Embarcando pela nona vez à Índia, eu tinha certeza de que quase ninguém por lá me abordaria em inglês. Eu já sabia que isso iria acontecer. O primeiro contato seria sempre em hindi.
O próprio grupo que viajava comigo desta vez, influenciadores da América Latina e do Caribe, me olhava a princípio como que perguntando: o que esse indiano fazia ali. Mesmo os surinameses, guianeses e trinis (apelido carinhoso da turma de Trinidad e Tobago), parte significativa da diáspora indiana, pareciam perplexos com minha presença.
Sou mineiro de Uberaba, como já contei neste espaço. Mais: sou brasileiro de várias gerações, nunca nem ousei sonhar que eu poderia ter um passaporte europeu por causa de uma possível ancestralidade europeia.
Se tenho algo de indiano no meu DNA certamente é por causa de um gene perdido, que eu já estou velho demais para perguntar a alguém da minha família como ele entrou na minha árvore genealógica. O fato é que essa bagunça étnica me deixa muito feliz e honrado. E se ela provoca certa estranheza, eventualmente também me traz algumas vantagens.
Por exemplo: descontos em entradas de feiras e museus, uma vez que cidadãos indianos têm essa regalia em algumas instituições. Eu sei que o correto seria me declarar estrangeiro e pagar a entrada inteira, mas a vaidade de ser identificado como um indiano indígena fala mais alto do que essa pequena desonestidade.
Não índio, como por séculos chamamos os nativos das terras onde Cristóvão Colombo ancorou, mas indígena mesmo, do prefixo “in” e do radical “gena”, que vem do verbo “gignere” em latim. No momento em que pisei na Índia, dias atrás, atordoado pela longa viagem e pelo incomum fuso horário de oito horas de 30 minutos, já me sentia novamente um local.
Essa identidade sempre foi bem-vinda, desde que fui lá pela primeira vez, 40 anos atrás. Se não falo nada de hindi (ou tâmil ou panjabi ou bengalês ou qualquer outras das 22 línguas oficiais da índia, fora o inglês) pelo menos já sou, depois de tantas visitas, fluente em balançar meu pescoço de leve como um verdadeiro indiano. O que já abre muitas portas para um visitante estrangeiro.
Nesta viagem, abrir portas não era apenas uma figura de linguagem: viajando com esse grupo a convite do órgão de turismo oficial da Índia, tivemos acesso a maravilhas que o turista regular não consegue ver tão de perto ou com a tranquilidade.
Vou dar detalhes sobre elas nas próximas colunas: as janelas do Palácio dos Ventos em Jaipur; os jardins de Jag Mandir, lago Pichola, Udaipur; o minarete Qtub em Déli.
Quero falar também da vida cotidiana: a cerveja com manga que tomei no Connaught Place, em Nova Déli; os pedidos de casamento no Taj Mahal; as viúvas que fazem colchas de retalhos de saris antigos no Rajastão.
Mas antes de oferecer esse caleidoscópio da Índia nas próximas semanas, eu tinha que reforçar que, se pareço indiano a ponto de o motorista que me levou a Agra falar que eu poderia ser seu pai, essa é a liberdade poética mais linda que a natureza poderia ter me dado de presente.
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Fonte.:Folha de S.Paulo