
Crédito, Acervo Pessoal
- Author, Vitor Tavares
- Role, Da BBC News Brasil em São Paulo
Durante os 26 dias em que ficou preso nos Estados Unidos, várias perguntas sem respostas passaram pela cabeça do brasileiro Lucas dos Santos Amaral, de 29 anos. Seria deportado? Recomeçaria a vida no Rio de Janeiro? Ou voltaria para casa, no Estado de Massachusetts, na companhia da esposa grávida e da filha pequena?
No fim de fevereiro, Lucas, um pintor de paredes e músico gospel, reencontrou finalmente a família no aeroporto de Boston, após passar por três prisões em dois Estados americanos diferentes, Massachusetts e Texas.
“Só caiu a ficha quando minha filha me abraçou forte no carro e disse: ‘papai, eu não te largo nunca mais'”, lembra o brasileiro.
Lucas havia sido preso no dia 27 de janeiro ao ser parado por policiais no caminho para o trabalho, apenas sete dias após o presidente Donald Trump tomar posse e iniciar uma caça a imigrantes ilegais nos EUA.
Desde que assumiu, o novo governo americano sempre insistiu que os alvos das operações do ICE (o Serviço de Imigração e Controle de Aduanas) seriam os “criminosos” – ou seja, imigrantes que tinham registro criminal nos EUA ou no país de origem.
Esse não era o caso de Lucas.
Durante o período em que ficou preso, Lucas foi alvo de várias acusações espalhadas nas redes sociais no meio evangélico e brasileiro nos EUA. Em defesa da política de Trump, alguns brasileiros tentaram espalhar que ele tinha envolvimento com tráfico e até pedofilia – algo sempre negado pela família e também pela advogada que o defende.
Natural do Rio de Janeiro, ele entrou no país em 2017 com um visto de turismo, que permitia a ele ficar por até seis meses. Mas Lucas nunca mais foi embora. Portanto, vivia em situação irregular.
A mera presença física no território americano sem autorização é considerada uma infração civil e não criminal – é o caso daqueles que têm o visto expirado, como Lucas.
O caso de Lucas representa o que os apoiadores de Trump têm chamado de “efeito colateral”. Ou seja, detidos sem passagem na polícia ou ordem de deportação que estejam no caminho do ICE em alguma operação.
“Infelizmente, o ICE não volta para casa de mãos vazias”, conta Lucas, já com a rotina retomada em casa.
“Assim como aconteceu comigo, que não tinha problema na Justiça dos EUA, pode acontecer com outros.”
O brasileiro foi liberado após passar por uma audiência com um juiz no Texas, para onde foi transferido – uma vitória que ele diz ter acontecido por sua resistência a uma “pressão psicológica” nas cadeias.
“Eles trabalham para forçar você a pedir deportação. Fazem de tudo para te quebrar psicologicamente e você falar ‘não quero mais, me manda embora'”, recorda o brasileiro sobre os dias na prisão.
Nesta segunda-feira (5/5), o governo Trump anunciou que oferecerá mil dólares (cerca de R$ 5.688) e os custos da passagem para quem aceitar deixar os EUA voluntariamente.
Segundo a advogada Eloa Celedon, que faz a defesa de Lucas, o juiz texano é “anti-imigrante”, mas além de verificar a ausência de antecedente criminal, acabou aceitando os argumentos de que o brasileiro mantinha uma rotina de trabalho, tinha laços familiares fortes nos EUA (com uma filha nascida no país), além de possuir um “fiador” para sua permanência, no caso uma cunhada cidadã americana.
“Tivemos medo de deportá-lo sem sequer uma audiência”, conta Celedon.
A família precisou pagar uma fiança de US$ 8 mil (R$ 47 mil), e agora Lucas responderá ao seu processo de imigração em liberdade.
Ele precisará passar por audiências nos próximos anos, quando a Justiça americana decidirá se ele poderá permanecer nos EUA ou será deportado.
A BBC News Brasil entrou em contato com o ICE para saber detalhes do caso de Lucas, mas, até a publicação desta reportagem, não teve resposta.

Crédito, Acervo Pessoal
‘Não era quem eles procuravam’
As ruas cheias de neve em Marlborough indicavam a Lucas mais uma manhã normal do rigoroso inverno de Massachusetts. O caminho de carro até o trabalho era o mesmo de todos os dias.
Tudo seguia como planejado até ele ouvir um sinal para parar o carro.
Lucas Pensou que tinha cometido uma infração de trânsito. Mas era uma viatura do ICE.
“Eles me disseram que estavam procurando alguém que era muito parecido comigo e pediram minha identidade”, lembra.
“Já que eu não era quem eles procuravam, não tinha droga nem nada, pensava que ia ser liberado sem problemas.” Até aí, o brasileiro se mantinha tranquilo, respondendo às perguntas.
Dois dias antes, Lucas estava na cama com a esposa, Suyanne Amaral, conversando sobre as notícias da nova política migratória do governo Trump.
Os dois concluíram que a família não corria riscos, já que Suyanne tem autorização de ficar no país pelo chamado Daca (Ação Diferida para Chegadas na Infância) e Lucas não tem antecedente criminal.
No momento da abordagem do ICE, era essa conversa que vinha à cabeça de Lucas.
Isso é: os policiais entenderiam o “mal-entendido” e o liberariam – mas não foi isso que aconteceu.
O policial voltou ao brasileiro com a informação de que ele vivia irregularmente no país, já que o visto de turismo dele havia expirado desde dezembro de 2017.
Segundo Lucas, ele já havia tentado encontrar formas de se legalizar, mas o processo “não é nada fácil”. Como a esposa vive nos EUA sob o Daca, ela também não consegue passar a autorização de permanência para o companheiro.
Lucas foi imediatamente algemado, conseguiu ligar rapidamente à esposa para dizer “me pegaram” e foi levado para o escritório do ICE, em Burlington.
No mesmo dia, foi encaminhado a uma penitenciária de Massachusetts, em Plymouth, onde estão detidos homens condenados por diversos crimes.
Segundo o brasileiro, nunca foram dadas a ele informações sobre seu processo ou futuro.
Na prisão, outros presos se aproximavam e perguntam que crime Lucas tinha cometido.
“E eu falava: ‘não fiz nada’. Aí eles sempre falavam: ‘E por que você está aqui?’ Eu dizia: ‘rapaz, não sei também’.”
Lucas passou uma semana na prisão de Plymouth, em contato com a esposa e advogada – até que um agente penitenciário o avisou que ele estava “indo embora”.

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O brasileiro pensou que estava sendo solto e chegou a avisar a Suyanne, celebrando.
Mas ele só entendeu o que estava acontecendo quando chegou ao aeroporto.
“Nesse momento, eu pensei que estava indo embora para o Brasil.”
Lucas foi enviado a uma penitenciária no Texas, sem que a família ou a defesa fosse informada.
Reportagens em jornais dos EUA têm mostrado que a transferência de presos a Estados mais linha-dura na questão migratória, como o Texas, tem sido uma estratégia utilizada pelo governo Trump.
Massachusetts, onde Lucas mora, é considerado um “Estado santuário”, aqueles que não colaboram com autoridades migratórias na busca por pessoas e garantem mais direitos aos migrantes.
Mas, segundo a advogada de Lucas, a transferência teve mais a ver com a falta de espaço nas unidades prisionais de Massachusetts. Muitos imigrantes, diz Eloa Celedon, estão sendo enviados ao Texas e ao Mississippi.
O brasileiro passou três dias numa primeira prisão no Texas, até ser transferido para uma unidade que concentra presos em processo final de deportação.
“Tinha 100 pessoas na cela, todo tipo de gente, incluindo outros brasileiros”, diz.
O pintor lembra que, durante todo esse tempo preso, a advogada o orientava a não assinar nenhum documento que tratasse sobre deportação.
Segundo Lucas, os agentes “meio que forçam você a assinar um documento para que você se deporte voluntariamente”.
“Se você não estiver forte psicologicamente, você assina sua cartinha e vai embora para o seu país.”
O governo Trump chegou a lançar um aplicativo que permite que imigrantes em situação irregular indiquem que querem deixar o país, em vez de enfrentarem uma possível detenção.
O brasileiro, entretanto, insistiu em ter uma audiência com o juiz – que acabou concedendo a liberdade sob a fiança de US$ 8 mil.
O reencontro com a família aconteceu no aeroporto de Boston, quase 24 horas depois de Lucas sair da prisão no Texas.
De acordo com a advogada Eloa Celedon, o processo do brasileiro pode durar mais de quatro anos. Ela também decidiu pedir arquivamento do processo, além de entrar com ação contra os agentes do ICE pela abordagem que ela considera de “má-fé”, ignorando direitos previstos na Constituição americana.
‘Povo cruel’

Crédito, Acervo Pessoal
Durante o tempo em que Lucas ficou preso, a família precisou lidar com boatos espalhados nas redes sociais sobre o passado do brasileiro, incluindo acusações de pedofilia.
Uma dessas acusações, diz Lucas, chegou a ser espalhada por uma conhecida do casal.
“Eu fico chateado demais porque o povo é muito cruel e maldoso. Inventaram coisas nojentas, mas creio que Deus fará justiça cedo ou tarde”, comenta o brasileiro.
“O discurso de ódio é muito mais repercutível que um discurso de amor.”
Suyanne, grávida, com uma filha pequena e o marido preso, conta que preferiu se manter distante dos boatos, sem “dar ibope” aos que criticavam a família.
Como Lucas era o único que trabalhava em casa, ela organizou uma vaquinha para se manter e conseguir pagar os honorários da advogada, além do dinheiro da possível fiança.
Esse é um dos motivos, diz, da perseguição da comunidade brasileira, que acusa a família de ter ganhado mais do que precisava.
“Toda ajuda foi bem-vinda porque era uma fase complicada. De repente, me vi com despesa de advogada, com criança, grávida. Isso não dá direito as pessoas de controlarem a nossa vida e inventarem discursos mentirosos”, argumenta Suyanne.
Agora unida novamente, a família diz que não guarda raiva do governo Trump e, em certa medida, até apoia a política migratória.
“Trump está fazendo isso para melhorar a qualidade de vida. Creio que é para um bem maior. Mas a estratégia está bagunçada”, avalia Lucas, para quem a entrada de imigrantes “que fazem besteira” ficou descontrolada nos últimos anos.
Ele diz que seu caso é um “respingo” e um “efeito colateral”.
Por ora, o brasileiro espera que nos próximos anos tenha sua situação resolvida. As audiências sobre seu processo ainda não têm data marcada.
Mas, diante da incerteza que a prisão de Lucas trouxe, o casal já começou a conversar sobre um plano de vida no Brasil.
“Precisamos ter um plano B. Pelo menos nos próximos anos, a situação estará incerta. Enquanto ele [Trump] estiver no poder, não sei o que pode acontecer”, diz Suyanne, que dará à luz Theo, o segundo filho do casal, no segundo semestre.
A filha mais velha, Aila, ainda se incomoda toda vez que o pai não está em casa e pergunta à mãe: “Está tudo bem com o papai, né? Ele vai voltar?”
Fonte.:BBC NEWS BRASIL