
Crédito, Arquivo Pessoal
- Author, Ione Wells
- Role, Da BBC News no Equador
Ela prometeu à filha uma viagem à Disney, na Flórida. O que seria um período de férias virou uma rota de fuga do “terror”.
Gabriela, nome fictício, é de Guayaquil, no Equador. Diz que levava o que chama de uma “vida normal de classe média”: trabalhou por 15 anos em um canal de televisão, tinha um imóvel financiado e a filha estudava em uma escola particular.
Mas logo veio a primeira ameaça. Ela recebeu um telefonema avisando que deveria pagar a uma quadrilha ou seria morta. O autor da ligação conhecia seu local de trabalho e a placa de seu carro.
Na época em que planejavam as férias na Disney, o avô de sua filha foi sequestrado.
Extorquida a pagar dezenas de milhares de dólares, a família dela recebeu vídeos em que o avô de sua filha tinha os dedos cortados. Ele acabou assassinado, e um dos dedos foi deixado dentro de uma garrafa como recado.
Temendo pela segurança de Gabriela, o parceiro dela a orientou que levasse a filha na viagem e não voltasse ao país.
Mas, para especialistas em legislação migratória, está cada vez mais difícil que esses casos sejam bem-sucedidos nos EUA.
A lei de asilo americana reconhece cinco fundamentos para esse tipo de proteção, definidos na Convenção sobre Refugiados elaborada após a Segunda Guerra Mundial (1939-45): perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, opinião política ou pertencimento a grupo social.
O atual Serviço de Cidadania e Imigração dos EUA diz que o asilo pode ser concedido “somente” para aqueles que fogem de perseguição com base em um desses cinco motivos, mas a violência dos cartéis não se encaixa exatamente em nenhuma dessas categorias.
Essa lei é objeto de “muita, muita interpretação”, segundo Kathleen Bush-Joseph, do Migration Policy Institute (Instituto de Políticas Migratórias, em tradução livre).
No primeiro mandato do presidente americano Donald Trump, o governo dificultou a concessão de asilo a vítimas de violência de gangues ou de violência doméstica — duas categorias que, à primeira vista, parecem crimes individuais, mas que em muitos países estão ligadas a problemas sistêmicos de justiça e corrupção.
O então procurador-geral de Trump elevou as exigências para essas solicitações ao emitir uma diretriz determinando que “o solicitante deve demonstrar que o governo tolerou as ações [de intimidação ou violência] ou mostrou incapacidade de proteger as vítimas”.
Na prática, isso pode tornar os pedidos inviáveis. Gabriela diz que denunciar ameaças em um país como o Equador pode ser arriscado. “Se você tiver sorte e prenderem o criminoso, é provável que ele saia no dia seguinte e tente te matar por vingança.”
Embora o governo de Joe Biden nos EUA tenha revogado essa interpretação da lei, as coisas permanecem iguais, e quem foge dos cartéis se vê em limbo jurídico.
Trump também fez dos cartéis alvo de sua política migratória ao definir alguns deles como organizações terroristas. Pessoas foram deportadas sob acusação de serem ligadas a cartéis (em alguns casos, não foram apresentadas provas dessas ligações).
Bush-Joseph, do Migration Policy Institute, afirma que ainda é cedo para saber como o tema será tratado nos tribunais americanos, mas os casos podem ir “em ambas as direções” para quem foge da violência dos cartéis.
Isso pode levar alguns a serem classificados como vítimas de “terroristas”. Há, porém, receio de que quem foi extorquido também possa ser acusado de ter dado “apoio material” a esses grupos — mesmo que tenha feito isso de modo forçado.
Gabriela concorda com Trump que membros de cartéis são “terroristas” e acredita que, por isso, o governo americano deveria reconhecê-la como vítima, assim como outras pessoas em situação semelhante.
“Gostaria que o presidente concedesse asilo a quem foge da violência desses terroristas.”

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Detenção como forma de pressão
Mario Russell, diretor do Center for Migration Studies (Centro de Estudos Migratórios, em tradução livre), nos EUA, defende que as definições legais de quem pode pedir asilo sejam atualizadas.
Segundo Russell, por enquanto a maioria das vítimas solicita asilo por razões políticas, ao argumentar que os cartéis têm tanto poder social e político que atuam “como se fossem a entidade governante”.
“O problema é que essas pessoas sofrem violência e perseguição — e por perseguição entendemos horror. Há medo pela vida deles.”
Gabriela afirma que, em sua entrevista de asilo — ainda sem data marcada —, pretende pedir refúgio político. Argumenta que, devido à corrupção de policiais e juízes no Equador e à ligação de parte deles com gangues, não se sentia protegida contra as ameaças.
Russell diz que cerca de 70% dos pedidos de asilo são rejeitados atualmente. O que mudou sob o governo Trump, segundo ele, foi o aumento da detenção de migrantes em situação irregular que pedem asilo.
Dados oficiais mostram que um número recorde de 60 mil pessoas estão detidas aguardando a análise de seus casos.
Isso “muda a equação”, afirma Russell, porque eles “já não podem viver relativamente em paz” enquanto esperam a decisão sobre seus pedidos. A detenção, acrescenta, é “usada como forma de pressão” para que desistam e aceitem a deportação voluntária.
As últimas ordens executivas do presidente Trump ampliaram as deportações e os poderes de prisão do Serviço de Imigração e Alfândega dos Estados Unidos (ICE, na sigla em inglês), incluindo a suspensão da entrada de muitos migrantes sem documentos.
O resultado, diz Bush-Joseph, do Migration Policy Institute, é um ambiente em que juízes enfrentam “enorme pressão” para negar casos considerados juridicamente insuficientes.
Casos políticos simples podem ser aprovados rapidamente, mas os relacionados a cartéis são complexos e muitas vezes rejeitados já na primeira análise, afirma Bush-Joseph. Esses solicitantes precisam “lutar por proteção” enquanto enfrentam alguns dos “maiores riscos de deportação”, acrescenta ela.
Para requerentes como Gabriela, isso significa viver, na prática, em confinamento. “Estamos com medo desde que o presidente Trump assumiu o cargo”, diz.
Enquanto aguarda a decisão do pedido de asilo, ela tem permissão de trabalho e cumpre longos turnos em uma fábrica nos EUA.
“Nossa vida se resume a trabalho, casa, trabalho, nada mais. Não quero nos expor a outro trauma.”
“É estressante não poder sair, relaxar, esquecer nossos traumas”, diz Gabriela, que teme ser denunciada e presa.
Gabriela se preocupa até em seguir o limite de velocidade no trânsito, com receio de que qualquer erro justifique sua deportação ou a rejeição do pedido. Responde a todos com educação, mesmo quando sofre racismo.

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Os medos de Gabriela são compartilhados por Maria, lésbica da cidade equatoriana de Durán, classificada como uma das mais violentas do mundo. Uma quadrilha também tentou extorqui-la por meio de mensagens de texto com ameaças.
Ela registrou uma queixa no Ministério Público do Equador, mas uma semana depois criminosos a tiraram de cima de sua motocicleta, a advertiram a pagar e disseram: “Porque você acha que é homem, acha que nada vai lhe acontecer.”
Maria vendeu a motocicleta e fugiu para os EUA, e hoje trabalha como lavadora de pratos em Nova York.
Ela relatou às autoridades de imigração sobre a denúncia feita no Equador, mas sua audiência de asilo só está prevista para depois de 2028. Para Maria, isso significa que ela “não pode aproveitar a vida”. “É preciso se esconder, você não sabe quando pode acontecer uma batida policial.”
Há cerca de 4 milhões de pedidos de asilo aguardando análise nos EUA, e para muitos, como Maria, o processo leva anos.
Luis, taxista que também fugiu de Durán após gangues tentarem extorquir motoristas de sua cooperativa, é outro exemplo.
“Nunca pensei em emigrar. Mas tantos amigos meus foram mortos”, diz Luis sobre aqueles que se recusaram a pagar.

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Segundo o escritório de advocacia de imigração Spar & Bernstein, a designação de alguns cartéis como grupos terroristas pelo governo dos EUA, em vez de favorecer, pode tornar inadmissíveis alguns pedidos de asilo de pessoas que fugiram da violência.
Indivíduos que pagaram coiotes para chegar aos EUA ou que “viviam em cidades controladas por cartéis e pagaram dinheiro de proteção” podem ser vistos como ligados justamente aos grupos dos quais tentavam escapar — e ter seus pedidos rejeitados.
Matthew J. Tragesser, porta-voz do Serviço de Cidadania e Imigração dos EUA, afirma que a lei de asilo protege um “número muito limitado de estrangeiros perseguidos”.
Tragesser atribui o acúmulo de casos a pedidos “fraudulentos e frívolos” feitos durante o governo Biden. Segundo ele, uma nova legislação elevaria as taxas cobradas para solicitações de asilo com o objetivo de reduzir fraudes.
“Um pedido de asilo pendente não torna estrangeiros imunes à aplicação da lei”, acrescenta Tragesser.
Enquanto isso, os americanos estão divididos sobre as medidas de Trump para imigração. Pesquisa do instituto Pew Research, em junho deste ano, mostrou que 60% desaprovam a suspensão da maioria dos pedidos de asilo, e 54% se opõem ao aumento de batidas policiais. O apoio, porém, varia de acordo com a filiação partidária.
A maioria (65%) defende caminhos legais para que imigrantes sem documentos permaneçam, enquanto 23% dizem temer que eles ou alguém próximo seja deportado.
Gabriela, Maria e Luis insistem que quem foge da violência dos cartéis é incompreendido. Eles aceitam que criminosos sejam deportados, mas defendem que imigrantes que cumprem a lei e “pagam impostos” possam ficar.
“Queremos o que todo mundo quer: trabalhar, viver em um Estado de direito e não mais viver no terror, sem saber se você ou seu filho voltarão para casa.”
Fonte.:BBC NEWS BRASIL