propunha investigar algo de que nunca tinha ouvido falar: partículas minúsculas.
Era algo completamente novo, ainda não se chamava nanotecnologia.
A bolsa não era muito alta, mas ela conseguiu ajuda do governo para pagar o aluguel e passou a se dedicar à família e à pesquisa.
Três anos depois, participou de uma conferência que mudaria sua vida “de maneira inimaginável”.
Lá conheceu Andreas G. Schätzlein, um cientista alemão com quem teve algumas longas conversas, o suficiente para tocá-la profundamente. Depois de apenas quatro dias, “estava perdidamente apaixonada”.
No último dia, a caminho da estação onde se despediriam, Ijeoma percebeu que talvez nunca mais o veria.
“Tímida demais para lhe dar meu número de telefone, entreguei meu endereço. E ele me disse: ‘Eu te amo'”, recorda.
Viviam a quilômetros de distância.
O enorme no diminuto
Ijeoma Uchegbu esperou uma carta, que felizmente chegou. “Dizia tudo o que eu queria que dissesse, mas ele vivia em outro país, tinha sua própria carreira, sua própria vida.”
Ainda assim, depois de um tempo, “veio para o Reino Unido; deixou tudo para estar comigo: uma mulher com três filhos”.
Schätzlein não apenas se tornou seu marido, mas também seu parceiro profissional, em busca de algo revolucionário.
Imagine uma nanopartícula, algo menor que um milésimo da espessura de um fio de cabelo, capaz de levar um medicamento exatamente ao ponto do corpo onde é necessário, aumentando sua eficácia e reduzindo os efeitos colaterais.
Foi isso que eles fizeram.
“Quando você toma um remédio, seja por via oral, em forma de comprimido, ou por injeção, o medicamento acaba chegando à corrente sanguínea e pode alcançar todos os órgãos. Mas, às vezes, isso não é o que se quer, porque nem todos os órgãos estão doentes. A solução são os medicamentos em nanopartículas”, explica Ijeoma.
“Se essas nanopartículas vão apenas para a área onde está a doença e não atingem o tecido saudável, é menos provável que causem efeitos colaterais.”
Esses efeitos podem variar. Alguns são devastadores, como os causados pela quimioterapia, ou a dependência provocada por drogas prescritas para dores intensas, como morfina ou fentanil.
Além disso, Ijeoma e Schätzlein desenvolvem nanopartículas capazes de transportar medicamentos a regiões de difícil acesso do corpo, como a parte posterior do olho e o cérebro.
Com testes clínicos em andamento, o casal espera tratar a cegueira com colírios, transformar o alívio da dor e enfrentar a crise dos opioides.
Entre risos e revoluções
Ijeoma Uchegbu tem uma carreira científica de destaque e ocupa o cargo de professora de Nanociência Farmacêutica no University College de Londres (UCL) e de presidente do Wolfson College, na Universidade de Cambridge, também no Reino Unido.
Além disso, sua paixão por divulgar ciência a levou a recorrer ao humor para transmitir sua mensagem.
“Percebi que, quando fazia piadas, os alunos prestavam mais atenção. Então decidi me aprimorar e fiz um curso de comédia de dez semanas.”
O curso incluía se apresentar em um teatro londrino com um monólogo cômico. “Apavorante, mas no fim me diverti muito.”
O que aprendeu aplica não apenas em suas aulas, mas também quando precisa se comunicar com grandes públicos e em seus inúmeros discursos.
Divulgar conhecimento científico não é sua única paixão.
A outra surgiu quando ela foi, a contragosto, a uma reunião sobre igualdade social na UCL.
A princípio, não gostou da ideia porque, diz, não entendia do assunto e não era cientista social. Mas, depois de participar, mudou de opinião.
“Os dados mostravam que, se você fazia parte de uma minoria étnica, tinha menos chances de obter um diploma com distinção ou de ser promovido. E a situação era ainda pior se fosse mulher e pertencesse a uma minoria étnica”, afirma.
Assim, Ijeoma se envolveu de forma integral na busca por soluções.
Passou a visitar departamentos e faculdades para oferecer ferramentas simples, como garantir que estudantes de minorias étnicas que participem das aulas sejam convidados a repetir seus nomes “para que se sintam parte do grupo”, ou incluir cientistas de minorias étnicas como exemplos nas aulas.
“As medidas tiveram um impacto fenomenal. E também retiramos os nomes de [cientistas e acadêmicos] eugenistas dos nossos prédios, algo de que me orgulho muito”, conta.
O trabalho rendeu reações positivas. “Uma mulher se aproximou de mim chorando e disse: ‘Tenho uma deficiência. Só quero agradecer por terem se empenhado em retirar aqueles nomes [de eugenistas]’.”
Ijeoma Uchegbu diz que é complexo dar conselhos, mas que, se tivesse de oferecer um, seria este: não escolha uma profissão pensando em ganhar muito dinheiro; escolha algo que seja interessante para você.
E conclui: “Se você seguir sua paixão e fizer o que realmente gosta, ficará bem”.
Fonte.:Folha de S.Paulo


